A “mutabilidade do passado” é um fato de que temos provas diariamente. A memória pessoal interfere nas imagens dos acontecimentos vividos com reajustes, substituições, novos enquadramentos – que atendem aos interesses de sua evocação no presente.
Não há, entretanto, apenas movimento nesse trabalho do “olho da alma”. Seu efeito é a estabilização dos processos concretos, reagrupados em torno de explicações, juízos e opiniões que definem seu valor geral, de modo a justificá-los numa sequência de sentido. Como decorrência, muita gente, com o tempo, já pouco se lembra dos detalhes dos fatos e prefere guardar uma opinião geral sobre o ocorrido, que às vezes nem é a própria, ficando incapaz de acionar a variedade, a múltipla causalidade e as impuras contradições que costumam envolver os processos vividos. A memória coletiva, quando sujeita à mesma tendência dos indivíduos, ainda tem por hábito selecionar apenas aquilo que, em alguma instância, é considerado digno do direito social à memória. As imagens aparecem, assim, como ilustrações de relatos confirmatórios, carregadas da reprodução de valores ideológicos. Seja o que for a História, e escrevo estas linhas como um artista de teatro, ela deveria partir de um movimento reflexivo e autocrítico em relação a tais tendências, que expressam e ocultam o cortejo de horrores da produção cultural na era do capital. O gesto de “escovar a história a contrapelo”, sugerido por Walter Benjamin, em sua intenção de ler os documentos de cultura como “documentos de barbárie” é, de certo modo, um trabalho de contra-memória. Pede um enfrentamento dos esquecimentos impostos, uma atenção à dimensão concreta das coisas e gestos, na contramão dos juízos dominantes e consensuais, para que possamos chegar perto, um dia, de um diálogo vivo com o conjunto social e compreendermos o quanto a cultura pode tanto participar da escravização anônima como conter a esperança de sua superação.
Um exemplo simples – e que diz respeito a este notável estudo realizado por Nina Hotimsky – é o da história dos espetáculos politizados apresentados no Brasil na década de 1960. Como se sabe, o mais inquieto epicentro desse movimento teatral se deu em torno da experiência dos Centros Populares de Cultura, os chamado CPC. Organizados por artistas, estudantes e intelectuais, essas células de coletivos de ação cultural existiram por três anos, até que foram extintas pelo incêndio do teatro e do prédio da UNE, União Nacional dos Estudantes, na manhã do golpe de 1964. Com a derrota política e o deslocamento das energias criativas para a fuga e a sobrevivência no mercado das artes, começou a se formar, entre os próprios artistas, nos anos seguintes, uma autocrítica discutível. Ela se amparava num único texto teórico (um anteprojeto do movimento escrito para debate interno) e sublinhava os supostos equívocos ideológicos do CPC sem aludir a sua prática: o sectarismo, a deliberada baixa complexidade estética das ações culturais, a dependência do ideário nacional-popular do Partido Comunista, a atitude populista. Todas essas inverdades ou meias-verdades passaram a ser difundidas na década de 1960 e cresceram antes mesmo da pá de cal lançada na década de 1980, quando o interesse em unir o campo democrático fez com que uma nova configuração da cultura de esquerda se empenhasse em produzir mais críticas gerais ao imaginário nacional-popular. Muito recentemente, num encontro de especialistas sobre a produção artística daquele período, ouvi uma frase que sintetiza a imagem hegemônica atual da memória do CPC: “Os cepecistas faziam arte instrumental para o Partido Comunista, então não foi difícil, mais tarde, fazerem arte instrumental para a Rede Globo”. À parte seu esteticismo discutível, a tirada omite a realidade do trabalho, o fato de que no CPC os artistas não abasteciam a uma estrutura proposta de cima, mas a reinventavam continuamente: eram eles os autores de seus próprios textos, os donos efetivos de seus meios de produção estética, e por isso puderam ser tão experimentais e inventivos, passando longe de qualquer “realismo socialista” eventualmente desejado pelo Partido.
O caso Calabar, tal como apresentado neste estudo de Nina Hotimsky, pode ser considerado um dos epílogos do ciclo de teatro politizado que teve início com os artistas amadores e com o Teatro de Arena, se expandiu no CPC, e se irradiou, depois do golpe, em formas variadas, para grupos como Oficina e Opinião, entre tantas outras experiências de arte militante do período. Mas a especificidade impressionante de Calabar só se faz aqui visível pelas escolhas da pesquisa, por seu empenho em se concentrar na dimensão concreta da coisas, esforço de produzir um material para uma futura contra-história.
A própria eleição do tema é atípica: não se trata de uma reavaliação do texto publicado por Chico Buarque e Ruy Guerra, nem de uma interpretação do processo de censura que impediu o espetáculo de estrear no fim de 1973, e menos ainda de uma análise das canções famosas do disco Chico Canta, compostas para a montagem, e que só ganharam o palco anos depois, em 1980, numa outra configuração estética. O presente estudo é um pouco disso tudo e algo mais: é uma reflexão sobre um trabalho coletivo interrompido, de um grupo de artistas, de uma geração. Se há pouco registros ou estudos sobre a cena em nossa oscilante história do teatro, quase sempre textual, o que dizer de um espetáculo que não estreou? Este objeto improvável – a cena não realizada – é uma escolha que vem carregada de enunciações simbólicas, e que ao certo será lido de modo comovente neste ano de 2020, quando muito do pior daquele período do governo militar volta ao protagonismo na política brasileira.
Foi a utilização livre da categoria do trabalho teatral – comum a outros estudos que tenho tido a alegria de orientar na Universidade de São Paulo – o que permitiu a Nina Hotimsky articular dimensões tão variadas. A montagem de Calabar é por ela compreendida através de suas contradições, que aludem a um movimento histórico maior, em que a cultura de esquerda era capaz de negociar com um mercado industrial interessado em seus produtos, mas verificava os limites dessa relação no tempo de expansão do terrorismo de estado para o esmagamento da guerrilha. Num nível produtivo, o estudo nos mostra quais condições históricas permitiram que um produtor-artista como Fernando Torres (que mantinha colaboração com intelectuais e artistas comunistas ligados à luta armada) se associasse, em termos capitalistas, ao grande poeta da nossa melhor canção crítica, Chico Buarque, e à gravadora multinacional holandesa, Philips, para custear uma superprodução musical e coreográfica que tinha por tema um ambíguo herói ausente de cena, um “traidor” que se aliou ao inimigo dos portugueses na disputa colonial.
Superando os dualismos comuns em análises do período, desmontando juízos que celebram esteticamente as vitórias do mundo mercantil ou que lamentam as ingenuidades políticas das experiências amadoras, o estudo de Nina Hotimsky encontrou sua forma ao localizar (e produzir) documentos inéditos, capazes de atuar como elementos de concretização da experiência totalizante do trabalho da cena. A entrevista dada pelo saudoso Mário Masetti, pouco tempo antes de sua morte, foi um primeiro passo. Masetti participou de Calabar, em 1973, como assistente de direção. E quem já atuou nessa difícil função sabe o quanto ela concentra todas as tensões do processo de ensaios, por estar sujeita ao melhor e ao pior das relações de trabalho do teatro, coisa só suportável devido ao entusiasmo dos jovens aprendizes no começo da carreira. Foi a memória viva daquele assistente, mobilizada pela pesquisa, que levou à localização de gravações desconhecidas, esquecidas em arquivos, em que o encenador Fernando Peixoto registrou, no calor da hora, sua avaliação do processo artístico interrompido pela censura.
À partir daí, o estudo de Nina Hotimsky se constituiu como um diálogo com as reflexões de Peixoto (meu amigo Fernando) com sua história de arte e relação com a cena musical politizada da época. As contradições do trabalho teatral, seus impasses e esperanças, a procura de um gestus brechtiano nas condições de uma cultura periférica, dificuldades que também são as nossas hoje, surgem em muitos detalhes e indícios, que não cabe aqui resumir. Destaco, apenas, o que me parece uma contribuição gerada pelo olhar atento da pesquisadora: em meio aos embates ideológicas da arte de esquerda pós-1968 (contracultura libertária versus engajamento social manifesto etc.) ela percebe combinações e disjunções variadas, interações entre atitudes que seriam mais tarde impensáveis no nosso mundo artístico. Flagra, assim, o esforço de Fernando em viabilizar uma escrita coletiva, em instaurar, nos elementos da cena, uma enunciação dos impasses e desejos do tempo, o que acaba por obrigá-lo a se deparar com a crise de fundo daquele processo, a da possibilidade de representação de alguma ideia de povo, seja ela qual fosse, naquela circunstância histórica. De que forma as forças populares poderiam aparecer em cena num espetáculo que justapunha um episódio da colônia ao presente contrarrevolucionário? Que imagem do povo brasileiro seria capaz de evitar a mistificação ou o desespero? Num nível formal: que modalidade de atitude coral dos intérpretes poderia aludir à ausência ou à necessidade de uma subjetividade popular, em face nossa história de escravismo?
Em meio a tais dificuldades, que não são apenas estéticas, mas políticas, as reflexões sobre Calabar acabam por se encontrar com a questão da figuração da morte. O estudo de Nina Hotimsky é também revelador sobre o interesse daquele processo na questão do diálogo vivificador com o imaginário da morte. O verso célebre “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem…” entra em cena como um canto mortuário, da amante ao amado que será executado, feito para o corpo que será despedaçado, comemoração da coragem íntima e futura, viagem entretempos. Evoca os mortos das lutas recentes: Che, Marighella, Lamarca. A lírica da ausência da vida pública, nas lindíssimas canções da peça, é assim entoada de modo a deslocar, pelos desejos tortos, os fragmentos históricos ou os diálogos irônicos.
Uma criança dos anos 1970, sem informações familiares sobre a conjuntura política do país, que frequentava aulas de Educação Moral e Cívica na escola, e que ouvisse aquele disco de capa branca de Chico Buarque, com seus trechos que explicitavam o processo de censura (“No poço escuro de nós…”, diz a canção a Bárbara), ao certo pressentia, na inquietante lírica de personagens invisíveis, em diálogos de vontades impedidas e não pronunciáveis, um sinal de que havia tensões ignoradas no mundo histórico, para além da normalidade da escola ou do temor vivido em casa. Este belo estudo de Nina Hotimsky, também um documento da barbárie da cultura de uma época, e que me faz tantas vezes pensar na minha própria infância, se soma agora àquelas canções e páginas de uma peça conhecida e ignorada, possibilitando alguma memória do espetáculo perdido. Ao percorrer seu movimento gerativo, ela nos apresenta outra dimensão daquela história, sugere novas traições e confianças, saltos e iluminações, para além do fato da experiência coletiva retalhada em postas.
(Apresentação do livro O trabalho de encenação em Calabar (1973): o espetáculo censurado e as reflexões de Fernando Peixoto, de Nina Hotimsky, pela editora Desconcertos. https://desconcertoseditora.com.br/produto/o-trabalho-de-encenacao-em-calabar-1973-o-espetaculo-censurado-e-as-reflexoes-de-fernando-peixoto/)