Augusto Boal mudou o lugar do teatro. E realizou o gesto através de uma reflexão teórica única, capaz de inaugurar uma prática de ativação popular trans-estética. O paradoxo é que seu seu projeto contém, ao mesmo tempo, uma negação da arte e a geração de campos de autonomia estética, com vistas a uma práxis igualitária. Assim, em cada afirmação esperançosa sobre as possibilidades de ação humana transformadora, Boal inscreveu também um não fundamental, porque desde cedo foi um dialético. Não conheci mais interessado na mobilidade, na incerteza, na ambigüidade.
Em suas “memórias imaginadas” que têm o título curioso de Hamlet e o filho do padeiro (Record, 2000), as evocações da trajetória familiar e profissional deflagram mais do que a luta entre o ser e o não ser, a verificação de uma unidade relativa ao tempo. “A tragédia de Hamlet não é ser ou não ser: é ser e não ser. Hamlet é os dois (…) e só não sabe ser ele próprio. Sou especialista nessa dicotomia.”, diz Boal.
A arte, segundo essa visão, é uma produção humana que tem sentido ao produzir o desconhecido, ao inventar um lugar sempre mais além, chamado “outro”. Boal criou, nessa perspectiva, condições estéticas (e extra-estéticas) que permitem exercícios de autonomia crítica e política.
Talvez tenha sido essa tendência de espírito que o fez, ainda muito moço, trocar a carreira de químico pela de fazedor de teatro, expressão vaga que não abarca sua múltipla atuação. De tudo Boal fez um pouco: foi dramaturgo, diretor, professor, ensaísta. Sempre excessiva e brilhantemente. E sua visão dialética enfatizava a temporalidade das coisas: tinha uma atenção toda especial à vida em fluxo. Enxergava nas partes as dinâmicas do todo. Sabia que toda afirmação é uma supressão.
Laboratórios e seminários
Boal se decide pelo teatro nos anos 1950, quando se matricula no curso de Dramaturgia de John Gassner, na Universidade de Columbia, Estados Unidos, em paralelo à especialização em Química. Nas horas vagas acompanhava também oficinas no Actor´s Studio. Em dois anos, perdeu o interesse pelas metamorfoses de substâncias, cada vez mais pautadas pela pesquisa industrial, submetidas aos interesses das trocas mercantis. Preferiu a imprecisão do teatro, sua construção precária, também sujeita às imposições da mercadoria, mas sempre algo anacrônica e artesanal quando comparada à serialização cultural.
Em todos os trabalhos importantes que realizou, Boal imprimiu a herança científica que o levou ao estudo de química. Não é à toa que usou a forma dos laboratórios para transmitir seus conhecimentos ao elenco do Teatro de Arena, grupo dirigido por José Renato, onde ingressou em 1956.
Mal se iniciava como diretor de cena, Boal valorizava o processo para desautomatizar o produto. Criou um sistema de ensaios feito de exercícios preparatórios de aproximação psicofísica ao papel, com base em Stanislavski, distendendo o tempo de ensaio e coletivizando os procedimentos para além da simples marcação do texto decorado.
Na área da dramaturgia, depois de um curso interno oferecido ao grupo para compartilhar a chamada carpintaria aprendida nos Estados Unidos, ele funda o famoso Seminário de Dramaturgia, aberto a escritores e estudantes, com a tarefa de estimular a escrita de textos nacionais. Naquele tempo, ele acreditava em estruturas dramáticas clássicas: a peça teatral nasce do entrechoque de vontades individuais rumo a sua reviravolta. Mas essa técnica se relativizava na prática experimental de intercâmbio com os jovens integrantes politizados do Arena (Vianinha e Guarnieri eram filhos de artistas ligados ao Partido Comunista e discípulos de Ruggero Jacobbi, o mais culto dos encenadores italianos que passou pelo TBC de São Paulo).
Mesmo sendo difícil avaliar o período em função da escassez de documentos, não há dúvida que o trabalho de Boal foi o catalisador de uma revolução estética a partir de sua ação no Seminário de Dramaturgia. O que parece ter ocorrido ali é uma superação do modelo aprendido em Nova Iorque em função de outros fatores, entre os quais o sucesso temático de Eles não usam black-tie, de Guarnieri, que punha em cena embates da vida operária e trazia um modelo em que o conteúdo social pressiona o moralismo da forma dramática. Refuncionalizava-se, assim, a forma do conflito psicológico em nome de um projeto crítico de arte popular e brasileira. A técnica estrutural aprendida com Gassner, de base hegeliana, se convertia na procura sistemática de uma dialética do drama, ampliada com a leitura do próprio autor da Fenomenologia do Espírito. Instaurava-se a prática do debate político sobre uma cena em que o risco do patrulhamento era um mal menor diante da impressionante mobilização dos sentidos cênicos para o momento histórico agudo em que o país entrava. Tudo isso se imagina por depoimentos da época, e pelos resultados no trabalho de tanta gente que começou a escrever do dia para a noite. Muitos dos melhores dramaturgos do país que depois migraram à televisão – penso em Lauro César Muniz e Benedito Ruy Barbosa – devem seu conhecimento técnico a Boal.
Mas a lógicadialética que Boal transmitia em seus cursos, impunha a ele próprio uma atitude de negação. A melhor peça escrita por ele no período, Revolução na América do Sul, de 1960, se afasta do padrão do conflito inter-subjetivo, a ponto de se converter em outra coisa. A saga cômica do famélico Zé da Silva rumo a uma incompreensão cada vez maior sobre o funcionamento do sistema econômico está mais próxima da palhaçada do circo, em sua estrutura despedaçada. São episódios de uma ingenuidade, na forma de números irônicos. Não se vê ali o realismo autoconsciente com desenlace positivo que anima peças sociais do período. Boal dialoga, mais do que nunca, com a técnica do teatro épico de Brecht, autor que admirava e conhecia bem, mas que não lhe falava ao coração luso-brasileiro, talvez por seu materialismo por demais cortante e distanciado.
Mas ambos são dialéticos. E mesmo que Boal tenha sido, do ponto de vista filosófico, um idealista, sabia transmudar essa tendência numa prática artística cambiante, feita de atitudes gestuais críticas e reflexivas. Como muitos artistas modernos, Brecht e Boal quiseram que o teatro fosse outra coisa além de “teatro”. Que fosse capaz de desmontar o imaginário social dominante, ao preço de ter que se negar – no sentido hegeliano de aprofundar para superar – a dimensão estética.
O ator se transforma em personagem. O palco real instaura mundos irreais. É comum que essa qualidade contraditória do teatro seja cultuada em termos idealistas: a essência do teatro estaria nesse constante ser-no-outro. Mas a obra brilhante de Boal é um testemunho de que a dialética deve incidir sobre si própria. Daí seu movimento de recusa do teatro. Não basta saber que o teatro aproxima os contrários, é preciso algo mais do que a conciliação abstrata. Como artista da ficção mimética, ele procurava algo que não se representa, mas se pressente. Uma vitalidade indefinível que nasce de uma concretização singular mas não absoluta, de uma capacidade de trânsito livre e ativador entre palco e platéia.
Sua diferença em relação ao projeto de Brecht se deve também a uma interpretação sobre a situação histórica do Brasil na década de 1960. A crítica dos principais artistas da época ao populismo do pré-1964 partia de uma verificação dolorosamente palpável: houve ilusões em relação ao projeto de uma arte socialmente integradora no luminoso período entre 1960 e 1963, comparável ao engano de acreditar que a burguesia progressista so país combateria do lado das reformas socializantes pretendidas pela equipe de João Goulart.
Mas os equívocos populistas do teatro experimental de conscientização política – cujo mais avançado exemplo é o CPC da UNE, liderado por Vianinha – são insignificantes diante dos enormes avanços artísticos surgidos da nova relação de trabalho surgida. Ao se aproximarem dos despossuídos da cultura, essa geração de artistas mudou. Aprendeu a expor a fragilidade de uma produção cultural que precisa reinventar suas formas e sentidos. Por mais que em algumas ocasiões Boal partilhe da depreciação injusta lançada sobre os CPC da UNE, o Teatro do Oprimido não existiria sem esse passado, assim como o CPC não existiria sem Boal.
Com o fechamento político do pós-64, ele se vê em uma nova situação imposta pela conjuntura, o que modifica a fase de sua invenção laboratorial. Nos espetáculos da série Arena Conta sobre figuras históricas brasileiras (Zumbi de Palmares e Tiradentes) Boal põe em prática uma forma de atuação em que o elenco assume o espetáculo como evento narrativo. Criava, assim, o sistema do Coringa, em que a personagem era transmitida de um ator para outro. Como convenção da troca, um dedilhar musical forte no violão e a repetição de um gesto marcante pelo intérprete seguinte. Vários atores conduzem a mesma personagem, ajudados por um mestre de cerimônias, o Coringa, que comenta a ficção. A idéia de um gesto social citável e de um teatro narrativo e musical são heranças brechtianas. Servem agora como suporte para uma alegoria lírica sobre o país diante de seu passado imediato. Massacre imposto e equívoco dos intelectuais. Sempre que voltava a esse assunto, Boal costumava comentar a frase de Brecht segundo a qual é “triste um país que necessita de heróis”. E lembrava que o nosso é triste porque precisa dos atos individuais libertadores. Em que pese aí uma insistência discutível na importância de uma dramaturgia capaz de criar mitos (ao contrário do que argumentava a crítica de Anatol Rosenfeld na época), o idealismo dramático expõe suas franjas e mangas no avesso: era dialetizado pela prática coletiva dos ensaios. Boal escrevia Zumbi com Guarnieri, ao mesmo tempo em que Edu Lobo musicava as letras. No ensaio da noite, o texto se corrigia pela interação com os atores. Trabalho coletivizado e não especializado. O senso agudo de individualidade de Boal precisava do grupo. E para ele o teatro de grupo só existe quando o projeto se torna transmissível, citável, como os gestos dos atores no sistema coringa.
Luta no exílio
As mais interessantes e modelares experiências artísticas de Boal durante a existência do Teatro de Arena estiveram ligadas ao desejo de interferir no tempo histórico. Mas quando o governo militar decide fechar o cerco sobre o movimento estudantil, e por tabela sobre a vida cultural, cuja contestação ainda era admitida nos anos anteriores, ficou nítido quem conduzia o processo. Enquanto foi possível atuar coletivamente no campo do teatro, a imaginação laboratorial de Boal produziu novos experimentos: o Núcleo 2 do Teatro de Arena difundia exercícios de Teatro Jornal, em que o noticiário do dia era encenado em perspectiva crítica à noite. Mais uma vez Boal sublinhava a perspectiva metodológica do exercício. Não era só o assunto jornalístico que o público via, mas uma técnica transmissível que ele próprio poderia reproduzir para ter acesso a outras imagens da realidade. Boal procurava retomar o agitprop (o teatro jornal foi muito usado por Vianinha no CPC) aliado ao conceito da multiplicação de células. A ferramenta deveria ser capaz de se adequar à mão de quem usa.
Com sua prisão no início da década de 1970 e subseqüente exílio, no período mais violento dos assassinatos da ditadura, essa disposição científica, ligada a uma prática artística comunitária, sofreu um grande abalo.
Isolado, restou a Boal, no fracionamento imposto pelo exílio, a tarefa de produzir sentido em relação à experiência passada. Assim como Brecht escreveu a parte mais famosa de sua obra nos anos de fuga da guerra e do nazismo, foi no deslocamento entre Argentina, Peru, Portugal e França, que Boal constitui as bases de seu trabalho mais conhecido, o Teatro do Oprimido.
Todo grande artista ligado a uma prática coletiva sentirá como trágica a experiência de ter que atuar à distância, em abstrato, através de textos que não passam pela prova do confronto com o público. Brecht considerava certas peças da maturidade como uma “regressão técnica”, necessária diante do novo contexto de sua produção. Alguns dos primeiros trabalhos de Boal no exílio indicam a modificação de curso: da experimentação teatral dialética ele passa a procurar fórmulas que superem as contradições do projeto de uma arte popular crítica e radical que parecia ter fracassado. “É preciso cunhar fórmulas”, já disse Brecht, mas a redução que facilita a circulação é a mesma que traz a perda da complexidade.
Talvez haja um deliberado recuo necessário nas reflexões de Boal contidas no mais famoso de seus livros, Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas, publicado pela Civilização Brasileira, de Enio da Silveira, em 1974. É uma compilação de trabalhos críticos ligados aos anos anteriores do Teatro de Arena, reorientados por uma idéia que seria decisiva para ele a partir de então: a tradição do drama ocidental se baseia na intimidação poética e política do espectador. Seria, portanto, preciso ir além e ativar literalmente o público: “O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude.” Em outros termos, é preciso que alguém diga stop e o próprio espectador suba ao palco e conte sua versão da história, como ocorre na técnica que Boal batizou depois de Teatro Fórum.
A simplificação teórica está em dizer que o ato de espectação é necessariamente passivo. E que o público, por estar sentado, é desde sempre vítima do consumo das imagens. Como bom dialético, Boal sabe que exercer a imaginação, o senso crítico e a sensibilidade são atividades produtivas. Depende do modo como a relação teatral se configura. Mas como em outras ocasiões, esse limite idealista da teoria é autonegado pelas demonstrações práticas que surgem nos livros posteriores, todos manuais de prática teatral: Técnicas latino-americanas de teatro popular, 200 exercícios e jogos para o ator e o nõa-ator com vontade de dizer algo através do teatro, Stop: c´est magique! Nenhum artista brasileiro até então produziu uma síntese tão inventiva de procedimentos de trabalho teatral com vistas a sua utilização deslocada.
Em Stop: c´est magique! Boal revela o principal motor das várias técnicas abarcadas sob o título Teatro do Oprimido (a do Forum, da Imagem, do Teatro Invisível etc.): transmitir a qualquer um os meios de produção teatral como ferramentas para uma consciência pedagógica. E essa pesquisa não cessou até sua morte, como testemunham os tantos trabalhos em movimento que Boal publicou ao longo da produtiva vida.
Enio Silveira estava certo quando batizou o livro famoso de Boal nos termos de Paulo Freire. A ênfase saía de vez do campo estético e passava ao aprendizado teatral através do jogo anti-ideológico, em que não há mais a palavra autorizada, mas a experiência comum.
Uma leitura do conjunto de seus escritos revela o cuidado com que o dialético Boal procurava extrapolar o esquema dualista em que se funda a oposição opressor-oprimido. Libertar-se é transgredir, ele dizia. Mas ao mesmo tempo em que a fórmula parece fazer abstração da luta de classes e das categorias políticas do conflito social, Boal exigia que os casos de opressão pessoal discutidos por seus grupos fossem exemplares segundo pontos de vista políticos e sociais. A ferramenta do teatro a serviço da mudança, em todos os níveis da existência. Como hegeliano, Boal trabalhou por um sistema. Como artista, manteve-o inconcluso, à espera da modificação prática.
No simbolismo de que todos nós podemos ser atores se encontra o desejo radical de que os oprimidos pelas dinâmicas da exploração se tornem sujeitos da história. Daí sua inversão revolucionária do sentido do teatro, daí a constatação de que esse trabalho depende sempre do outro, de continuados intercâmbios com agentes da luta social, o que inclui sua experiência como vereador e o belo trabalho com o MST nos últimos anos.
Pouca gente amou tanto o teatro como Augusto Boal. Ele, que nos ensinou a desmontar a teatralidade opressiva entranhada nas formalizações culturais e nos mostrou que o teatro deve ser praticado com risco, pois o que está em jogo é o combate pela vida.
Publicado em Vintém n.7, 2009, pp-61-66. É uma versão diversa do texto Um idealista prático, publicado em Carta na Escola, edição 37, São Paulo, Editora Confiança, Junho-Julho 2009, pp.52-55. Foi depois incorporado ao posfácio publicado no livro Jogos para atores e não atores, de Boal. São Paulo: Sesc, Cosacnaify, 2015. Relançado recentemente pela editora 34.
Esta conversa entre o crítico literário Roberto Schwarz e o diretor teatral Sérgio de Carvalho discutiu a peça A Lata de Lixo da História. Ocorreu durante o I Seminário Internacional Teatro e Sociedade organizado pela Companhia do Latão em 10 de setembro de 2014. Aconteceu após a leitura de algumas cenas, feita por atores do grupo.
Sérgio de Carvalho: O núcleo de assunto da Lata de lixo parece estar contido na frase de um dos oradores de Itaguaí: “precisamos do que abominamos, isso é que é”. Ela alude à aliança contraditória entre as forças da elite proprietária e as da repressão social no momento da ditadura, mediadas por um populismo que a peça parece considerar recorrente nas supostas revoluções ou contrarrevoluções nacionais. Foi essa a motivação de assunto do texto? Em que medida ela se liga aos debates da época? Que questões te interessavam no momento da escrita?
Roberto Schwarz: Quando concluem que precisam do que abominam, as classes proprietárias estão se referindo às teorias malucas e autoritárias de Simão Bacamarte. Inicialmente supunham que as teorias seriam aplicadas só aos pobres, a quem botariam na linha. Quando veem que Simão também as aplica às elites, passam a abominá-las. Entretanto, constatam que a luta social está em curso e que precisam da autoridade científico-policial de Simão para manter os pobres em seu lugar. Daí a frase ressabiada, “precisamos do que abominamos”. Essa conclusão, que aqui é cômica, corresponde bem à situação de nossa faixa liberal na época em que a peça foi escrita, em 1969. Porque a faixa liberal das elites brasileiras não era a favor da ditadura, era a favor só da repressão dos pobres, desde que a repressão não a atingisse a ela. Em 1968, 1969, nas grandes manifestações estudantis, de classe média, os pais dos estudantes espancados ficavam horrorizados porque não imaginavam que a polícia espancasse daquele jeito. Eles imaginavam que espancasse trabalhadores, mas não os seus próprios filhos. Mas em um contexto de luta social, acabavam reconhecendo que essa repressão era necessária. Assim, esse “precisamos do que abominamos” é uma síntese da situa- ção social da época em que a peça foi escrita.
Você observou que na peça a liderança do levante é populista, não tem dúvida. Aí há um ponto interessante do Brasil de então, que talvez venha até hoje: é o gradiente dos populismos, do avacalhado ao substancioso. O populismo ia desde homens como o Ademar de Barros, famoso pelo “rouba, mas faz”, muito escrachado, até o Jânio Quadros, que talvez roubasse um pouco menos, mas que com certeza também não era santo — além de cultivar uma espécie de loucura demagógica e autoritária —, até um homem como o Getúlio, que era um líder populista diferente, que fez muita coisa socialmente importante, até o Jango Goulart, que se identificou muito consideravelmente a causas po- pulares, com cujas bandeiras foi derrubado.
Assim, quando você observa que o levante é dirigido por um populista, é preciso especificar um pouco. De fato o Canjica, líder popular na peça, é um líder que gostaria de ser admitido ao mando, sendo ele mesmo um popular. Ele propõe uma democracia na qual ele seja aceito pelos notáveis da cidade, que o cooptariam. Ou ainda, ele negocia com os ricos a liderança que tem sobre a insurreição popular, dizendo “Eu controlo os de baixo enquanto vocês me deixam participar do governo”. Há elementos históricos variados entrando nessa ideia de populismo, que permite circular entre os séculos XIX e XX, e talvez XXI.
Você pergunta como me veio a ideia dessa adaptação. Eu estava estudando Machado de Assis, para escrever a minha tese. Num certo momento fui lá reler O alienista e fiquei boquiaberto diante da adequação da peça àquele momento. O conto encena uma ditadura em briga com uma liderança populista, briga cujas idas e vindas se pareciam muito com o que estava acontecendo na atualidade. A realidade a que isso se referia era mais ou menos a seguinte: como vocês sabem o Brasil passou por um período de radicalização política forte entre 1960 e 1964, radicalização essa que de certo modo foi dirigida, controlada e até certo ponto refreada pelo Partido Comunista. Tudo terminou mal, veio o golpe de 1964 e os comunistas não tinham sido capazes de organizar a resistência. Entre as pessoas de esquerda se criou certa indignação com a maneira, quase se diria ingênua, ou pacífica, com que o Partido havia dirigido o processo. Desenvolveu-se então, entre 1964 e 1969, uma reflexão crítica que buscou ser mais consequente e radical, o que levou à ideia de que a resistência não poderia ser pacífica. Através de uma análise às vezes acertada e às vezes iludida, uma parte da esquerda foi optando pela luta armada. Já em 1969, a própria luta armada, que mal se havia declarado, começou a ser massacrada também ela com grande facilidade, o que vai obrigar a uma segunda revisão. São momentos sucessivos de autocrítica da esquerda: um primeiro em que se critica a via pacífica, e um segundo em que a luta armada, massacrada por sua vez, deixa a esquerda mais derrotada ainda, e dessa vez derrotada com uma violência terrível. Diante das duas derrotas e com o terror instalado, a perplexidade era grande.
A minha peça cobre esse arco do levante popular derrotado e termina com um happyend de pura justiça poética, sem nenhuma verossimilhança. O happyend da peça é duplo: no primeiro, Simão Bacamarte pede ele mesmo para ir para a cadeia, por louco, e com isso livra a cidade do terror. Esse é um fim pouco provável para uma ditadura, o ditador dizendo “agora, vocês caros cidadãos, tenham a bondade de me botar na cadeia e gozem de sua felicidade”. A elite de Itaguaí de fato fica felicíssima e faz uma grande festança, um grande coro de alegria, proclamando que Simão Bacamarte é o maior cientista do mundo. E aproveitam a ocasião para descascar o couro nos pobres. A cena final do primeiro happyend é uma enorme pancadaria, em que os de cima estão livres e os de baixo apanham para valer. Quando parece que a peça acabou, acontece um segundo happyend, agora o happyend da turma de baixo. Um dos de cima está saindo de cena muito satisfeito com a surra homérica que acaba de dar nos pobres. De passagem ele dá mais um sopapo num boneco. Mas este não é um boneco, é um homem, que lhe prega um tabefe e o joga a vinte metros, para dentro de um buraco onde está escrito “a lata de lixo da história”. É igualmente inverossímil, mas é justo. É como a cena final d’A Ópera dos três vinténs, de Brecht, em que Mac Navalha está para ser enforcado quando chega o enviado da rainha, que não só o salva como ainda por cima lhe dá de presente um banco. Também não é muito verossímil, mas contribui para a alegria geral.
Sérgio de Carvalho: Do ponto de vista da forma, a peça tem ao lado do jogo verbal cômico afiadíssimo e do escancaramento farsesco, uma organização alegórica das cenas que faz lembrar o teatro do Oswald de Andrade. E em algumas passagens lembra também o cinema do Glauber Rocha, em suas coreografias grandiloquentes e irônicas. Eu gostaria de te ouvir falar sobre essa teatralidade da alegoria, que já está sugerida pelo Machado, só que um pouco submersa na estrutura. E, para além disso, que recursos de distanciamento você procura utilizar no texto? Ele dialoga declaradamente com o Brecht em algumas passagens: queria que descrevesse suas referências formais.
Roberto Schwarz: A peça é uma chanchada. Segundo o dicionário, chanchada vem do italiano e do argentino e é um gênero popular, vulgar, de chancho que é porco. A chanchada é uma “porcalhada”, uma forma literária de rebaixamento. Não sei se vocês viram as chanchadas do Oscarito e do Grande Otelo. Enfim, trata-se de uma comicidade popularesca e rebaixada, abaixo do nível do que as coisas realmente são. Acontece que uma chanchada pode ser também realista, dependendo do ângulo. Como — do ponto de vista do escritor de esquerda — os motivos da classe alta são uma porcaria, o rebaixamento trazido pela chanchada pode aparecer como recurso realista, capaz de captar aspectos que as elites não assumem a seu próprio respeito, mas que do ponto de vista da esquerda são reais. Quando um notável fala dos seus nobres motivos, vem o crítico de esquerda e diz que eles não são nobres nada, são estritamente econômicos, por exemplo. Esse é o exemplo clássico do desmascaramento de esquerda: onde a elite afirma motivos nobres, o crítico diz que são baixos. Ao compor uma peça literária com estes motivos baixos, o escritor se filia ao gênero divertido, quase se diria inocente, da chanchada, que entretanto corres- ponde ao que ele considera real e verdadeiro. A chanchada no caso não é uma estilização arbitrária, mas uma maneira de captar um aspecto real das coisas. Dentro deste rebaixamento pode haver muita consistência, porque os motivos baixos têm lógica também. Quando Brecht, na Santa Joana dos matadouros, apresenta o sistema dos motivos baixos que movem o capitalista há aí um as- pecto de chanchada, sem dúvida nenhuma, mas há também o aspecto realista, o propósito de captar um mundo que não é assumido mas existe.
Tudo isso hoje soa um pouco remoto porque a partir de certo momento — talvez a partir da década de 1960 do século passado — as elites passaram a as- sumir os motivos econômicos explicitamente. Se vocês pensarem nos grandes “desmascaradores” do século XIX, Marx e Freud, verão que eles examinavam o sistema ético da elite e diziam: “Isso é tudo mentira. Atrás da fachada há coisas nunca confessadas, basicamente o motivo econômico e o motivo sexual”. O desmascaramento no século XIX era uma denúncia devastadora, que trazia à tona o lado inadmissível das coisas. A partir de meados do século XX, entretanto, as elites começaram a assumir tanto os motivos sexuais quanto os econômicos explicitamente. A crítica a partir daí se vê numa situação nova e difícil. Agora, se o crítico denuncia os motivos econômicos da elite, esta responde: “mas é claro que eu tenho interesses econômicos, sou uma pessoa responsável, só irresponsáveis não tem motivos econômicos, que são a própria razão”. A esquerda fica um pouco sem saber o que objetar, porque se os capitalistas passam a indicar que economia é de fato a coisa mais importante do mundo, empurram a esquerda para uma oposição meio idiota, sem assun- to. A esquerda fica com ar de virgem assustada diante do cinismo do capital, que além do mais aparece como a própria encarnação do bom senso. Isso é só para indicar como a situação cultural-política da chanchada pode variar segundo o momento.
Mas para vocês verem como o clima de chanchada pode conter preocupações sérias, vou ler uma fala da peça. O momento é o seguinte: os dragões do rei chegam para reprimir o movimento popular. O cacique, que manda neles, dá ordem de disparar. Um soldado se nega. O cacique o acusa de criminoso e manda que os companheiros o matem. Eles se negam e chegam à conclusão de que o seu chefe — o cacicão — não vale nada. A tropa passa para o lado dos insurretos. A revolução de repente ganhou, ou seja, os revoltosos estão no poder. Como vocês sabem, esse é um momento clássico das revoluções, quando os exércitos mudam de lado. A forma aqui é cômica, de comédia de pastelão, mas ainda assim os problemas que surgem são sérios e novos, visto que agora é o povo que está no poder. Ouçam um exemplo, ligado ao momento da vitória: “Uma voz feminina lê — Companheiras e companheiros, peço a máxima atenção possível, começa aqui uma era diferente, em que tudo vai depender de nós. A baixeza dos notáveis ficou clara, mas e daí, pergunto eu, e daí? A baixeza deles prova o quê? Ela prova que eles são uma porcaria, mas não que nós temos a solução, isso nós é que temos que provar. Agora toca a nós mostrar que somos capazes de alguma coisa nova, nova e superior. Sem a luta por um sistema superior fica tudo na mesma, não é isso? Precisamos conversar, usar a cabeça e nos organizar. Acabou o tempo amargo em que trabalhávamos para os outros. Daqui para frente vamos trabalhar juntos, para nós mesmos. Procuremos entender, não é fácil. Outra voz: E os escravos, para quem vão trabalhar? Outra: Para quem seria? Só pode ser para nós, que os herdamos dos seus donos anteriores. Outra: Não acho tão claro. Vamos ver o que eles acham. Nova voz: Paz à senzala, guerra à casa grande!” Aí começa o movimento abolicionista, que radicalizaria a revolução, mas será recusado por ela.
O que interessa aqui é que sem prejuízo do clima geral de chanchada, a questão levantada não é bobagem e vale até hoje. Vocês vejam que essa questão, formulada com seriedade por uma voz feminina, logo em seguida será atropelada pelo movimento geral dos interesses. Trata-se de saber para quem vão trabalhar os escravos: para os seus antigos donos ou para os rebeldes, os escravistas de esquerda, que são o governo popular. O novo governo traz em si estas contradições e é derrubado antes que qualquer coisa se resolva.
Sérgio de Carvalho: Pelas rubricas da peça é possível ver que você imaginou uma modalidade de cena muito física, com lutas grotescas, com os espancamentos dos bonecos, o samba tresloucado, e algumas canções que permitem até números coreográficos. O embate mais abstrato subitamente se converte no gesto mais concreto, como na cena em que uma pedra cai sobre o palco. É nessa linha de explicitação do contraste que você pensou na dimensão cênica do seu texto?
Roberto Schwarz: Eu me interessei muito por essa questão das coisas que não são ditas e que determinam tudo que é dito. Há uma dimensão geral na peça, que é central para a encenação, que são as pancadarias. Ao longo da conversação elegante e espirituosa, que Machado não deixa faltar, a elite bate nos bonecos que estão em cena. Há uma dimensão de brutalidade que não é falada e que entretanto é determinante de tudo que se diz. Guardadas as diferenças, é como se vocês imaginassem hoje uma senhora recebendo visitas em sua casa e maltratando a empregada na frente de todos sem nenhum constrangimento. É esse tipo de coisa que eu procurei apresentar em um grau extremo através das surras nos escravos ou através da pedra enorme que deveria rachar a cabeça do dr. Simão — ela não acerta e cai ao lado dele — porque naquele momento há uma conspiração contra o alienista. A brutalidade física deve enquadrar tudo que é dito na peça. Como já expliquei, isso capta ou formaliza um aspecto da sociedade escravista, em que você tem um tipo de relação que é real e decisivo e que entretanto não é assimilado como elemento de auto-identidade das elites. As pessoas educadas do Brasil não diriam que se definem pelo fato de terem escravos e baterem neles; definem-se pelo fato de irem a Europa uma vez por ano, de vestirem trajes europeus, de estarem em dia com a literatura francesa etc e não pelo fato de espancar escravos. Mas espancam. Eu procurei colocar juntas estas coisas de modo a criar um contexto mais real para algo que subsiste no Brasil até hoje.
Sérgio de Carvalho: Talvez descrevendo melhor o que pensei há pouco: no seu conjunto a peça combina os extremos de uma atuação física do estilo da chanchada bufa com a exposição dos excessos de uma oratória barroquizante, ridícula e destrutiva. Ela expõe, assim, um teatralismo político de uma elite pré-moderna que não disfarça suas motivações econômicas, e os gozos retóricos em torno de uma certa ideia de cultura nacional, em um momento de ajuste de forças. Por outro lado, como ocorre muitas vezes na cena alegórica de Oswald de Andrade e Glauber Rocha, o teatralismo assim exposto pode gerar uma confusão entre a forma e o objeto. E a discursividade escancarada desloca o interesse do assunto para o plano da maestria técnica do autor: no seu caso para a excelência literária impressionante. Diante disso, eu gostaria de saber se a sua opção estilística procura dialogar com as tendências do teatro da época ou correspondem ao seu gosto por uma teatralidade brasileira modernista? Indo mais além, não há nessa peça certa atitude tropicalista, imagem em que o lado do atraso se dá no plano do assunto crítico e o lado moderno em uma performatividade da linguagem? O maior dos críticos ao tropicalismo — quando se torna artista — não é também um pouco tropicalista?
Roberto Schwarz: Agradeço a pergunta, que é ótima e tem fundamento. Como procurei explicar aqui, há um traço de estrutura da sociedade brasileira que vem do século XIX, no qual estão combinados, de maneira algo grotesca, aspectos modernos e aspectos socialmente arcaicos, elementos modernos, atualizados com a civilização burguesa, e resquícios da colônia. Alguns artistas captaram essa dualidade e fizeram dela um princípio organizador de sua construção artística. Talvez não sejam os piores, pois deram forma a alguma coisa real. Machado de Assis fixou essa combinação e extraiu dela a problemática moral das elites brasileiras do século XIX. Por seu lado, os modernistas tam- bém trabalharam com essa combinação. Pegaram o fundo colonial da sociedade brasileira, juntaram com formas artísticas de vanguarda europeia e tiraram dessa conjunção uma visão eufórica do país. Onde Machado viu razões de pessimismo — ele obviamente era mais amargo que os modernistas em relação a essa questão — estes viram na combinação entre ultramoderno e pré-burguesa possibilidade de saltar ou esquivar o período burguês. O Brasil seria o país privilegiado que poderia se dar ao luxo de não passar pelo período capitalista, de passar por cima dele, de queimar uma etapa. Combinaria as possibilidades da civilização adiantada — da arte, da tecnologia e da política modernas — ao caráter inocentemente pré-burguês e pré-cristão da vida popular colonial. Isso daria uma espécie de paraíso, um país utópico o qual saltaria diretamente da felicidade do atraso ingênuo para o paraíso pós-burguês. Para que vocês vejam que essa ideia não é simplesmente doida, não custa lembrar o exemplo da Rússia anterior à revolução, com as suas comunas camponesas. O valor humano e civilizacional destas parecia incontestável a muitos, a despeito de serem obviamente pre-burguesas. Há a respeito uma famosa correspondência entre uma revolucionária russa, Vera Sassulitch, e Marx, em que Vera dizia que o progresso do capitalismo destruiria essas comunidades, o que ela via com tristeza. Em resposta, Marx especula que, por um movimento desigual e combinado da revolução socialista — uma noção que depois foi consagrada por Trotski, mas que Marx já explorava — a destruição talvez pudesse ser evitada. Poderia acontecer que o socialismo, apoiado na técnica moderna e em um novo tipo de organização social, pudesse preservar as conquistas das velhas comunidades, queimando no caso a etapa penosa da civilização capi- talista. Isso é interessante para o nosso argumento porque mostra que houve outros doidos que se interessaram por ele, que a ideia de saltar um período não é simplesmente absurda, e que um pensador racional como Marx aventou essa possibilidade. Oswald de Andrade, do seu jeito, estava pensando nisso mes- mo, quer dizer, sonhava que o Brasil seria poupado dos sofrimentos da etapa do capital e que, apoiados na técnica moderna, europeia ou norte-americana, e na cultura do nosso povo atrasado e “sem culpa”, passaríamos ao largo desse período cruel da humanidade. Essa foi uma segunda exploração artística — a dos modernistas — desse descompasso entre moderno e colonial no Brasil.
A terceira valorização importante desse traço estrutural do Brasil foi obra dos tropicalistas. Eles captaram esta mesma questão e a trataram de duas ma- neiras: num primeiro momento, de mais exasperação e crítica em relação ao golpe de 1964, trataram a persistência do ultrapassado em chave negativa e agressiva, de absurdo intolerável. Foram os momentos polêmicos de Caetano, no começo do tropicalismo. Em seguida eles passaram a idealizar essa com- binação do moderno e do antigo, a pitoresquizá-la e a fazer dela a essência do Brasil, como algo positivo, além de imutável, numa espécie de neo-ufanismo. Nesse momento, até onde vejo, o tropicalismo toma um rumo conservador. Por meu lado, me interessei por essa mesmo dualidade, mas procurando explorá-la como problema, e não como uma essência nacional ou algo positivo. Dentro de minhas possibilidades, tratei de combinar a invenção à análise crítica. Respondendo à sua observação, diria que a minha peça compartilha certo ambiente com o tropicalismo, uma certa combinação de tempos e dissonâncias, além da estridência, mas conservando em relação a elas uma atitude racional e distanciada, e nesse sentido ela é antitropicalista. Digamos que há um universo em comum, e também diferenças de fundo.
Sérgio de Carvalho: Eu queria te ouvir falar da atualidade da peça diante da cultura do país atual. É possível fazer uma comparação de momentos?
Roberto Schwarz: Não há resposta direta. Escrevi a peça em 1969, para aludir à ditadura de 1964, mas também para adaptar ao teatro um conto de Machado de Assis, cuja dinâmica interna é poderosa. O valor artístico mais forte é o da consistência interna, que valida ou invalida as alusões ao presente. É ela que comanda as eventuais verdades modernas e “anacrônicas” da peça. Certamente a encenação hoje teria que visar a sua capacidade de alusão ao presente. Mas quem confere acerto literário às eventuais semelhanças é a consistência interna, a dinâmica do movimento social bem como os seus impasses. Por exemplo o momento em que o levante popular constata, apoiado no que foi visto nas cenas anteriores, que as classes proprietárias não valem nada. A conclusão é bem fundada na experiência feita. Não obstante, entra em cena uma voz feminina mais reflexiva, que diz que tudo isso é bem verdade, mas que também os revoltosos estão sendo postos à prova, e que mesmo que seus inimigos sejam desprezíveis, nada garante que os rebeldes sejam bons ou tenham a saída. Esta fala, que talvez seja a principal da peça, não estava na versão de 1969 e foi escrita agora. Ela acolhe a dinâmica interna do Alienista e a dificuldade da situação de nossos dias.
(Publicada originalmente na revista Terceira Margem, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Número 30, ano XVIII, julho-dezembro de 2014. Há uma breve palestra do autor na versão publicada na revista, que antecede este debate.)
(por Sérgio de Carvalho, Mariana Mayor e Paulo Bio Toledo)
De que modo pensar as artes cênicas como realização social? Em que medida categorias teóricas podem atrapalhar a observação concreta dos fenômenos culturais? Como as formas cênicas podem expressar, ao mesmo tempo, a beleza e o horror da vida nacional? De que modo o escravismo e a mercantilização colonial aparecem ainda hoje nas formas culturais praticadas no Brasil? Essas são algumas das questões que atravessam este diálogo entre Sérgio de Carvalho e os pesquisadores Maria Mayor e Paulo Bio Toledo, que foram seus orientandos de mestrado e doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. O ponto de partida da entrevista é a pesquisa atual realizada por Sérgio de Carvalho, no Instituto de Estudos Avançados da USP, sobre o teatro jesuítico do século XVI. A síntese aqui registrada exemplifica o modo de trabalho do Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade (LITS), do qual os três fazem parte.
Paulo – No prefácio do historiador Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes, sobre o Atlântico no século XVI e a colônia, ele conta que resolveu estudar o assunto depois que recebeu a notícia da morte de três colegas de universidade na década de 1970 (sendo um deles Heleny Guariba). Ele diz assim: “Entender a sua morte, entender o Brasil, era o que queria fazer dali em diante, é o que tento fazer neste livro”. Ou seja, um recuo de séculos para compreender algo de uma sociabilidade horrível que ele testemunhava. O que me faz pensar no seu interesse atual, Sérgio, para o século XVI, para o chamado Teatro Jesuítico. O que o levou a esse momento da história brasileira?
Sérgio – O que me moveu para uma pesquisa histórica desse tipo, antes mesmo do interesse pelo tema, foi uma questão de método. Anos atrás, quando ingressei na USP como professor, fui responsável por uma disciplina de graduação chamada Teatro e Sociedade. Ao invés de uma abordagem dentro do campo da Sociologia do Teatro, perspectiva importante, e da qual eu não poderia fugir vez ou outra, procurei fazer aquilo que o Peter Szondi chama de “semântica da forma”: eu selecionava algumas obras, uma tragédia de Ésquilo, por exemplo, e tentava ler o texto, junto com os estudantes, do ângulo da interação entre formas e processo social. Fazíamos perguntas sobre como os ritmos sociais, as dinâmicas da sociedade daquela época se materializam na forma literária ou cênica. Eu procurava, ainda, inscrever a obra num conjunto de formações ou de instituições da cultura, como o festival dionisíaco, a cidade guerreira, para compreender os lugares sociais que a envolvem e a orientam. A contextualização histórica tentava preparar as perguntas críticas, cujas respostas incertas envolvem sempre uma interpretação: em que medida alguns debates da vida política, econômica e cultural aparecem na evolução coreográfica, no dialogismo dos episódios, e no canto do coro de uma peça ateniense, forma coletivizante que, na interpretação de Vernant e Naquet, mimetiza a argumentação retórica dos discursos jurídicos? Essa tragédia pode ser lida como uma luta entre os valores sociais das famílias antigas, dos clãs com sua ética da vingança, e os valores novos, mais abstratos e emergentes da cidade guerreira e mercantil? Isso me obrigava a especulações que supõem a dialética entre forma e conteúdo. Era preciso discutir os sempre fugidios “enunciados da forma” em perspectiva histórica. Em paralelo à universidade, eu desenvolvia, como faço há anos, um trabalho artístico: como dramaturgo e encenador na Companhia do Latão. Ele me levava a observações semelhantes, ainda que de sentido inverso. Entre 2007 e 2010, estudamos a produção cultural da década de 1960 para a escrita do espetáculo Ópera dos Vivos. Nesse longo processo de ensaios, eu percebi que não adiantava discutir o valor estético do CPC da UNE ou do Teatro de Arena, coisa que fazíamos para compreender seu estilo, se eu não tentasse entender também o conjunto do trabalho cultural que eles experimentaram. O trabalho, como ensinava Brecht, deveria ser a categoria orientadora do estudo do modelo. Era importante entender a dimensão prática completa para que as peças daquela geração mostrassem sua beleza para nós. No debate sobre os Centros Populares de Cultura, que o Paulo estudou tão bem (1), é comum que se reproduza, ainda hoje, um estereótipo de julgamento: dizem que havia precariedade estética no CPC porque era um teatro instrumentalizado politicamente. E essa suposta fraqueza estética, que aparece em algumas peças de ares ingênuos, decorreria de uma visão populista. Esse juízo, porém, é falso porque não compreende a força daquela “ingenuidade”, que pode ser reconstituída fora do texto. A vitalidade da arte do CPC não estava nas obras, e sim no conjunto do trabalho estético-político que “dizia coisas” junto com elas. Quando formamos o nosso Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade (LITS), a proposta era, portanto, reler algumas dessas experiências brasileiras do ângulo do trabalho. Ele se manifesta na forma, mas envolve várias relações socioculturais, e sua descrição demanda diálogo com um contexto histórico mais amplo. Como são obras nascidas de um embate com modelos estrangeiros, elas pedem, ainda, uma compreensão de sua especificidade local, o que obriga muitas vezes ao recurso comparativo. Foi isso, por exemplo, que a Mariana fez para compreender o trabalho teatral da Casa de Ópera de Vila Rica (2): com base num paralelo com a cena de Portugal, ela conseguiu identificar as razões do nosso arremedo local de cultura “operística”, com encenações de temática ao mesmo tempo cristã e iluminista, nas condições de uma colônia escravista. Através de um caso concreto, ela pôde mostrar dinâmicas mais gerais. Enfim, acho que caí nos jesuítas em função desse gosto pelo estudo das relações entre vida material e cultural, algo praticado em áreas como literatura e cinema, mas ainda incomum nas artes cênicas. E essa perspectiva tem me interessado tanto do ponto de vista acadêmico como artístico.
Paulo – De fato, olhar para as condições de produção e de trabalho das manifestações culturais muda tudo. No caso do teatro dos anos 1960, o desprezo por isso levou a uma série de simplificações esquemáticas sobre o engajamento brasileiro, na maior parte das vezes simplificações depreciativas, que apagaram a maior vitalidade experimental daquele momento, quando se buscou reorientar o lugar social do teatro, não é? E, do mesmo modo, seus estudos atuais têm mostrado que olhar para uma peça de teatro jesuítico sem fazer perguntas básicas do tipo: onde aquilo é apresentado? Para quem? Em que situação?, restringe demais o problema. Olhar para essas questões do trabalho coloca as coisas num lugar muito mais contraditório, dialético, faz duvidar de fórmulas fáceis como “teatro catequético” ou “instrumentalização política da arte”, por exemplo, porque desloca a forma idealista de observar o fenômeno estético.
Sérgio – Eu comecei também o estudo sobre teatro jesuítico por razões bem pessoais: desde a adolescência gostava de ler a crônica do século XVI, porque gostava do estilo da prosa. Esse conhecimento daquela bibliografia me permitiu, anos depois, observar que mesmo os melhores textos sobre a dramaturgia de Anchieta, como os de Décio de Almeida Prado ou de Alfredo Bosi, reproduziam uma ideia incorreta: a de “teatro catequético”. Hoje acho que a obsessão universitária com fórmulas de enquadramento pode ser muito ruim para as artes: a ideia classificadora acaba por se impor, e as leituras das obras passam a se balizar por ela. O referenciamento antecede a observação, e a abstração reproduzida supõe uma ordem estável. Mas a ideia de catequese, por exemplo, se ligava ao ensino da doutrina cristã. Havia um repertório que incluía as orações básicas da igreja, o conhecimento dos pecados etc. E a transmissão dessa doutrina cristã aos povos originários, no século XVI, era feita pelos jesuítas sobretudo com as crianças: elas repetiam em coros tupis o “Pai Nosso”, cantavam, respondiam às perguntas religiosas. Quando lemos os poemas e diálogos, atribuídos a Anchieta, e tentamos imaginar os espetáculos e o contexto em que eram feitos, observamos que as cenas eram parte das grandes festas, apresentadas para grupos já doutrinados há muito tempo, em duas situações sociais predominantes: a do aldeamento, aquela absurda “redução” humana em que indígenas de etnias diferentes eram “descidos” e agrupados num vilarejo, em torno de uma igreja erguida no limite do sertão; ou a dos colégios das cidades. Fosse o que fosse, aquele “teatro” das festas tinha várias funções sociais, que variam conforme o caso. Mas era sempre uma cena pós-catequética. A categoria tira a complexidade do real e dificulta que você veja outros mecanismos de pressão cultural, do qual o espetáculo era só uma parte. Ela também apaga a possibilidade de reconhecer os meios com que os povos originários conseguiram resistir ou mudar aquele modelo cultural imposto. E se eles puderam reinventar essas estruturas culturais em formas sincréticas posteriores é porque também elas tinham suas brechas e precariedades. Tanto que essa cena jesuítica das festas precisou das armas para se implantar entre os tupinambás: foi só depois da chegada do governador Mem de Sá e dos massacres da Guanabara que a estrutura do aldeamento se impôs por toda a costa. A categoria “teatro catequético” é imprecisa porque sugere uma relação simples de aculturação, como se houvesse de um lado a cultura dos cristãos e de outro a dos tupinambás, numa situação “virgem”, sem outras mediações. Idealismos desse tipo tiram o sentido dos documentos: o que havia, na verdade, eram muitas interações contraditórias, em que a cena era apenas uma delas, em meio a uma celebração cristã que confirmava uma história violenta anterior, a da modificação das relações com a terra. Meu esforço com esse estudo é ler, com base na reconstituição dos contextos, alguns desses documentos da “cultura como barbárie”, principalmente nos aspectos que têm consequências até hoje.
Paulo – Ainda existe uma busca insistente por algo como uma identidade, uma necessidade de definição do que é Brasil, do que é cultura brasileira. Tenho a impressão de que no campo da cultura atual vem surgindo com força um tipo de interesse por formas de teatralidades originárias, o que parece ser uma atitude contra- hegemônica, porém, muitas vezes, parece envolta num tipo de “fetichismo”, por assim dizer…
Mariana – Uma atitude mistificadora também, idealizante do que seriam essas raízes.
Sérgio – Eu tenho a impressão de que a idealização, qualquer que seja, pressupõe o afastamento do real em algum nível. Nem sempre isso é ruim, porque pode servir para uma projeção utópica, para o distanciamento de uma situação de dominação ou hegemonia, ou para a observação crítica de uma realidade insuportável. E precisamos com urgência reconhecer o valor das ações culturais que não pertencem à visão de mundo dos colonizadores europeus, responsáveis por nossa história de massacre. O efeito de mistificação surge quando você acha que uma ideia, conhecimento ou valor opera por si, que ele possa ter uma força absoluta, independente da ação das pessoas, como se houvesse uma “identidade” cultural em abstrato, que atravessa as gerações como se fosse um deus alado, sem pisar o chão nem se transformar no contato com os agentes ou lugares concretos em que a cultura vive. Quando você estuda um pouco da prática dos povos originários no século XVI, você vê que ela depende de um vínculo não proprietário com a terra, do movimento livre através do território, do deslocamento entre lugares e mundos, inclusive os espirituais. Converter os tupinambás ao cristianismo não era só questão de fé ou de crença, era um problema ligado à necessidade de impedir que esses povos seguissem sua vida nômade. Era preciso cessar o movimento indígena, incluído aí o transe ligado à vingança antropofágica. Os jesuítas percebem isso muito cedo: a questão da crença é antes uma questão de “costumes”, ou seja, de prática. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, num livro famoso sobre a “inconstância da alma selvagem” – frase que era um lugar – comum retórico do século XVI, porque os indígenas se diziam cristãos e depois mudavam de ideia, sem apego à conversão declarada ̶ , sugere que essa inconstância constituía um fundamento programático, uma orientação epistemológica para a metamorfose. Nessas comunidades não proprietárias, o princípio da autoridade não se fixava. Daí o desespero dos jesuítas que não sabiam negociar com tanta instabilidade. Na verdade, acho que a grande mudança cultural daquele momento foi a imposição da propriedade da terra, garantida pelos canhões da colonização. Assim, para reviver hoje a força de qualquer experiência cultural, você precisa produzir também condições materiais para que essa experiência renasça e se modifique. Anos atrás entrevistamos, na Companhia do Latão, uma liderança Guarani Mbya, chamada Jerá. Ela dizia que não adianta um discurso contra a cultura mercantil dos brancos se não houver terra onde as pessoas possam experimentar outras formas de relação com a natureza, com o mundo e com as tradições.
Mariana – Ao mesmo tempo, a gente vive a contradição, por ser um país colonizado, de ter a maior parte das fontes documentais sobre povos indígenas feita pelas mãos dos próprios colonizadores. Como reconstituir materialmente as formas de vida indígena antes de 1500? Talvez pela dificuldade da tarefa, o discurso mistificador ganhe destaque, ainda mais hoje com alguns debates sobre o decolonial. Tenho a impressão de que há a perspectiva de pensar a colonização como se fosse apenas uma ideia a ser negada, e não como se fosse um fato, um processo histórico estabelecido que atravessa toda a sociedade brasileira.
Sérgio – A única chance é “ler a contrapelo” e virar do avesso essa documentação elaborada pelos invasores, às vezes os únicos registros de mundos já exterminados. Mas também há hoje outras fontes importantes. Uma é a arqueologia, que dá pistas sobre a vida dos povos mais antigos da terra, de seus embates e trajetórias. E outra, muito importante, pode ser localizada na voz das pessoas vivas, dos descendentes. Há estudos antropológicos influenciados pelos próprios povos originários que há algum tempo estudam aspectos que são de tradição oral, gestual, ligados a costumes e cerimônias, que permitem rever os movimentos mais antigos.
Mariana – Vendo por outro lado esta nossa conversa, o processo de aclimatação local de modelos transpostos é uma questão fundamental, não? Lembro de você falando muitas vezes durante nossos percursos de pesquisa: “estudar o Brasil nunca é só estudar o Brasil; estudar o teatro brasileiro nunca é só estudar o teatro no Brasil. É preciso, ao mesmo tempo, olhar para fora e observar a relação com os modelos”.
Sérgio – É o que comentei da sua pesquisa sobre Vila Rica: ela se realiza quando você observa também o contramovimento. Havia um modelo de teatro musicado transposto da Europa que leva uma “elite” culta a construir um edifício teatral. Mas há também a resistência a esse modelo gerada pelas condições objetivas do trabalho artístico feito por pessoas negras, numa cidade organizada pela mineração. Estudos de interações como essa podem gerar muitas percepções novas sobre a história das formas cênicas no território. É um debate de qualquer forma amplo, complexo, mas está mais do que na hora de mudar o que convencionalmente chamamos de História do Teatro. Porque história e teatro são construções teóricas que surgem na passagem do século XVIII para o XIX. A rigor, são fruto dessa “comunidade imaginada”, na expressão de Benedict Anderson, chamada nação. Pelo fato da História do Teatro ter sido hegemonicamente construída como história de uma parte da cultura nacional, ela reproduz alguns padrões ideológicos dominantes nesse campo. O primeiro é que deve ser uma história ligada à língua e ao território demarcado. Essa tradição passa a selecionar os autores da língua tornada oficial. Em Portugal, por exemplo, quando se olha para o passado, o historiador vai ter pouco interesse pelo teatro feito em latim, que foi muito forte e teve valor literário. E vai muito menos observar aspectos que se desliguem da literatura ou da concepção de uma forma dialógica de teatro, como a dança dos árabes que habitaram a península ibérica. Essa história do teatro nacional precisa também ser laica, porque ela se constrói como narrativa de emancipação da festa cristã, no sentido de uma autonomização estética de tipo burguês. Um exemplo observado na minha pesquisa recente é o do nome “drama litúrgico”. Até onde sei, não há uso medieval disso: a expressão surge no século XIX para indicar um princípio laico que supostamente emerge do coro religioso, o que é uma visão discutível e ideológica, um desejo de que no canto monástico surja um indício “dramático” da individuação posterior. E o terceiro aspecto decorre dessa identificação das burguesias europeias com o projeto filosófico do sujeito moderno. Assim, a história do teatro quer ser também a história de uma subjetividade que se forma por dentro do espetáculo, de uma cena que mais e mais se confina a edifícios fechados, onde é apresentada em palcos à italiana, esse cubo cênico da perspectiva individualizante. É isso que permite o destaque do dialogismo literário, dentre as formas capazes de configurar uma interação subjetiva. Começa no século XVII a identificação entre teatro e forma dramática. O teatro – não mais um espaço cênico aberto “de onde se vê” tudo, como no mundo antigo – é uma invenção da modernidade burguesa ao se autocompreender como literário, laico, dramático, portanto subjetivista e fechado, ao se orientar para uma especialização no campo estético, de interesse mercantil. E a consciência disso é formulada no século XIX com o nome de história do teatro.
Paulo – Tudo oposto ao teatro jesuítico, que não é em português, não é laico e não está lidando com subjetividade.
Sérgio – Pois é, é um conceito de teatro que deixa de lado todas as manifestações cerimoniais ou festas populares e as cenas dos povos originários. Até o século XX, mesmo no campo da cena europeizada no Brasil, não havia nenhuma chance de representação de qualquer ideia de indivíduo, porque, afinal, não há condições disso existir como conceito social num território em que a autonomia era desmentida pela realidade brutal do trabalho escravizado. Esse “drama impossível” num país sem sujeitos foi tema do meu doutorado sobre a cena modernista em São Paulo (3): a dificuldade de uma cena dramática se realizar concretamente no país, no mesmo compasso em que ela nunca deixava de orientar as expectativas da imaginação literária. Uma espécie de imposição do drama, como categoria substantiva e adjetiva, num lugar em que isso não podia ser minimamente verdadeiro.
Paulo – Ao mesmo tempo, manifestações fora do campo da cultura burguesa emancipada às vezes estão ligadas a configurações sociais também terríveis, não? Como lidar com isso? Atualmente, em sala de aula, quando vou falar sobre teatro jesuítico, por exemplo, os estudantes entram sempre com muita raiva diante da sensação de estarem perante um mecanismo de silenciamento, de um mecanismo de colonização de alma etc. Há uma repulsa de cara com relação a esse tipo de material. Mas existe também, ali, naquelas expressões e teatralidades do XVI de origem medieval, uma relação dialética entre sociedade e formas expressivas teatralizadas, que serão uma constante na colônia, inclusive em manifestações populares e de resistência… Como olhar para um assunto como esse?
Sérgio – Acho que a raiva é mais do que justa. Mas a ação cultural pode ser também o elemento contraditório do processo de colonização, e nesse sentido ela expressa muitas coisas além da violência da qual participa. Nos documentos jesuíticos você encontra a demonização da cultura tupinambá guerreira, mas também o nome e a voz dos inimigos mortos. Quando chegaram aqui, os jesuítas perceberam que o problema não era só combater uma cultura baseada em danças, e cantos, na ornamentação do corpo, na maracá, na vingança, no transe da bebida e do fumo, cultura que achava graça na ideia de um Deus uno que não tivesse corpo. Os jesuítas tiveram também muitos problemas com os cristãos portugueses, para quem o comércio de seres humanos era o principal negócio da terra. Para um cristão europeu do século XVI, a escravidão não era condenável desde que legitimada pela guerra justa. Mas os jesuítas viam que, no Brasil, nem essa máscara mínima da legalidade era respeitada, o que gerava uma violência maior e sem controle, sobretudo com as mulheres. E sem um mínimo de respeito à Lei, toda a retórica cristã estava desautorizada. Eles começam então a negociar um espaço social onde pudessem se relacionar com os indígenas de modo livre, desde que longe das suas casas coletivas, onde pudessem exercer uma “sujeição moderada”. A aceitação absurda da escravização de africanos faz parte desse acordo colonial que permitirá, por algumas décadas, a prática cultural cristã. Conhecer esses materiais é conhecer uma história que precisa ser enfrentada e recontada, porque segue atuando no mundo de hoje. Mas também é escutar a voz dos mortos e aprender sobre as estratégias de luta dos vivos. O que acho interessante no assunto é que a atuação dos jesuítas revela o caráter de barbárie da cultura como um todo. Pode- se dizer que eles estão na posição de todo intelectual que tenta realizar, através da arte ou da cultura, coisas que a arte ou a produção cultural sozinhas não conseguem realizar. Os jesuítas ecoam aquela posição de isolamento que o agente da cultura tem em qualquer situação de desigualdade social: há uma tragicidade da condição porque o intelectual tenta mediar o impossível, em nome do ideal de que serve a um patrimônio comum da humanidade. O problema daquele “teatro” não era o espetáculo do universalismo imposto, e sim o que ele espelhava de concreto: a vida do aldeamento. Em tese, era um espaço em que as pessoas estavam livres para conhecer um modelo cultural de amor, justiça e misericórdia cristãs, mas, na verdade, era uma estrutura repressiva composta por pessoas desenraizadas, ex-escravizadas, coagidas. É na dialética entre cultura e barbárie material que eu estou interessado: em nome de uma ideologia que alguns consideram boa, horrores são produzidos. Estudar isso ajuda também a compreender uma certa origem “miliciana” da cultura cristã no Brasil. Esse imaginário militar, que é uma marca forte da cultura festiva no Brasil, a rigor não provém dos jesuítas. Mesmo assim, as encenações participavam disso. E a combinação entre militarismo e religião, tão forte no Brasil atual, está aí para nos lembrar da importância do tema. Mariana – É assustador pensar que elementos estruturantes da sociedade brasileira, do processo de colonização, como o militarismo, o escravismo etc., aparecem muito pouco na historiografia tradicional do teatro. São questões muito pouco citadas ̶ se são citadas, são tidas como um aspecto factual, como se não tivessem consequência direta na vida social, e, portanto, na produção de cultura. Em alguns casos, fala-se até com certa naturalidade disso. Contudo, estudar esses temas é ter de lidar com a barbárie o tempo todo, não tem como escapar. Não é possível dissociar as pequenas produções de beleza que se encontra, de resistência etc., dessa presença permanente da barbárie. Sérgio – Esse vínculo entre as belezas da arte e o horror da escravidão são anteriores à própria colonização, existiam na Europa antes das navegações modernas. Basta ler a obra de um dramaturgo de Roma, então chamado de “Terêncio, o africano”, que era ex-escravizado, para se dar conta disso. Do século XVI em diante, porém, com a mundialização das rotas comerciais, surge algo diferente: o escravismo como negócio muda a vida de milhões de pessoas e cria um racismo mais brutal e profundo. Ele atravessa as práticas econômicas mais rentáveis da modernidade e toda a sociabilidade ligada ao colonialismo, não só das regiões periféricas.
Paulo – Tenho a impressão de que, no Brasil, por vias tortas, é possível evidenciar mais facilmente essa conexão entre cultura e barbárie. Eu fico pensando no clássico Ideais fora do lugar, do Roberto Schwarz, ali ele fala desse desajuste das formas culturais enxertadas aqui etc., mas ele termina o ensaio sugerindo que, ao mesmo tempo, todo esse nosso desajuste local também ajuda a evidenciar a mentira que são as formas importadas. Ou seja, o fundamento de barbárie dos modelos importados como que emerge no momento em que se tenta aplicá-los de forma torta por aqui. O interesse pelos estudos sobre o Brasil parece ter essa força, bem além de qualquer localismo vazio.
Sérgio – Tem um debate que talvez eu não saiba reproduzir bem, mas que é fundante do chamado pós-estruturalismo: ele se dá quando o Derrida critica uma observação do Lévi-Strauss sobre o fato de que as civilizações que passaram a escravizar gente foram também as primeiras a ter escrita. A distinção social trazida pela posse e uso de pessoas escravizadas seria, do ponto de vista do antropólogo, contemporânea do desenvolvimento das formas culturais letradas. Derrida, salvo engano, tira esse debate dos Tristes Trópicos e se aproveita de um aspecto do fraseado do livro para erguer um sistema teórico contrário à abordagem de Lévi-Strauss, ele tenta mostrar violências mais internas e subjacentes e que seriam constitutivas de toda linguagem. Cito de memória, mas talvez o que incomode um espírito metafisicante, como o de Derrida, é a lembrança benjaminiana de que o patrimônio cultural da humanidade não nasce só do esforço dos grandes gênios, mas, sobretudo, da “escravidão anônima de seus contemporâneos”. Lévi-Strauss apenas observa o vínculo entre o poder sacerdotal, a estratificação social injusta e o controle cifrado dos códigos. O que é diferente em outras sociedades originárias, nas quais a capacidade de agenciar os manas, as forças espirituais coletivas, como fazem os pajés do Brasil ou os caraíbas tupinambás, não implica uma distinção social estável, porque é antes um dom místico: a pessoa é uma mediadora de um poder da comunidade. A coisa que mais desconcerta os jesuítas quando eles chegam aqui é a igualdade indígena, a ausência de autoridades punitivas. Tem uma frase famosa, que vem dos primeiros cronistas, esboçada em Américo Vespúcio, e ganha forma com Gandavo e Gabriel Soares de Souza. Ela diz que os tupis “não têm rei, nem lei, nem fé, porque eles não conseguem falar as letras R, L e F”. Aqui não era possível fazer como se fez em alguns lugares da África ou Ásia, uma conversão de cima para baixo, que descia do rei para o povo. Os indígenas do Brasil tinham uma vida incomodamente comunitária. Portanto sua relação com os processos culturais era muito diferente da de lugares marcados por uma história de desigualdade estamental. Nos processos culturais desse tipo é decisivo que alguns disponham de tempo livre para a escrita e outros não. E num mundo de escravizados – ainda o nosso – faz todo sentido a frase de Freud, de que a Cultura nasce com a repressão.
Paulo – Quando se estuda algumas formas de teatralidades medievais, sobretudo aquelas ligadas à Igreja, das quais deriva o teatro jesuítico, aparece um tipo de questão com curiosas semelhanças com alguns debates contemporâneos sobre representação e performance, não?
Sérgio – A ideia de um teatro performativo é recente e ligada a um debate teórico específico. Ela é um contramovimento, uma reação a uma hegemonia histórica do teatro dramático e ou mesmo a suas variantes épicas, uma crítica à ideia de “representação” dialógica, gosto pela arte do significante. Mas no século XVI, a palavra teatro não era usada para nada além do espaço físico da arquibancada. Quando muito, surgia como um termo da cultura retórica, das artes liberais, usada como metáfora culta de convite à apreciação visual. Teatro como conceito ligado à ação cênica aparece só no fim do século XVI. Assim, não havia “teatro” na Idade Média e sim tropos cantados, jogos, momos, arremedilhos, entremezes, procissões, mascaradas e autos que integravam outra ação cultural maior. Essas cenas estavam de fato muito mais próximas de uma cena performativa do que de uma cena dramática, sem que tivesse importância qualquer debate teórico em torno disso porque não havia valorização estética em abstrato desse tipo de manifestação.
Paulo – Inclusive era considerado heresia chamar tais ritos religiosos de representação, não é? Falar que a hóstia representa o corpo de Cristo era uma heresia. Talvez ainda seja.
Sérgio – Isso foi tema de inúmeros debates em concílios da Igreja, por séculos. O momento da partilha do pão na missa tinha, originalmente, a memória de uma divisão igualitária da comida pobre, feita numa casa rica que foi ocupada a pedido de Jesus, operada como ingestão simbólica do corpo de Deus. Daí os banquetes abertos do cristianismo primitivo. Só muito depois o símbolo se converte no Deus presentificado da Eucaristia. É curioso que a argumentação teórica mais abstrata da Idade Média tenha deliberado em favor da crença mais mágica de todas: a de que não ocorre ali só um ato simbólico e sim uma manifestação da presença. Abstração excessiva e pensamento mágico podem andar juntos. Outro exemplo interessante do fetichismo cristão é o culto das relíquias, dos ossos dos santos. É um tipo de adoração que vem da antiguidade mediterrânea, migra do túmulo dos heróis greco-latinos para o culto dos restos mortais dos santos mártires, que se tornaram padroeiros das cidades medievais, e as protegem na guerra ou na doença. Os ossos, ou mandíbulas do santo eram guardados nos relicários nas igrejas, levados em procissão pela cidade, assistidos e tocados: eram a própria presença santa.
Mariana – É algo meio macabro também. Recentemente eu fui ao Pátio do Colégio e vi o osso do Padre Anchieta, quase tirei uma foto e te mandei. Tem um impacto, um efeito.
Paulo – O que eu acho curioso é que a cena contemporânea tem um debate semelhante. A ideia de que a afirmação da presença em si seria um passo mais autêntico, mais verdadeiro e intenso do que a ideia de representação. Claro, você tem razão, no século XX isso é posto de outra forma, dentro do campo institucional, da arte, da cultura, só que os termos dos debates são parecidos.
Sérgio – Num ato cênico é impossível distinguir, em abstrato, a dimensão performativa da representacional. É difícil dizer se a ação do artista está mais para o lado da “mesmidade” do corpo ou da “alteridade” da figuração imaginária – sem que se descreva também a relação com quem vê. Um corpo, mesmo que imóvel em cena, ao se mostrar em situação de atenção estética, instaura sinais simbólicos transmitidos somente pela relação com o contexto. Durante o meu mestrado eu entrei num pequeno delírio teórico de tentar descrever essas possíveis camadas ônticas da ação cênica. A minha hipótese fenomenológica era que toda “metamorfose” cênica é composta por várias camadas hipotéticas, como uma cebola. Eu posso visualizar a parte mais externa ou a interna da ação, ou mais de uma ao mesmo tempo, como o espectador que escolhe se está enxergando Hamlet ou o ator que o representa. Como artista eu posso também intensificar uma dessas dimensões: posso pôr a ênfase no nível performativo, em que supostamente não há ficção e apenas a presença física, posso criar uma dinâmica mais expressiva, em que uma dimensão pessoal se manifesta, ou expor uma ação interpretativa, em que a ficção se constitui de modo distanciado, ou enfim posso tentar agir de modo representacional, no esforço inglório de submergir no outro, de instaurar uma vivência ficcional radical. Era apenas uma tentativa teórica de pensar possibilidades da atuação. Eu fiz isso com a vontade de ajudar a crítica a visualizar para onde se orienta a intencionalidade estética da cena por meio da atuação. Hoje acho que essas distinções teóricas só ajudam se não viram orientações normativas, regras de arte que anulam visões diferentes. Não dá para dizer que um modo poético é mais atual do que outro: tudo o que se refere à cena é tão velho quanto o primeiro passo de dança ou o primeiro gesto lúdico de imitação.
Paulo – Só retomando um ponto: de onde vem esse interesse de defender essa atitude “performática” ali no mundo medieval? Você lembrou que a eucaristia é um processo que vai se transformando neste ato mágico de transubstanciação. Mas de onde vem esse processo? Essa vontade da presença?
Sérgio – Tem a ver com a cultura religiosa cristã dos séculos XII e XIII. O Corpus Christi é oficializado em 1264, mas, décadas antes, o Concílio de Latrão já tinha escolhido um lado no debate da transubstanciação. Era um momento pós-cruzadas, de crescimento urbano. A cultura religiosa migrava dos mosteiros para as catedrais. Isso coincide com o crescimento econômico das cidades pelo comércio. A festa de Corpus Christi foi contemporânea de São Tomás de Aquino, que é o maior teórico aristotélico da Igreja. Ou seja, você tem uma tradição filosófica sendo constituída, e as abstrações entram em cena ao lado da magia da hóstia. E como elas precisam ser personificadas, surge uma nova cena alegórica: ao mesmo tempo abstrata e sensorialista. A junção dos extremos que depois vai marcar o Barroco. A hóstia é a abstração da abstração, mas ela é pura presença sensorial a desfilar pela cidade. Não por acaso, o Corpo de Deus vai ser a festa mais burguesa, todas as corporações de ofício tinham que participar dela. É nela que começa o que chamamos de teatro moderno. Você tem ali, naquele momento, todo um conjunto intelectual ligado a uma cultura urbana: as universidades são do mesmo período.
Mariana – E é interessante pensar nesse processo de abstrações. Tem a ver também com essa grande abstração chamada dinheiro, que ganha um novo fôlego com as rotas comerciais.
Paulo – Sim, o dinheiro é o gesto performativo.
Sérgio – Esse é o centro do meu trabalho atual, a questão das metamorfoses cênicas aceleradas pela pressão do capitalismo emergente. Há, por exemplo, uma espécie de imaginário urbano que se constitui no fim da Idade Média e que gera uma ostentação cênica, que estimula a visualidade. E isso também se vê nos processos de colonização no Brasil do século XVI, só que aqui o imaginário das cidades é um simulacro frágil, e perde espaço nas festas para outras formas.
Mariana – E o ouro, como forma-dinheiro, ressurge no imaginário. Por exemplo, o Santíssimo Sacramento se relaciona com a imagem do Sol, retomando um ideário da Antiguidade.
Sérgio – Mesmo lá isso se deu num processo: no começo, o Corpo de Deus andava em arcas, chamadas de “gaiolas” em Portugal. Depois, pelo século XV, surge o ostensório com essa forma solar, que já é um análogo da moeda. Em muitas cidades da Europa foi a festa do Corpus Christi que promoveu uma profissionalização das artes da cena. Na Espanha, por exemplo, isso explodiu mais tarde com os chamados “autos sacramentais”, partes de espetáculos que compunham o ciclo da procissão do sacramento da comunhão, festa “abrilhantada” pelo ouro colonial das monarquias católicas.
Mariana – Quando comecei a estudar a festividade do Triunfo Eucarístico no mestrado, você me disse: “Mari, é preciso estudar a história das cidades”, como forma de entender o desenvolvimento dessas festas a partir do desenvolvimento das cidades.
Sérgio – A cidade é a instância cultural mais importante da cultura do Renascimento porque ela aproxima Igreja, nobreza e mercado e obriga a interações públicas nas celebrações do calendário cristão ou nas entradas reais. Ainda não havia uma cultura nacional estabelecida. Os espaços cênicos fixos só surgem quando as monarquias nacionais decidem se fixar, escolhem de vez quais eram as “capitais” dos reinos. Os chamados currais, pátios cênicos onde se cobrava ingresso, se irradiam de fato em Espanha e Portugal por volta de 1570. Os teatros de Londres, empreendimentos ainda mais burgueses, são do mesmo período. Já o edifício Olímpico de Vicenza, da década seguinte, foi feito por nobres eruditos. É uma nova fase da cultura urbana: monárquica, imperialista, ligada a um capitalismo colonialista. Não é à toa que quando o dinheiro migra, essa cultura europeia muda também. O dinheiro vai para o norte da Europa no fim do século XVI, onde se associa a uma cultura protestante.
Mariana – No LITS, muito do nosso trabalho foi ligado a modelos de estudo. Muitos deles são ligados à teoria crítica brasileira interessada na literatura, como Antonio Candido, Roberto Schwarz, José Antonio Pasta. Realmente, eles nos ajudam muito mais do que a historiografia convencional do teatro brasileiro, porque estão interessados justamente na relação entre a forma artística e o processo social.
Paulo – Ao mesmo tempo, são autores que nunca se ativeram exatamente nessa questão específica do teatro, nas questões do espetáculo, das mediações com a sociedade que são do tipo extraliterária. Isso me parece ser uma questão importante para o Brasil: conseguir observar o teatro nessa relação extraliterária também, que evidencia a tensão do texto com o espetáculo.
Mariana – O que também nos força a sair do campo do teatro estritamente, né? A perspectiva somente estética sobre o espetáculo é limitante. Para dar conta disso, precisamos ir para história, antropologia, filosofia, como também para a literatura.
Sérgio – Há pouco falamos da história do teatro como história de uma cultura literária nacional. E há outro índice de valor: o palco fechado, num edifício teatral, com companhias regulares, repertório, autores, público, coisa que é até hoje rara no Brasil. Era o que a burguesia queria valorizar como autoimagem. No século XX, porém, começam as crises com essas expectativas e o teatro, tocado por outros imaginários, almeja a independência da cena, reclama um valor de arte para a encenação. E surgem outros paradigmas. Depois da Segunda Guerra, se multiplicam ainda mais as formas e os lugares sociais das artes da cena. Em contextos de países pobres, as realizações foram ainda mais diversas, tanto pela rarefação dos dramas nacionais como pela força da indústria cultural que tudo absorve, ou até mesmo pela revalorização ocasional de formas culturais tradicionais a partir da década de 1960. Diante disso, praticar uma crítica dialética, essa mencionada “semântica das formas” pede uma atenção à dimensão não literária dos fenômenos e exige reconstituições do contexto produtivo, com o recurso àquela categoria interativa que chamei de trabalho. Então, você terá que dialogar com muitos campos de conhecimento. E precisa desenvolver uma espécie de imaginação sociológica em torno da obra, o que exige estudos interdisciplinares mas também uma abordagem ligada à prática, como vocês notaram nas pesquisas de vocês. Uma nova atitude em relação às histórias da cena pede novos modos de trânsito entre ruínas e sonhos.
Paulo – É um processo de trabalho e pesquisa muito difícil, mas também muito vivo. É como vocês disseram: temos que articular teatro com história, arquitetura, sociologia, filologia etc. Sérgio – E dar um passo que me parece o mais arriscado do ponto de vista científico, que é inevitável na nossa área de estudos: o da imaginação. Como a cena é uma arte que depende do aqui e agora, você precisa constituir hipóteses imaginativas em relação a ela, para se aproximar de um olhar histórico. E também se perguntar: que imaginários estão em jogo? E como se traduzem em práticas? Do ponto de vista de método, eu aprendi muito com Raymond Williams, que nos ensina a descrever as interações entre as formas emergentes e aquelas que são heranças residuais, as mais antigas, e que temos dificuldades de compreender porque quase sempre aderimos a uma narrativa evolucionista. E é a dialética que interessa, pois o conservadorismo muitas vezes sobrevive com a aparência da inovação. São orientações que procuro contrastar com meu aprendizado pelos interiores e sertões do Brasil, com meu trabalho prático e contato com experiências de vida popular e cultura tradicional. Atualmente, por exemplo, estou colaborando com a escrita de uma Paixão de Cristo, feita por artistas mulheres num assentamento rural no interior do Ceará. Ali há pessoas com quem trabalho há um bom tempo. É isso que me permite imaginar melhor o que ocorria numa cena do passado.
Paulo – Ou seja, tem mais um conhecimento que você precisa articular que é o conhecimento da prática artística. O fato de você ter trabalhado como diretor por tantos anos te ajuda a dar vida a esses elementos.
Mariana – Mas é uma linha muito tênue, não? Eu lembro que escrevendo a tese eu entrei num delírio de imaginação, estimulada pelo Sérgio, mas foi o Sérgio quem também me deu o limite. Eu começava cada capítulo criando uma cena. Aí eu chegava empolgada para o Sérgio, e ele me falava “é Mari, mas você precisa imaginar a partir de elementos concretos”. (risos)
Sérgio – É, sempre é um risco. O importante é conseguir devolver isso para hoje. Não tenho interesse em ficar só nas questões históricas se elas não me ajudarem a enfrentar essas formas de dominação cultural, de um mundo do qual todos nós participamos por atuar em suas estruturas, que procuro desmontar de algum jeito. Tanto criticamente, na tentativa de alguma mudança que sempre dependerá de uma ação política maior, quanto procurando criar outros lugares sociais, situações, parcerias, outras conjunções e confluências de pessoas.
NOTAS
1 TOLEDO, Paulo Vinicius Bio. Impasses de um teatro periférico: as reflexões de Oduvaldo Vianna Filho sobre o teatro no Brasil entre 1958 e 1974. São Paulo, 2013. Dissertação (Mestrado em Teoria e Prática do Teatro) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
2 SOUTTO MAYOR, Mariana França. Espetáculo disforme: o trabalho teatral da Casa da Ópera de Vila Rica (1769-1793). São Paulo, 2020. Tese (Doutorado em Teoria e Prática do Teatro) ̶ Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
3 O drama impossível: o teatro modernista de Antonio de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Orientação de José Antonio Pasta. USP, FFLCH, 2003.
AUTORES
Sérgio de Carvalho é dramaturgo, encenador da Companhia do Latão e professor livre-docente de Dramaturgia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Programa Ano Sabático 2021 do Instituto de Estudos Avançados da USP. E-mail: sergiocarvalho@usp.br
Mariana Mayor é pós-doutoranda em História Social pela FFLCH/USP. Foi professora de História do Teatro Brasileiro do IA/UNESP e investigadora da Universidade de Coimbra, com bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. É editora da Teatro situado: revista de artes cênicas com olhos latino-americanos. E- mail: marianasoutto@gmail.com
Paulo Bio Toledo é doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo e professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). E-mail: paulo.v.bio@paulofavari
ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM
Fausto Viana e Felisberto Sabino da Costa (orgs.), 40 ANOS DO PPGAC ECA USP, Edição comemorativa. São Paulo ECA -USP 2021, pp.111-130.
ISBN 978-65-88640-51-7 DOI: 10.11606/9786588640517
O livro de Alvaro Machado sobre Ruth Escobar pode ser lido como uma história social da cultura em São Paulo nas últimas décadas. A cada página surgem entrelaçados os fatos incríveis da vida dessa artista, produtora e ativista portuguesa, e os movimentos de construção da nossa versão brasileira de uma “sociedade do espetáculo”, feita de belezas e horrores, de ostentação e miséria.
A dimensão social do relato não se deve só ao “estilo de trabalho avassalador” de uma pessoa que realizou ações extraordinárias entre o período ditatorial e a Nova República, mas também à pesquisa cuidadosa e complexa de Alvaro Machado, realizada nos trânsitos entre arte, economia e política.
A contribuição de Ruth Escobar à cultura de São Paulo é impressionante. A ambiguidade que envolve sua imagem decorre de uma capacidade de negociar de modo amoral com as figuras mais poderosas do tempo, tendo em vista realizações incomuns, no mesmo movimento em que expunha o machismo estruturante das relações em que se envolvia. Foi assim que, ainda adolescente, recém-chegada ao Brasil, e como num passe de mágica, ela se converteu em jornalista e fundou uma revista com recursos da elite da comunidade portuguesa de São Paulo. Conseguiu entrevistar líderes mundiais e refez, no tempo da ditadura salazarista, o caminho das Índias da colonização lusitana, com base em favores do governo português. E foi assim também que, no ano do golpe de Estado, obteve o apoio do governador paulista Adhemar de Barros, um reacionário notório, para a inauguração de seu edifício teatral, construído por ela no Morro dos Ingleses. O fato de esse espaço histórico, que resiste até hoje, ter sido inaugurado com a Ópera de três vinténs, de Brecht, o maior autor marxista do século, diz muito sobre o diálogo da atriz com a cultura do tempo. No mesmo ano mortuário de 1964, ela fazia circular pela cidade uma enorme carreta teatral, com um palco volante, entre a Sé e bairros periféricos, para apresentar peças como A pena e a lei de Suassuna, nos moldes do Teatro Popular Nacional francês, encenadas em estilo de agitprop soviético.
O vínculo com a cultura de esquerda do tempo marca sua produção dos anos 1960 e 1970 e inclui a relação afetiva com pessoas como Carlos Henrique de Escobar e Névio Roberto Gomes. Ela foi uma colaboradora fundamental nos processos de luta coletiva pela liberdade, anistia, inclusão social e redemocratização, como atestam as dezenas de relatórios dos espiões do Dops, documentos consultados e discutidos por Alvaro Machado. Seu teatro se tornou um centro organizador de resistência cultural e política, como já entendiam os estúpidos anticomunistas que agrediram os artistas e técnicos de Roda viva em 1968.
Seu destemor diante do poder, em outra frente examinada no livro, era o lado reverso de uma personalidade que ela costumava descrever como “carente”, formada no “complexo de inferioridade por ter pai incógnito”, em expressão dela própria. A cada dificuldade ela reafirmava aos próximos a necessidade pessoal de converter o medo em força. E de fato tornou-se forte e grande em disputas em que mulheres são muito discriminadas. Soube como poucos, e muito cedo, reconhecer as formas violentas do mundo da mercadoria no Brasil, que geram um vínculo indissolúvel entre o direito à liberdade e o favor do dinheiro. Sua tendência radical à metamorfose, à construção de aparências e a um certo teatralismo cotidiano acabou por se ligar à crença muito discutível de que “no sistema capitalista é preciso fazer o jogo capitalista, pois nele, sem dinheiro, não se tem poder, e portanto tudo depende de como a pessoa emprega esse dinheiro”, como disse numa entrevista. A questão, com a qual todos lidam, é de que modo alguém consegue ser sujeito e não objeto nas relações do capital.
Em 1972, depois de vinte anos no Brasil, no auge da repressão, seu teatro acolhia a cena mais criativa e contestadora de São Paulo. Naquele ano ainda encenou A viagem, de Carlos Queiroz Telles, e Missa leiga, de Chico de Assis. Mantinha contato com grupos de resistência, apoiava presos políticos e era paradoxalmente capaz de estar presente num jantar palaciano, de champanhe e caviar, com o fascista Marcello Caetano, de Portugal. Justificava sua decisão dizendo que “você não pode ser moral num sistema imoral”.
Ao que parece, foi capaz de manter tais contradições em movimento por muito tempo. E talvez conseguisse viver “de forma dialética”, como escreveu anos depois Fernanda Montenegro. Se a estratégia era humanamente possível, ao certo se apoiava no entusiasmo próprio da arte, num gosto por atividades livres, que reconhecia nos palcos ou em ambientes como aquele dos jovens intelectuais “adoradores da estátua”, nos jardins da Biblioteca Mário de Andrade, com quem colaborou nos 1950.
O caso talvez mais emblemático de tais contradições, magnificamente relatado por Alvaro Machado, é o processo de O balcão, espetáculo de 1969 dirigido pelo argentino Victor García. Obra-prima de encenação, viabilizada pela destruição de um piso do edifício de seu teatro, composta pela célebre cenografia metálica em espiral e por maquinismos feéricos, que sustentavam atuações inspiradas. O reconhecimento da beleza fascinante da cena não impediu o crítico Anatol Rosenfeld de pressentir, naquela montagem que parecia adorar o vazio estetizado e pairar sobre a realidade histórica pós-AI5, um culto do irracional, um certo “odor fascista”. Até hoje essa avaliação forte, feita por alguém que fugiu da Alemanha nazista, é lida como se fosse a fala injusta de um metro formal arcaico, incapaz de medir uma linguagem inovadora. Mas acredito que Anatol intuía, por trás do novo, o elogio de aparatos apassivadores e individualizantes, dos velhos maquinismos do poder.
Naquela mesma temporada, conforme dados do livro, a atriz foi visitada nos bastidores por seu amigo Pery Igel, empresário do Grupo Ultra, que queria informações sobre a execução recente de seu parceiro Boilesen, o nefasto apoiador da Oban, frequentador das perversas sessões de tortura da polícia repressiva. O nazismo tropical rondava o teatro de modo mais violento do que Rosenfeld poderia imaginar. Por outro lado, foi nessa mesma temporada que a atriz tomou contato com o ativismo libertário de Jean Genet, dramaturgo e poeta que mantinha relação com os Panteras Negras dos Estados Unidos, e lhe contou sobre sua vida passada no cárcere. As ações futuras de Ruth Escobar em penitenciárias e seu importante ativismo feminista, o melhor de sua atividade política como deputada estadual nos anos 1980, de certo modo nasceram ali.
“A vida é estelionato”, teria dito Genet a Ruth Escobar. A autoimagem de uma “gângster”, “escroque”, “mafiosa”, como dizia com ironia sobre si, nunca deixou de acompanhá-la. E, como se representasse uma personagem da Ópera de Brecht, ela era capaz de encenar um desmaio técnico numa sessão da Assembleia Legislativa para desorientar os opositores e de interromper teatralmente a fala de um presidente da República, de modo a gerar grosserias machistas do lado de lá, como fez com Fernando Henrique. Nenhum desses detalhes escapa às descrições vivas de um livro que li entre gargalhadas e comoções, admirado pela capacidade de realização dessa artista espantosa.
O acúmulo de acontecimentos paradoxais, contudo, sugere que a dialética entre possuir e ser possuído pelas metamorfoses do capital se tornava, como ocorre sempre, mais e mais insustentável.
Para mim, que a conheci muito rapidamente, em meu começo de vida teatral, o livro oferece também a compreensão de um movimento geral da cultura paulistana no sentido de uma internacionalização e financeirização do imaginário. A ações de Ruth Escobar eram o termômetro da mudança maior que ocorria em diversos países periféricos, em que a arte avançada se tornava essencialmente reprodutora de padrões exógenos e abstratos, afastando-se da tentativa de gerações anteriores de manter conexões críticas com o território e o conjunto social, e romper o caráter de classe da produção de arte.
Os festivais internacionais que Ruth Escobar produziu a partir de 1974 traziam à cidade alguns dos melhores artistas da vanguarda mundial. No mesmo ano em que Victor García renunciava momentaneamente a seus “aparatos cênicos”, diante da tensão gerada pela criação coletiva dos atores, Ruth Escobar apresentava na cidade as novas referências da cena ocidental, nomes como Bob Wilson e o grupo Mabou Mines. Esses espetáculos brilhantes modificaram os percursos de uma geração. Interferiram no trabalho de Antunes Filho, até então um diretor convencional, ou de Márcio Aurélio, um dos encenadores mais inspiradores para a minha geração. Vários dos melhores grupos dos anos 1980, como Ponkã e Ornitorrinco, se alinharam ao ideal de uma cena cuidadosamente trabalhada. E o primado da competência técnica, numa cena “plástica”, distinguiria em seguida a prática e o discurso de Gerald Thomas, para quem o teatro brasileiro era, até então, “de mentirinha”. Surgiam espetáculos vibrantes, mas que pouco ou nada tinham a ver com a vida da cidade e do país. Um espião do Dops, escalado para monitorar um desses festivais e avaliar o risco político das obras, registra comentários elogiosos às criações e observa, como um bom crítico, uma bem-vinda “diluição da problemática social” em meio a tantos jogos formais. Era uma nova cena que ajudava a encerrar o ciclo teatral anterior não apenas pela qualidade estética superior, mas por reiterar a tradição importadora da tabula rasa cultural. A destruição, a rigor, já estava feita antes, pelo exílio ou assassinato dos artistas-militantes; e pela autocrítica daqueles que trabalharam por uma arte anticapitalista ou antiburguesa de inflexão nacional-popular. Aos remanescentes restou a pecha de ultrapassados, o ocultamento ou a invisibilidade imposta a toda produção periférica que não partilha dos códigos dominantes.
Ruth Escobar, tornou-se, desde então, a principal produtora de eventos do país, e cada vez menos uma atriz. Na década seguinte vendeu seu teatro à Associação de Produtores Teatrais do Estado de São Paulo, numa transação feita com recursos públicos para o financiamento. Seu exemplo inspirou muitos gestores culturais da cidade, e a mesma orientação mundializada e formalista tomou conta das redações de jornais.
Vinte anos depois, em 1994, na condição de colunista e crítico do jornal O Estado de S. Paulo, assisti a uma edição do festival de Ruth Escobar. Nas universidades paulistas, de onde eu vinha, a obra de Bob Wilson já era discutida no currículo de Artes Cênicas. Mas não a de Augusto Boal, de Abdias do Nascimento, de Ruth de Souza, e nem mesmo a de Ruth Escobar, ignoradas até hoje, como se não fossem todas fundamentais. A reprodução de uma cena aurática, capaz de proporcionar sofisticadas experiências sensíveis e abstratas, impôs-se como sinônimo de arte cênica de qualidade, e isso só mudou muito recentemente. Enquanto o edifício teatral Ruth Escobar se tornava pouco a pouco uma carcaça sem orientação própria, surgiam pela cidade dezenas de eventos em novos palcos, com aportes palacianos e recursos viabilizados pela chamada Lei Rouanet. Cultura se tornava um espetáculo institucional ligado ao setor financeiro. Naquele momento, Ruth era colaboradora de todo governo ao seu alcance, inclusive o de Collor. Ainda praticava um importante ativismo feminista e anticarcerário, com impacto social. Suas ações de contramão, entretanto, eram cada vez mais ocasionais. Impunha-se o tempo triste das ambiguidades úteis, sem qualquer dialética, aspecto expresso, inclusive, na mudança de andamento desse livro revelador. Seu último trabalho de arte teatral foi uma versão de Os Lusíadas, a épica quinhentista da colonização, com seus ritmos náuticos, que tanto a encantaram pela vida. A montagem foi apresentada em 2002 em Lisboa, no Centro Cultural próximo à Torre de Belém, de onde partiam as naus da carreira das Índias. Acredito que Arrabal não mentiu quando disse que Ruth Escobar foi uma das pessoas mais importantes do teatro do século XX.
É comum nos ambientes teatrais a leitura subjetivista da poética dramática de Hegel. Sua obra, segundo essa interpretação, confirmaria a ideia moderna de que o drama é essencialmente uma forma de representação dialogada baseada no conflito das vontades individuais. As personagens dramáticas seriam assim sempre pensadas como sujeitos dotados de responsabilidade sobre seus atos e que têm consciência moral sobre suas vivências passionais.
A “mutabilidade do passado” é um fato de que temos provas diariamente. A memória pessoal interfere nas imagens dos acontecimentos vividos com reajustes, substituições, novos enquadramentos – que atendem aos interesses de sua evocação no presente.
No dia 05 de outubro de 2018, como parte de uma ação comemorativa dos 50 anos da chamada “batalha da Maria Antonia”, (organizada pelo TUSP e pelo Centro Universitário Maria Antonia), realizei no prédio histórico uma leitura cênica em que convidei a psicanalista Cecília Boal, o crítico Roberto Schwarz e o diretor Zé Celso Correa Martinez para lerem textos escritos nos anos 1960 sobre relações entre arte e política.
A peste que devastou a Europa no ano de 1348 gerou uma mudança nos padrões estéticos que foi avaliada por muitos historiadores do período como uma queda de nível da arte, na medida em que pintores e escultores, após a pandemia, se viram obrigados a servir aos interesses mais fúteis ou mórbidos dos senhores que sobreviveram. É essa a opinião de G. Duby e J. Le Goff, medievalistas franceses que também registram o vínculo direto entre a difusão da peste e o nascente capitalismo comercial.
Boa noite. Agradeço muito o convite da Ana e do Milaré para estar aqui. Minha fala será breve. Todas as peças que escrevi até hoje foram baseadas no que se costuma chamar de processo colaborativo, aquele em que o material dramatúrgico, as personagens e até muitas relações ficcionais e estéticas surgem na sala de ensaio, a partir da prática das improvisações dos atores e dos estudos do grupo como um todo em torno de um tema ou projeto formal.
Este estudo de Paula Autran dá continuidade a uma pesquisa realizada na Universidade de São Paulo em torno do trabalho pedagógico de Augusto Boal na área de dramaturgia.