No dia 05 de outubro de 2018, como parte de uma ação comemorativa dos 50 anos da chamada “batalha da Maria Antonia”, (organizada pelo TUSP e pelo Centro Universitário Maria Antonia), realizei no prédio histórico uma leitura cênica em que convidei a psicanalista Cecília Boal, o crítico Roberto Schwarz e o diretor Zé Celso Correa Martinez para lerem textos escritos nos anos 1960 sobre relações entre arte e política.
Cecília Boal leu textos de seu companheiro Augusto Boal, retirados do programa polêmico do espetáculo Feira Paulista de Opinião, espetáculo do qual ela fez parte, em particular do ensaio “Que pensa você da arte de esquerda?”; Roberto Schwarz leu trechos do seu ensaio famoso “Cultura e Política 1964-1968”; e Zé Celso leu partes de uma entrevista dada por ele à equipe do Teatro dos Universitários de São Paulo, para a revista Aparte. Procurei fazer com que as divergências de posições da época fossem expostas no roteiro que também fez uso de escritos de Anatol Rosenfeld (lidos pelo ator Rodrigo Bolzan) e de canções apresentadas por Juçara Marçal, que também foi narradora, e tocadas por Lincoln Antonio. A assistência de direção foi de Maria Lívia Goes. Todos trabalharam voluntariamente na comemoração. O roteiro da leitura é uma colagem de visões de arte do Brasil em 1968, com algum comentário atual. Houve alguns cortes no roteiro, feitos por mim na hora da leitura, mas publico aqui a versão completa. A apresentação aconteceu num teatro pequeno e lotado, que assistiu com perplexidade ao encontro insólito e histórico. Contei, então, com a plena colaboração de meus convidados “atores-autores”, que encararam a leitura com absoluta seriedade, respeitando o texto sílaba a sílaba. Havia entre o notável elenco algum nervosismo, prazer com a tarefa, surpresa com algumas palavras e ideias escritas cinco décadas antes, e atenção aos movimentos mútuos, num encontro que se deu na antevéspera da eleição presidencial.
ROTEIRO DA LEITURA CÊNICA “DEBATES DA aPARTE” 5.X.18.
Com Cecília Boal, Roberto Schwarz, Zé Celso. Participações de Juçara Marçal, Rodrigo Bolzan e Lincoln Antonio.
RODRIGO BOLZAN – Um dos fenômenos mais perturbadores destes tempos é existirem escritores e poetas de valor favoráveis ao fascismo. É comum que grandes artistas sejam conservadores. Mas confunde que pessoas de destaque artístico se tornem representantes de um espírito essencialmente ilegítimo. Como isso é possível? Existe na ordem estética uma força que elimina ou transforma aquilo que nós consideramos ilegítimo? Pode-se argumentar que a arte tem sua autonomia particular e não recebe ordens de outras camadas do espírito objetivo, e que por isso o artista pode defender ideias vergonhosas e retrógradas e glorificá-las na sua obra. Mas este argumento não satisfaz. Porque o ideal estético coincide de maneira extraordinária com o ideal humano. O ser humano, como ponto de contato de determinações opostas, isto é da liberdade e da necessidade – tem como verdadeiro ideal, apesar das variações, o equilíbrio e harmonização desses contrários. E arte é sempre a expressão de uma imensa esperança nessa infinita aproximação, portanto adversa a todo empenho em direção oposta. O nazifascismo, ao contrário, é a expressão de um aviltamento total: socialmente, ao querer a destruição dos brotos da autonomia individual, desenvolvidos em séculos de luta, e o retorno ao clã e à casta. Econômica e politicamente porque é expressão de um capitalismo degenerado, a emancipação dos impulsos mais baixos, camuflados de heróicos e aureolados por mitos irracionais, a glorificação de um imperialismo brutal. Para grande massa, é a transformação da pessoa humana em mero objeto e instrumento, significando a divinização do poder tirânico e a aniquilação da legalidade e da justiça. Se pode haver obras de arte criadas por adeptos do fascismo, é porque ocorreu uma profunda divergência entre a obra e seu criador. Pois arte e fascismo se encontram em campos opostos, são duas intenções hostis. A arte é a expressão do legítimo e o fascismo, do ilegítimo – no espírito vivo da humanidade. Anatol Rosenfeld, 1947.
ACORDES MUSICAIS DA CANÇÃO – (enquanto Rodrigo orienta os convidados a que ocupem seus lugares)
JUÇARA MARÇAL – Isso não é uma leitura cênica, é um pretexto para um encontro, uma reunião. Ela ocorre três dias antes de uma eleição que pode destapar de vez o horror que já se infiltra nas ruas. Leremos e conversaremos sobre textos de 50 anos escritos meses antes ou depois do Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968, que reconfirmou o golpe, pois foi golpe lá como cá, de 1964. Conosco nesta jornada Cecília Boal, Roberto Schwarz e Zé Celso Martinez Correa. A música será improvisada, como tudo nesta noite, por Lincoln Antonio…
LINCOLN ANTONIO – E por Juçara Marçal.
CECÍLIA BOAL – Os reacionários procuram sempre, a qualquer pretexto, dividir a esquerda. A luta que deve ser conduzida contra eles é, às vezes, por eles conduzida no seio da própria esquerda. Por isso, nós — festivos, sérios ou sisudos — devemos nos precaver. Nós que, em diferentes graus, desejamos modificações radicais na arte e na sociedade, devemos evitar que diferenças táticas de cada grupo artístico se transformem numa estratégia global suicida. O que os reacionários desejam é ver a esquerda transformada em saco de gatos; desejam que a esquerda se derrote a si mesma. Contra isso devemos todos reagir: temos o dever de impedi-lo.
LINCOLN – “O que pensa você da Arte de Esquerda, de Augusto Boal, junho de 1968.”
ROBERTO SCHWARZ – O golpe apresentou-se como uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado; a revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em lei. Para conceber o tamanho desta regressão, lembre-se que no tempo de Goulart o debate público estivera centrado em reforma agrária, imperialismo, salário mínimo e voto do analfabeto. Mas o governo que instaurou o golpe não era atrasado. Era pró-americano e antipopular, mas moderno. Levava a cabo a integração econômica e militar com os Estados Unidos, a concentração e a racionalização do capital. Neste sentido o relógio não andara para trás. Quando marchavam pelas ruas contra o comunismo, em saia, blusa e salto baixo, as damas da sociedade não pretendiam renunciar às suas toaletes mais elaboradas. O que se repete é a combinação, em momentos de crise, do moderno e do antigo; mais precisamente, das manifestações mais avançadas da integração imperialista internacional e da ideologia burguesa mais antiga – e obsoleta – centrada no indivíduo, na unidade familiar e em suas tradições. Superficialmente, esta combinação indica apenas a coexistência de manifestações ligadas a diferentes fases do mesmo sistema. Nestas condições, em 1964 o pensamento caseiro alçou-se à eminência histórica.
JUÇARA – “Cultura e política, 1964-1969, Alguns esquemas. Ensaio de Roberto Schwarz”.
BOAL – Porém, a pretexto de não dividir, não temos também o direito de calar as divergências da nossa esquerda. O choque entre as diversas tendências da nossa arte atual não deve significar a predominância final de nenhuma, já que todas devem ser superadas, pois foram também superadas as circunstâncias políticas que as determinaram, cada uma no seu momento. Dentro da esquerda, portanto, toda discussão será válida sempre que sirva para apressar a derrota da reação. E que isto fique bem claro: a palavra “reação” não deve ser entendida como uma entidade abstrata, irreal, puro conceito, mas, ao contrário, uma entidade concreta, bem organizada e eficaz. “Reação” é o atual governo oligarca, americanófilo, pauperizador do povo e desnacionalizador das riquezas do país; “reação” são as suas forças repressivas, caçadoras de bruxas, e todos os seus departamentos, independentemente de farda ou traje civil;
ZÉ CELSO – Qual poderia ser a eficácia política do teatro hoje? O que poderia atuar politicamente sobre a plateia dos teatros progressistas, vinda majoritariamente da pequena burguesia em lenta ascensão ou da camada da “alta burguesia” da classe estudantil? O teatro tem hoje a necessidade de desmistificar, colocar este público no seu estado original, cara a cara com sua miséria, a miséria do seu pequeno privilégio feito às custas de tantas concessões, de tantos oportunismos, de tanta castração e recalque e de toda a miséria de um povo. O importante é colocar este público em termos de nudez absoluta, sem defesa, incitá-lo à iniciativa, à criação de um caminho novo, inédito, fora de todos os oportunismos até então estabelecidos – batizados ou não como marxista. A eficácia política que se pode esperar do teatro para este setor que ele atende – para a pequena burguesia – é a eficácia de ajudar a estabelecer em cada um, a necessidade de iniciativa individual – a iniciativa de cada um começar a atirar sua pedra contra o absurdo brasileiro.
BOAL – O mercado consumidor de teatro é, em última análise, o fator determinante do conteúdo e da forma da obra de arte, da arte-mercadoria. E esse mercado, nos principais centros urbanos do país, é formado pela alta classe média, e daí para cima. O povo e sua temática estão aprioristicamente excluídos. Este fato grave tem deformado a perspectiva criadora da maioria dos nossos artistas, que se atrelam aos desejos mais imediatos da “corte burguesa”, da qual se tornam servis palhaços, praticando um teatro de classe, isto é, um teatro da classe proprietária, da classe opressora. A consequência lógica é uma arte de opressão.
ZÉ CELSO – O teatro não pode ser um instrumento de educação popular, de transformação de mentalidades na base do bom meninismo. A única possibilidade é exatamente pela deseducação, provocar o espectador, provocar sua inteligência recalcada, seu sentido de beleza atrofiado, seu sentido de ação protegido por mil e um esquemas teóricos abstratos e que somente o levam à ineficácia. Num momento de desmistificação como é este que o país vive hoje, o importante é a procura de caminhos através da ação. Talvez muito mais importante do que uma peça bem pensante e ultra bem conceituada, cheia de verdades estabelecidas (que ainda não são verdades, nem podem ser, num momento como este de perplexidade), seja preciso uma peça confusa e que excite o sentido estético, talvez ela seja mais eficaz politicamente. A eficácia do teatro tem que estar ligada à existência deste mundo de violência, a grande distância dos caminhos do transformismo, do reformismo, da educação das massas. Uma peça como “Galileu Galilei”, que pretendo montar em breve, por exemplo, corre o risco de mistificar o público. A peça é toda escrita dentro de um sentido historicista – a história como movimento, uma fase negra que será superada. Poderia levar o espectador a uma supercrença no poder mágico da dialética.
BOAL – O primeiro dever da esquerda é o de incluir o povo como interlocutor do diálogo teatral. E, quando falo povo, mais uma vez falo concretamente: “povo” é aquela gente de pouca carne e osso que vive nos bairros e trabalha nas fábricas, são aqueles homens que lavram a terra e produzem alimentos e são aqueles que desejam trabalhar e não encontram emprego. Nenhum destes frequenta os teatros e, portanto, é necessário fazer com que o teatro frequente os circos, as praças públicas, os estádios, os adros, os descampados em cima de caminhões. É necessário que toda a esquerda vá para as ruas, e que o faça constantemente. Este não é um trabalho fácil.
ZÉ CELSO – O sentido da eficacia do teatro hoje é o sentido da guerrilha teatral. Com todo descaramento possível, pois sua eficácia hoje somente poderá ser sentida como provocação cruel e total.
JUÇARA CANTA RODA VIVA
ROBERTO SCHWARZ – A vida cultural entrava em movimento, com as mesmas pessoas de sempre – a maioria de esquerda – e uma posição alterada na vida nacional. Através de campanhas contra tortura, rapina americana, inquérito militar e estupidez dos censores, a inteligência do país unia-se e triunfava moral e intelectualmente sobre o governo, com grande efeito de propaganda. Somente em fins de 1968 a situação volta a se modificar, quando é oficialmente reconhecida a existência de guerra revolucionária no Brasil. É neste momento que o policialismo torna-se verdadeiramente pesado, com delação estimulada e protegida, a tortura assumindo proporções pavorosas, e a imprensa de boca fechada. A brutalidade sinistra, rotineiramente aplicada aos trabalhadores, voltava-se por um momento contra os filhos da burguesia, causando espanto e revolta.
BOAL – Antigamente os Centros Populares de Cultura realizavam tarefas admiráveis no setor artístico e cultural: espetáculos, conferências, cursos, corais, alfabetização, cinema etc. Os reacionários, porém, escandalizaram-se com o fato de que também o povo gostava de teatro, gostava de aprender a ler etc. Os cpcs foram liquidados e os responsáveis por esse crime continuam no bem-bom. Rouba-se ao povo até mesmo o uso da palavra “popular”. E o máximo que se tem conseguido fazer é incluir os estudantes nas platéias: esta é uma condição necessária para se vitalizar o teatro, mas não é suficiente. Se um teatro propõe a transformação da sociedade deve propô-lo a quem possa transformá-la: o contrário será hipocrisia ou gigolotagem.
(SECA MÚSICA)
ZÉ CELSO – É claro que se nos dirigíssemos a um outro público, e pudéssemos ter um circo para dois mil lugares, por exemplo, onde se pudesse abrigar outras camadas sociais, aí a coisa seria outra. Mas nosso público é burguês. E para esta classse, somente a violência e principalmente a violência da arte, sem o cartilhismo e o pedagogismo barato, poderá captar os pontos sensíveis desta plateia morta e adormecida. Para um público mais ou menos heterogêneo que não reagirá como classe, mas sim como indivíduo, a única possibilidade é o teatro da crueldade brasileiro – do absurdo brasileiro – teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura da apatia em que vivemos. O violão quebrado de Sérgio Ricardo. Esse país precisa de mais violões quebrados.
BOAL – Anatol Rosenfeld ressaltou que certo tipo de peça feito no Teatro de Arena – as de realismo social – tendem a criar uma espécie de “empatia filantrópica”: o espectador, por assistir à miséria alheia, julga-se absolvido do crime de ser ele também responsável por essa miséria. Espetáculos desse tipo correm o risco de realizar a mesma tarefa da caridade em geral e da esmola em particular: a esmola é o preço da culpa. Porém é igualmente certo que o realismo cumpriu e cumpre tarefa de extrema importância ao retratar a vida brasileira, ainda que esta importância seja mais documental do que combativa. E, nos dias que correm, o teatro brasileiro carece de maior combatividade. Já o recente repertório do Arena, em especial, o do gênero Zumbi é a tendência exortativa. Utiliza uma fábula indicando-se os meios hábeis para a derrubada da ditadura, a instauração de uma nova justiça e outras coisas lindas e oportunas. Insta-se a platéia a derrubar a opressão e até aí nada mal; o pior, no entanto, é que via de regra essas mesmas platéias são os verdadeiros esteios dessa mesma opressão. Espetáculos desse tipo, ao enfrentarem platéias desse tipo, defrontam-se com a surdez.
ROBERTO SCHWARZ – Nos espetáculos de conclamação e encorajamento era inevitável um certo mal-estar estético e político diante do total acordo que se produzia entre palco e platéia. A cena não estava adiante do público. Nenhum elemento da crítica ao populismo fora absorvido. O que dava um traço indevido de complacência ao delírio do aplauso. Se o povo é corajoso e inteligente, por que saiu batido? E se foi batido, por que tanta congratulação? A falta de resposta política a esta questão viria a transformar-se em limite estético do Teatro de Arena. Mas era um teatro que estava próximo dos estudantes. E o movimento estudantil vivia o seu momento áureo, de vanguarda política do país. Esta combinação entre a cena “rebaixada” e um público ativista deu momentos teatrais extraordinários, e repunha na ordem do dia as questões do didatismo.
BOAL – Ninguém deve ter pudor de exaltar o povo, como parece acontecer com certa esquerda envergonhada. Desde que não se esqueça que o verdadeiro interlocutor deste tipo de teatro é o povo, e o local escolhido para o diálogo deve ser a praça.
ROBERTO SCHWARZ – Mas existe aí um impasse formal – Qual a composição social e de interesses do movimento popular? Esta é a pergunta a que o populismo responde mal. Porque a composição das massas não é homogênea, parece-lhe que mais vale uni-las pelo entusiasmo que separá-las pela análise crítica de seus interesses. Entretanto, somente através da crítica surgiriam os verdadeiros temas do teatro político.
ZÉ CELSO – Um filme como “Terra em Transe” dentro do pequeno público que o assistiu e que o entendeu, tem muito mais eficácia política do que mil e um filmecos politizantes. “Terra em Transe” é positivo exatamente no sentido de colocar quem se comunica com o filme em estado de tensão e de necessidade de criação com este país. A arte não tem compromissos. E neste país parado, onde não acontece nada onde você passa matando o tempo e o tempo passa matando você, a arte solta e livre poderá vir a ser a coisa mais eficaz possível. Não é a toa que todas as grandes revoluções são precedidas e impulsionadas por uma correspondente fase de criatividade no campo da arte.
BOAL – A terceira linha do teatro de esquerda, além do realismo e do musical exortativo, é o tropicalismo chacriniano-dercinesco-neo-romântico. Seus principais teóricos e práticos não foram até o momento capazes de equacionar com mínima precisão as metas: vão desde afirmações dúbias do gênero “nada com mais eficácia política do que a arte pela arte”, ou “a arte solta e livre poderá vir a ser a coisa mais eficaz do mundo”, passando por afirmações grosseiras do tipo “o espectador reage como indivíduo e não como classe” (fazendo supor que as classes independem dos homens e os homens das classes), até proclamações verdadeiramente canalhas do tipo – dadas por um cantor – “tudo é tropicalismo: o corpo de Guevara morto ou uma barata voando para trás de uma geladeira suja”. O tropicalismo, apesar do seu caráter dúbio teve pelo menos a virtude de fazer com que o Teatro Oficina deixasse de ser um museu de si mesmo, carregando eternamente seus pequenos burgueses e quatro num quarto. Teve sobretudo a vantagem de propor a discussão, ainda que em bases anárquicas.
ROBERTO – O Tropicalismo trabalha com a conjunção esdrúxula de arcaico e moderno que a contra-revolução cristalizou, ou por outra ainda, com o resultado da anterior tentativa fracassada de modernização nacional. No método Paulo Freire, ao contrário, estão presentes o arcaísmo da consciência rural e a reflexão especializada de um alfabetizador; entretanto, a despeito desta conjunção, nada menos tropicalista do que o dito método. Por quê? Porque a oposição entre os seus termos não é insolúvel: pode haver alfabetização.
ZÉ CELSO – Muitos críticos, como o senhor Décio de Almeida Prado, são mestres em retirar as cargas explosivas de todas as inovações. Tudo que se faz de novo neste país em teatro ele elogia e incorpora dentro de uma tradição calma do “já feito”. E a coisa que poderia ter um aspecto novo, recebe um golpe de esterilização e entra na rotina de um processo mole e anêmico do teatro brasileiro. Sem o golpe, sem o desgaste da festividade pós-golpe, e sem o enfado absoluto de tudo que fizemos até então, “O Rei da Vela” talvez não tivesse existido. Era terrível para mim ver a plateia dos sábados se deliciando com a mensagem boboca, nojenta mesmo, que “Ralph”, personagem de “Vida Impressa em Dólar”, concluía no final da peça. Com que dificuldades os atores engoliram aquele texto ridículo em que tanto acreditávamos cinco anos atrás. E como aquela plateia se comovia e se dignificava, se esquerdizava e até protestava através de todo aquele açúcar melado que lambusava tudo. Regime urgente – Dietil. Aquilo não podia continuar. Então veio Rei da Vela. Eu ouço as músicas do meu tempo, vejo e revejo filmes e vou descobrindo que alguma coisa nova está nascendo no país. E se até no teatro isto chega, é bom sinal. Oswald de Andrade é a possibilidade de um marco de ruptura com toda uma tradição de teatro brasileiro, político ou não, com uma visão engrandecedora e mistificadora da nossa realidade. O Brasil não tem uma tradição de cultura revolucionária. Oswald preconiza uma. Oswald é a possibilidade de uma cultura crítica, fora do oficialismo, lirismo, do romantismo político. E é o oposto disto. É a devoração antropofágica de todos os mitos criados para impedir este país de copular com a sua realidade e inventar sua história. Neste sentido, é um monumento isolado.
CECÍLIA CANTA MISERERE NOBIS DE GIL
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Tomara que um dia de um dia seja
Para todos e sempre a mesma cerveja
Tomara que um dia de um dia não
Para todos e sempre metade do pão
Tomara que um dia de um dia seja
Que seja de linho a toalha da mesa
Tomara que um dia de um dia não
Na mesa da gente tem banana e feijão
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Já não somos como na chegada
O sol já é claro nas águas quietas do mangue
Derramemos vinho no linho da mesa
Molhada de vinho e manchada de sangue
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
AO FIM, SEGUE A MELODIA
BOAL – O tropicalismo é neo-romântico — baseia-se no ataque às aparências da sociedade. O tropicalismo é homeopático — pretende destruir a cafonice endossando a cafonice, pretende criticar Chacrinha participando dos seus programas de auditório. Porém, a participação de um tropicalista num programa de Chacrinha obedece a todas as coordenadas do programa e não às do tropicalista — isto é, o cantor acata docilmente as regras de jogo: veste-se à maneira do programa, canta as músicas mais indicadas para esse tipo de auditório dopado.
ZÉ CELSO – “O Rei da Vela” não parte do pressuposto de ter uma ideia e se utilizar de uma peça para expor linearmente esta ideia, tema, ou seja lá o que for, como desenvolvimento em uma ação. Sua única grande fidelidade é seu sentido anárquico de apreensão do mundo.
CECÍLIA – O tropicalismo é inarticulado – não consegue se coordenar em nenhum sistema — apenas xinga a cor do camaleão.
ZÉ – Não me interessa um teatro que tem preocupações de fidelidade a uma visão engajada conforme a cartilha de algum partido, não me interessa ortodoxia alguma. Oswadl não tem problemas de forma. Entra com a literatura, com a música, a conferência, o discurso, a chanchada, a obscenidade, etc. Tudo é instrumento de expressão.
CECÍLIA – Vagos desejos de “espinafrar”, desejos de saltarem em “abismos vertiginosos”, ou mais moderadamente, eles declaram que “não há nada a declarar”. O tropicalismo é tímido e gentil — pretende épater mas consegue apenas enchanter les bourgeois.
ZÉ CELSO – A peça agride intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente. Isto é, chama muitas vezes o espectador de burro, recalcado e reacionário. E a nós mesmos também. Ora ela não pode ter a adesão de um público que não está disposto a se transformar. Ela não vai com as boas consciências, com as boas almas. Mas em compensação ela tem a adesão de um grande setor da plateia que se comunica com a violência do espetáculo. Tem servido para mim e para o Oficina como ponto de contato com tudo que vem surgindo de criativo e novo no Brasil. Antes do “Rei da Vela”, nós vivíamos isolados. Depois da encenação nós fizemos grandes amigos e um bom número de inimigos também. Mas como compensou. “O Rei da Vela” deu-nos a consciência de pertencermos a uma geração.
ROBERTO – A hostilidade do Oficina era uma resposta radical, mais radical que a do Arena, à derrota de 1964; mas não era uma resposta política. Em conseqüência, apesar da agressividade, o seu palco representa um passo atrás: é moral e interior à burguesia, reatou com a tradição pré-brechtiana, cujo espaço dramático é a consciência moral das classes dominantes. Dentro do recuo, entretanto, houve evolução, mesmo porque historicamente a repetição não existe: a crise burguesa, depois do banho de marxismo que a intelectualidade tomara, perdeu todo crédito, e é repetida como uma espécie de ritual abjeto, destinado a tirar ao público o gosto de viver. Por seu conteúdo, este movimento em relação ao espectador é desmoralizante ao extremo; mas como estamos no teatro, ele é também imagem, donde a sua força crítica.
ZÉ – A maior reação, em todo caso, foi minha mesmo. E dos que fizeram o espetáculo. Esta entrevista eu nunca daria a propósito de outra peça. O Brasil de hoje, ou o Oswald, ou nós, não sei, tem uma coisa estranha. Fico hoje satisfeito em saber que o teatro tem o poder de suscitar essas reações fortes.
CECÍLIA – E agora? Por essas vias tem-se manifestado a cultura de esquerda. O que faremos nesse momento, com nossas diferenças, quando os transitórios possuidores dos canhões abriram seu jogo? A direita mantêm o dedo no gatilho. Os reacionários simplificaram seu jogo: todas as aparências de democracia foram desmistificadas por eles próprios. Sabe-se agora como é fácil para os opressores defenderem a legalidade, já que são eles próprios os fabricantes da legalidade.
ROBERTO – E agora? Quando o Estado burguês – que nem o analfabetismo conseguiu reduzir, que não organizou escolas passáveis, que não generalizou o acesso à cultura, que impediu o contato entre os vários setores da população – cancela as próprias liberdades civis? A cultura é aliada natural da revolução, mas esta não será feita para ela e muito menos para os intelectuais. É feita, primariamente, a fim de expropriar os meios de produção e garantir trabalho e sobrevivência digna aos milhões e milhões de homens que vivem na miséria.
BOAL – Os caminhos atuais da esquerda revelaram-se becos sem saída. Necessário, agora, é dizer a verdade como é. E como dizê-la? E mais: como sabê-la? Nenhum de nós, como artista, reúne condições de, sozinho, interpretar nosso movimento social. Isso só pode se lograr em conjunto.
ZÉ – O Hierofante em A Morta diz: O erro do homem é pensar que é o fim do barbante…o barbante não tem fim. O dilúvio de fogo nos seguirá. Respeitável público, somos como vós mesmos, um imenso cadáver gangrenado. Salvai nossas podridões e talvez vos salvareis da fogueira acesa do mundo.
RODRIGO – Agora, nessa noite de antevéspera, nos digam, Zé, Roberto e Cecília – o que pensam disso tudo hoje?
(TEMPO DO DEBATE. COMO ENCERRAMENTO DA NOITE, CANÇÃO E TEXTO FINAL:)
MÚSICA TEMPO DE GUERRA DO ESPETÁCULO ZUMBI
Eu vivi na cidade
No tempo da desordem
Vivi no meio da gente minha
No tempo da revolta
Comi minha comida
No meio da batalha
Amei, sem ter cuidado
Olhei e tudo que via
Sem tempo de bem ver
Assim passei o tempo
Que me deram pra viver
A voz da minha gente se levantou
E a minha voz junto com a dela
Tenho certeza que os donos da terra
Ficariam mais contentes
Se não ouvissem minha voz
Minha voz não pode muito
Mas gritar eu bem gritei!
É um tempo de guerra
É um tempo sem sol
É um tempo de guerra
É um tempo sem sol
Sem sol, sem sol, tem dó!
Sem sol, sem sol, tem dó!
E você que prossegue
E vai ver feliz a terra
Lembre bem do nosso tempo
Desse tempo que é de guerra
Veja bem que preparando
O caminho da amizade
Não podemos ser amigos, ao mau
Ao mau vamos dar maldade
Se você chegar a ver
Essa terra da amizade
Onde o homem ajuda ao homem
Pense em nós, só com vontade
RODRIGO
Max Brod, divulgador de Kafka, diz: Há um infortúnio humano que é nobre e imutável: o homem não pode deixar de sofrer, de adoecer, de tomar remédios que às vezes agravam a própria doença, não pode deixar de morrer. Isso não pode ser mudado. Mas há uma segunda espécie de infortúnio, que se refere às as condições que podemos mudar, é o infortúnio indigno. Confundir um e outro é pior pecado. A transferência do infortúnio histórico para o infortúnio metafísico é mistificação. (Anatol Rosenfeld, 1968)
(FIM DA LEITURA CÊNICA)