Para a escrita de uma versão libertária da Paixão de Cristo, que faço a convite de artistas militantes do assentamento Santana, no interior do Ceará, com quem colaboro há alguns anos, lembrei-me de estudar as imagens pintadas por Giotto, em especial as feitas para a Capela dos Scrovegni, no começo do século XIV. Pude ver de perto essas obras por uma conjunção de acidentes, anos atrás. Eu trabalhava num grande jornal de São Paulo e, o novo editor, se viu obrigado a diminuir o espaço da crônica semanal. Sendo eu o único cronista novato, autor de textos que transpiravam um socialismo difuso, e o não-famoso em meio a vários escritores consagrados, meus chefes decidiram, apesar de ser dos mais lidos do caderno, que eu seguiria apenas como crítico de teatro. Recusei o rebaixamento sorrindo e anunciei minha saída do jornal. Um pouco pela consciência culpada do editor, que confessou obedecer ordens, ou como elemento de sedução para que eu seguisse mais tempo no trabalho, ofereceram-me uma passagem aérea para a Itália, aonde eu iria escrever reportagens sobre um festival de artes cênicas. Evidentemente, aceitei a compensação incomum que me permitia, pela primeira vez, visitar o Velho Mundo, num tempo em que eu não tinha dinheiro para pegar um táxi para o aeroporto. Conheci naquele festival alguns dos melhores encenadores europeus da época, como Jerzy Grotowski. Quando finalizei o trabalho, viajei pelas lindas cidades da Toscana, entre elas Pádua. E foi um acaso, o de um passeio sem rumo certo, que me levou a entrar na pequena capela pintada por Giotto a partir de 1304. Tive ali um sentimento inédito sobre o quê pode ser uma experiência de artes visuais: todas as paredes cobertas por afrescos de imagens variadas, de sentido narrativo e alegórico. Hoje sei que são 39 essas pinturas com cenas da vida e da Paixão de Cristo, ao lado de episódios da história de sua mãe, Maria, que estão sob uma terceira série de imagens, as de seus avós Santa Ana e São Joaquim, apresentados conforme os relatos dos evangelhos apócrifos. Na parte mais baixa das paredes, há personificações das virtudes e dos vícios. A organização épica dos quadros, que apesar de independentes produzem diálogos entre uma linha de afrescos e outra; a necessidade do espectador contemplá-los em movimentos comparativos, ora horizontais ora verticais, ou procurando um conjunto possível; a beleza dessa arte cristã de ares orientais; as cores vivas e desbotadas, e principalmente a absurda força gestual, tudo era de uma beleza única para mim, a despeito de meu ateísmo, decorrente dos anos vividos nos corredores de um colégio católico. Para a escrita da peça do Assentamento, lembrei que ainda possuía o livro comprado no dia da visita em Pádua, com imagens da Capela de Giotto. Relendo-o, e a partir de outras fontes, sou informado de que a origem daquele prédio esteve ligada a um absurdo caso envolvendo uma família de usurários. A capela foi construída por ordem de um burguês rico chamado Enrico Scrovegni, como parte de um acordo feito com a Igreja, para que ele pudesse receber a herança deixada por seu pai agiota, uma fortuna feita com empréstimos a juros, num tempo longínquo em que ganhar dinheiro apenas por dispor de dinheiro era considerado pecado mortal. Entre as punições à usura estavam a recusa ao enterro em solo consagrado e a intransmissibilidade dos bens como herança. Ao que parece, a proximidade com o papa Benedito XI gerou um meio de se manter os bens dos Scrovegni na família: parte da riqueza seria doada “aos pobres”, e o herdeiro teria que entrar para uma ordem leiga e construir uma capela. A igrejinha decorada por Giotto, com as mais belas imagens da Paixão de Cristo já pintadas, foi assim erguida em nome do trânsito livre do dinheiro e da transcendência da dívida. Dizem que Giotto cobrou um preço altíssimo pelo trabalho. E significativamente, omitiu o mais conhecido dos vícios de suas personificações grotescas: na Capela dos Scrovegni não ganhou forma a alegoria da Avareza, porque “não se fala de corda, em casa de enforcado”. Em contrapartida, como outro recado sutil, Giotto pintou, de modo muitíssimo concreto e vivo, a cena da expulsão dos mercadores do Templo. À frente de uma mesa de cambista, tombada no chão, com as arcadas do templo ao fundo, enquanto os animais dos comerciantes, destinados ao sacrifício, fogem de suas gaiolas, Jesus ergue o cotovelo no instante do soco que ameaça o vendilhão. Essa imagem de um Cristo mostrado em perfil violento, sobreposta à história de sua produção, me parece uma aula de dramaturgia atual, e uma lição sobre a arte na relação com seu lugares sociais. Inspira, por outro lado, o projeto tão diverso de uma Paixão de Cristo reinventada por um grupo de artistas amadores, mulheres de um assentamento rural no sertão do Ceará.
(por Sérgio de Carvalho, Mariana Mayor e Paulo Bio Toledo)
De que modo pensar as artes cênicas como realização social? Em que medida categorias teóricas podem atrapalhar a observação concreta dos fenômenos culturais? Como as formas cênicas podem expressar, ao mesmo tempo, a beleza e o horror da vida nacional? De que modo o escravismo e a mercantilização colonial aparecem ainda hoje nas formas culturais praticadas no Brasil? Essas são algumas das questões que atravessam este diálogo entre Sérgio de Carvalho e os pesquisadores Maria Mayor e Paulo Bio Toledo, que foram seus orientandos de mestrado e doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. O ponto de partida da entrevista é a pesquisa atual realizada por Sérgio de Carvalho, no Instituto de Estudos Avançados da USP, sobre o teatro jesuítico do século XVI. A síntese aqui registrada exemplifica o modo de trabalho do Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade (LITS), do qual os três fazem parte.
Paulo – No prefácio do historiador Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes, sobre o Atlântico no século XVI e a colônia, ele conta que resolveu estudar o assunto depois que recebeu a notícia da morte de três colegas de universidade na década de 1970 (sendo um deles Heleny Guariba). Ele diz assim: “Entender a sua morte, entender o Brasil, era o que queria fazer dali em diante, é o que tento fazer neste livro”. Ou seja, um recuo de séculos para compreender algo de uma sociabilidade horrível que ele testemunhava. O que me faz pensar no seu interesse atual, Sérgio, para o século XVI, para o chamado Teatro Jesuítico. O que o levou a esse momento da história brasileira?
Sérgio – O que me moveu para uma pesquisa histórica desse tipo, antes mesmo do interesse pelo tema, foi uma questão de método. Anos atrás, quando ingressei na USP como professor, fui responsável por uma disciplina de graduação chamada Teatro e Sociedade. Ao invés de uma abordagem dentro do campo da Sociologia do Teatro, perspectiva importante, e da qual eu não poderia fugir vez ou outra, procurei fazer aquilo que o Peter Szondi chama de “semântica da forma”: eu selecionava algumas obras, uma tragédia de Ésquilo, por exemplo, e tentava ler o texto, junto com os estudantes, do ângulo da interação entre formas e processo social. Fazíamos perguntas sobre como os ritmos sociais, as dinâmicas da sociedade daquela época se materializam na forma literária ou cênica. Eu procurava, ainda, inscrever a obra num conjunto de formações ou de instituições da cultura, como o festival dionisíaco, a cidade guerreira, para compreender os lugares sociais que a envolvem e a orientam. A contextualização histórica tentava preparar as perguntas críticas, cujas respostas incertas envolvem sempre uma interpretação: em que medida alguns debates da vida política, econômica e cultural aparecem na evolução coreográfica, no dialogismo dos episódios, e no canto do coro de uma peça ateniense, forma coletivizante que, na interpretação de Vernant e Naquet, mimetiza a argumentação retórica dos discursos jurídicos? Essa tragédia pode ser lida como uma luta entre os valores sociais das famílias antigas, dos clãs com sua ética da vingança, e os valores novos, mais abstratos e emergentes da cidade guerreira e mercantil? Isso me obrigava a especulações que supõem a dialética entre forma e conteúdo. Era preciso discutir os sempre fugidios “enunciados da forma” em perspectiva histórica. Em paralelo à universidade, eu desenvolvia, como faço há anos, um trabalho artístico: como dramaturgo e encenador na Companhia do Latão. Ele me levava a observações semelhantes, ainda que de sentido inverso. Entre 2007 e 2010, estudamos a produção cultural da década de 1960 para a escrita do espetáculo Ópera dos Vivos. Nesse longo processo de ensaios, eu percebi que não adiantava discutir o valor estético do CPC da UNE ou do Teatro de Arena, coisa que fazíamos para compreender seu estilo, se eu não tentasse entender também o conjunto do trabalho cultural que eles experimentaram. O trabalho, como ensinava Brecht, deveria ser a categoria orientadora do estudo do modelo. Era importante entender a dimensão prática completa para que as peças daquela geração mostrassem sua beleza para nós. No debate sobre os Centros Populares de Cultura, que o Paulo estudou tão bem (1), é comum que se reproduza, ainda hoje, um estereótipo de julgamento: dizem que havia precariedade estética no CPC porque era um teatro instrumentalizado politicamente. E essa suposta fraqueza estética, que aparece em algumas peças de ares ingênuos, decorreria de uma visão populista. Esse juízo, porém, é falso porque não compreende a força daquela “ingenuidade”, que pode ser reconstituída fora do texto. A vitalidade da arte do CPC não estava nas obras, e sim no conjunto do trabalho estético-político que “dizia coisas” junto com elas. Quando formamos o nosso Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade (LITS), a proposta era, portanto, reler algumas dessas experiências brasileiras do ângulo do trabalho. Ele se manifesta na forma, mas envolve várias relações socioculturais, e sua descrição demanda diálogo com um contexto histórico mais amplo. Como são obras nascidas de um embate com modelos estrangeiros, elas pedem, ainda, uma compreensão de sua especificidade local, o que obriga muitas vezes ao recurso comparativo. Foi isso, por exemplo, que a Mariana fez para compreender o trabalho teatral da Casa de Ópera de Vila Rica (2): com base num paralelo com a cena de Portugal, ela conseguiu identificar as razões do nosso arremedo local de cultura “operística”, com encenações de temática ao mesmo tempo cristã e iluminista, nas condições de uma colônia escravista. Através de um caso concreto, ela pôde mostrar dinâmicas mais gerais. Enfim, acho que caí nos jesuítas em função desse gosto pelo estudo das relações entre vida material e cultural, algo praticado em áreas como literatura e cinema, mas ainda incomum nas artes cênicas. E essa perspectiva tem me interessado tanto do ponto de vista acadêmico como artístico.
Paulo – De fato, olhar para as condições de produção e de trabalho das manifestações culturais muda tudo. No caso do teatro dos anos 1960, o desprezo por isso levou a uma série de simplificações esquemáticas sobre o engajamento brasileiro, na maior parte das vezes simplificações depreciativas, que apagaram a maior vitalidade experimental daquele momento, quando se buscou reorientar o lugar social do teatro, não é? E, do mesmo modo, seus estudos atuais têm mostrado que olhar para uma peça de teatro jesuítico sem fazer perguntas básicas do tipo: onde aquilo é apresentado? Para quem? Em que situação?, restringe demais o problema. Olhar para essas questões do trabalho coloca as coisas num lugar muito mais contraditório, dialético, faz duvidar de fórmulas fáceis como “teatro catequético” ou “instrumentalização política da arte”, por exemplo, porque desloca a forma idealista de observar o fenômeno estético.
Sérgio – Eu comecei também o estudo sobre teatro jesuítico por razões bem pessoais: desde a adolescência gostava de ler a crônica do século XVI, porque gostava do estilo da prosa. Esse conhecimento daquela bibliografia me permitiu, anos depois, observar que mesmo os melhores textos sobre a dramaturgia de Anchieta, como os de Décio de Almeida Prado ou de Alfredo Bosi, reproduziam uma ideia incorreta: a de “teatro catequético”. Hoje acho que a obsessão universitária com fórmulas de enquadramento pode ser muito ruim para as artes: a ideia classificadora acaba por se impor, e as leituras das obras passam a se balizar por ela. O referenciamento antecede a observação, e a abstração reproduzida supõe uma ordem estável. Mas a ideia de catequese, por exemplo, se ligava ao ensino da doutrina cristã. Havia um repertório que incluía as orações básicas da igreja, o conhecimento dos pecados etc. E a transmissão dessa doutrina cristã aos povos originários, no século XVI, era feita pelos jesuítas sobretudo com as crianças: elas repetiam em coros tupis o “Pai Nosso”, cantavam, respondiam às perguntas religiosas. Quando lemos os poemas e diálogos, atribuídos a Anchieta, e tentamos imaginar os espetáculos e o contexto em que eram feitos, observamos que as cenas eram parte das grandes festas, apresentadas para grupos já doutrinados há muito tempo, em duas situações sociais predominantes: a do aldeamento, aquela absurda “redução” humana em que indígenas de etnias diferentes eram “descidos” e agrupados num vilarejo, em torno de uma igreja erguida no limite do sertão; ou a dos colégios das cidades. Fosse o que fosse, aquele “teatro” das festas tinha várias funções sociais, que variam conforme o caso. Mas era sempre uma cena pós-catequética. A categoria tira a complexidade do real e dificulta que você veja outros mecanismos de pressão cultural, do qual o espetáculo era só uma parte. Ela também apaga a possibilidade de reconhecer os meios com que os povos originários conseguiram resistir ou mudar aquele modelo cultural imposto. E se eles puderam reinventar essas estruturas culturais em formas sincréticas posteriores é porque também elas tinham suas brechas e precariedades. Tanto que essa cena jesuítica das festas precisou das armas para se implantar entre os tupinambás: foi só depois da chegada do governador Mem de Sá e dos massacres da Guanabara que a estrutura do aldeamento se impôs por toda a costa. A categoria “teatro catequético” é imprecisa porque sugere uma relação simples de aculturação, como se houvesse de um lado a cultura dos cristãos e de outro a dos tupinambás, numa situação “virgem”, sem outras mediações. Idealismos desse tipo tiram o sentido dos documentos: o que havia, na verdade, eram muitas interações contraditórias, em que a cena era apenas uma delas, em meio a uma celebração cristã que confirmava uma história violenta anterior, a da modificação das relações com a terra. Meu esforço com esse estudo é ler, com base na reconstituição dos contextos, alguns desses documentos da “cultura como barbárie”, principalmente nos aspectos que têm consequências até hoje.
Paulo – Ainda existe uma busca insistente por algo como uma identidade, uma necessidade de definição do que é Brasil, do que é cultura brasileira. Tenho a impressão de que no campo da cultura atual vem surgindo com força um tipo de interesse por formas de teatralidades originárias, o que parece ser uma atitude contra- hegemônica, porém, muitas vezes, parece envolta num tipo de “fetichismo”, por assim dizer…
Mariana – Uma atitude mistificadora também, idealizante do que seriam essas raízes.
Sérgio – Eu tenho a impressão de que a idealização, qualquer que seja, pressupõe o afastamento do real em algum nível. Nem sempre isso é ruim, porque pode servir para uma projeção utópica, para o distanciamento de uma situação de dominação ou hegemonia, ou para a observação crítica de uma realidade insuportável. E precisamos com urgência reconhecer o valor das ações culturais que não pertencem à visão de mundo dos colonizadores europeus, responsáveis por nossa história de massacre. O efeito de mistificação surge quando você acha que uma ideia, conhecimento ou valor opera por si, que ele possa ter uma força absoluta, independente da ação das pessoas, como se houvesse uma “identidade” cultural em abstrato, que atravessa as gerações como se fosse um deus alado, sem pisar o chão nem se transformar no contato com os agentes ou lugares concretos em que a cultura vive. Quando você estuda um pouco da prática dos povos originários no século XVI, você vê que ela depende de um vínculo não proprietário com a terra, do movimento livre através do território, do deslocamento entre lugares e mundos, inclusive os espirituais. Converter os tupinambás ao cristianismo não era só questão de fé ou de crença, era um problema ligado à necessidade de impedir que esses povos seguissem sua vida nômade. Era preciso cessar o movimento indígena, incluído aí o transe ligado à vingança antropofágica. Os jesuítas percebem isso muito cedo: a questão da crença é antes uma questão de “costumes”, ou seja, de prática. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, num livro famoso sobre a “inconstância da alma selvagem” – frase que era um lugar – comum retórico do século XVI, porque os indígenas se diziam cristãos e depois mudavam de ideia, sem apego à conversão declarada ̶ , sugere que essa inconstância constituía um fundamento programático, uma orientação epistemológica para a metamorfose. Nessas comunidades não proprietárias, o princípio da autoridade não se fixava. Daí o desespero dos jesuítas que não sabiam negociar com tanta instabilidade. Na verdade, acho que a grande mudança cultural daquele momento foi a imposição da propriedade da terra, garantida pelos canhões da colonização. Assim, para reviver hoje a força de qualquer experiência cultural, você precisa produzir também condições materiais para que essa experiência renasça e se modifique. Anos atrás entrevistamos, na Companhia do Latão, uma liderança Guarani Mbya, chamada Jerá. Ela dizia que não adianta um discurso contra a cultura mercantil dos brancos se não houver terra onde as pessoas possam experimentar outras formas de relação com a natureza, com o mundo e com as tradições.
Mariana – Ao mesmo tempo, a gente vive a contradição, por ser um país colonizado, de ter a maior parte das fontes documentais sobre povos indígenas feita pelas mãos dos próprios colonizadores. Como reconstituir materialmente as formas de vida indígena antes de 1500? Talvez pela dificuldade da tarefa, o discurso mistificador ganhe destaque, ainda mais hoje com alguns debates sobre o decolonial. Tenho a impressão de que há a perspectiva de pensar a colonização como se fosse apenas uma ideia a ser negada, e não como se fosse um fato, um processo histórico estabelecido que atravessa toda a sociedade brasileira.
Sérgio – A única chance é “ler a contrapelo” e virar do avesso essa documentação elaborada pelos invasores, às vezes os únicos registros de mundos já exterminados. Mas também há hoje outras fontes importantes. Uma é a arqueologia, que dá pistas sobre a vida dos povos mais antigos da terra, de seus embates e trajetórias. E outra, muito importante, pode ser localizada na voz das pessoas vivas, dos descendentes. Há estudos antropológicos influenciados pelos próprios povos originários que há algum tempo estudam aspectos que são de tradição oral, gestual, ligados a costumes e cerimônias, que permitem rever os movimentos mais antigos.
Mariana – Vendo por outro lado esta nossa conversa, o processo de aclimatação local de modelos transpostos é uma questão fundamental, não? Lembro de você falando muitas vezes durante nossos percursos de pesquisa: “estudar o Brasil nunca é só estudar o Brasil; estudar o teatro brasileiro nunca é só estudar o teatro no Brasil. É preciso, ao mesmo tempo, olhar para fora e observar a relação com os modelos”.
Sérgio – É o que comentei da sua pesquisa sobre Vila Rica: ela se realiza quando você observa também o contramovimento. Havia um modelo de teatro musicado transposto da Europa que leva uma “elite” culta a construir um edifício teatral. Mas há também a resistência a esse modelo gerada pelas condições objetivas do trabalho artístico feito por pessoas negras, numa cidade organizada pela mineração. Estudos de interações como essa podem gerar muitas percepções novas sobre a história das formas cênicas no território. É um debate de qualquer forma amplo, complexo, mas está mais do que na hora de mudar o que convencionalmente chamamos de História do Teatro. Porque história e teatro são construções teóricas que surgem na passagem do século XVIII para o XIX. A rigor, são fruto dessa “comunidade imaginada”, na expressão de Benedict Anderson, chamada nação. Pelo fato da História do Teatro ter sido hegemonicamente construída como história de uma parte da cultura nacional, ela reproduz alguns padrões ideológicos dominantes nesse campo. O primeiro é que deve ser uma história ligada à língua e ao território demarcado. Essa tradição passa a selecionar os autores da língua tornada oficial. Em Portugal, por exemplo, quando se olha para o passado, o historiador vai ter pouco interesse pelo teatro feito em latim, que foi muito forte e teve valor literário. E vai muito menos observar aspectos que se desliguem da literatura ou da concepção de uma forma dialógica de teatro, como a dança dos árabes que habitaram a península ibérica. Essa história do teatro nacional precisa também ser laica, porque ela se constrói como narrativa de emancipação da festa cristã, no sentido de uma autonomização estética de tipo burguês. Um exemplo observado na minha pesquisa recente é o do nome “drama litúrgico”. Até onde sei, não há uso medieval disso: a expressão surge no século XIX para indicar um princípio laico que supostamente emerge do coro religioso, o que é uma visão discutível e ideológica, um desejo de que no canto monástico surja um indício “dramático” da individuação posterior. E o terceiro aspecto decorre dessa identificação das burguesias europeias com o projeto filosófico do sujeito moderno. Assim, a história do teatro quer ser também a história de uma subjetividade que se forma por dentro do espetáculo, de uma cena que mais e mais se confina a edifícios fechados, onde é apresentada em palcos à italiana, esse cubo cênico da perspectiva individualizante. É isso que permite o destaque do dialogismo literário, dentre as formas capazes de configurar uma interação subjetiva. Começa no século XVII a identificação entre teatro e forma dramática. O teatro – não mais um espaço cênico aberto “de onde se vê” tudo, como no mundo antigo – é uma invenção da modernidade burguesa ao se autocompreender como literário, laico, dramático, portanto subjetivista e fechado, ao se orientar para uma especialização no campo estético, de interesse mercantil. E a consciência disso é formulada no século XIX com o nome de história do teatro.
Paulo – Tudo oposto ao teatro jesuítico, que não é em português, não é laico e não está lidando com subjetividade.
Sérgio – Pois é, é um conceito de teatro que deixa de lado todas as manifestações cerimoniais ou festas populares e as cenas dos povos originários. Até o século XX, mesmo no campo da cena europeizada no Brasil, não havia nenhuma chance de representação de qualquer ideia de indivíduo, porque, afinal, não há condições disso existir como conceito social num território em que a autonomia era desmentida pela realidade brutal do trabalho escravizado. Esse “drama impossível” num país sem sujeitos foi tema do meu doutorado sobre a cena modernista em São Paulo (3): a dificuldade de uma cena dramática se realizar concretamente no país, no mesmo compasso em que ela nunca deixava de orientar as expectativas da imaginação literária. Uma espécie de imposição do drama, como categoria substantiva e adjetiva, num lugar em que isso não podia ser minimamente verdadeiro.
Paulo – Ao mesmo tempo, manifestações fora do campo da cultura burguesa emancipada às vezes estão ligadas a configurações sociais também terríveis, não? Como lidar com isso? Atualmente, em sala de aula, quando vou falar sobre teatro jesuítico, por exemplo, os estudantes entram sempre com muita raiva diante da sensação de estarem perante um mecanismo de silenciamento, de um mecanismo de colonização de alma etc. Há uma repulsa de cara com relação a esse tipo de material. Mas existe também, ali, naquelas expressões e teatralidades do XVI de origem medieval, uma relação dialética entre sociedade e formas expressivas teatralizadas, que serão uma constante na colônia, inclusive em manifestações populares e de resistência… Como olhar para um assunto como esse?
Sérgio – Acho que a raiva é mais do que justa. Mas a ação cultural pode ser também o elemento contraditório do processo de colonização, e nesse sentido ela expressa muitas coisas além da violência da qual participa. Nos documentos jesuíticos você encontra a demonização da cultura tupinambá guerreira, mas também o nome e a voz dos inimigos mortos. Quando chegaram aqui, os jesuítas perceberam que o problema não era só combater uma cultura baseada em danças, e cantos, na ornamentação do corpo, na maracá, na vingança, no transe da bebida e do fumo, cultura que achava graça na ideia de um Deus uno que não tivesse corpo. Os jesuítas tiveram também muitos problemas com os cristãos portugueses, para quem o comércio de seres humanos era o principal negócio da terra. Para um cristão europeu do século XVI, a escravidão não era condenável desde que legitimada pela guerra justa. Mas os jesuítas viam que, no Brasil, nem essa máscara mínima da legalidade era respeitada, o que gerava uma violência maior e sem controle, sobretudo com as mulheres. E sem um mínimo de respeito à Lei, toda a retórica cristã estava desautorizada. Eles começam então a negociar um espaço social onde pudessem se relacionar com os indígenas de modo livre, desde que longe das suas casas coletivas, onde pudessem exercer uma “sujeição moderada”. A aceitação absurda da escravização de africanos faz parte desse acordo colonial que permitirá, por algumas décadas, a prática cultural cristã. Conhecer esses materiais é conhecer uma história que precisa ser enfrentada e recontada, porque segue atuando no mundo de hoje. Mas também é escutar a voz dos mortos e aprender sobre as estratégias de luta dos vivos. O que acho interessante no assunto é que a atuação dos jesuítas revela o caráter de barbárie da cultura como um todo. Pode- se dizer que eles estão na posição de todo intelectual que tenta realizar, através da arte ou da cultura, coisas que a arte ou a produção cultural sozinhas não conseguem realizar. Os jesuítas ecoam aquela posição de isolamento que o agente da cultura tem em qualquer situação de desigualdade social: há uma tragicidade da condição porque o intelectual tenta mediar o impossível, em nome do ideal de que serve a um patrimônio comum da humanidade. O problema daquele “teatro” não era o espetáculo do universalismo imposto, e sim o que ele espelhava de concreto: a vida do aldeamento. Em tese, era um espaço em que as pessoas estavam livres para conhecer um modelo cultural de amor, justiça e misericórdia cristãs, mas, na verdade, era uma estrutura repressiva composta por pessoas desenraizadas, ex-escravizadas, coagidas. É na dialética entre cultura e barbárie material que eu estou interessado: em nome de uma ideologia que alguns consideram boa, horrores são produzidos. Estudar isso ajuda também a compreender uma certa origem “miliciana” da cultura cristã no Brasil. Esse imaginário militar, que é uma marca forte da cultura festiva no Brasil, a rigor não provém dos jesuítas. Mesmo assim, as encenações participavam disso. E a combinação entre militarismo e religião, tão forte no Brasil atual, está aí para nos lembrar da importância do tema. Mariana – É assustador pensar que elementos estruturantes da sociedade brasileira, do processo de colonização, como o militarismo, o escravismo etc., aparecem muito pouco na historiografia tradicional do teatro. São questões muito pouco citadas ̶ se são citadas, são tidas como um aspecto factual, como se não tivessem consequência direta na vida social, e, portanto, na produção de cultura. Em alguns casos, fala-se até com certa naturalidade disso. Contudo, estudar esses temas é ter de lidar com a barbárie o tempo todo, não tem como escapar. Não é possível dissociar as pequenas produções de beleza que se encontra, de resistência etc., dessa presença permanente da barbárie. Sérgio – Esse vínculo entre as belezas da arte e o horror da escravidão são anteriores à própria colonização, existiam na Europa antes das navegações modernas. Basta ler a obra de um dramaturgo de Roma, então chamado de “Terêncio, o africano”, que era ex-escravizado, para se dar conta disso. Do século XVI em diante, porém, com a mundialização das rotas comerciais, surge algo diferente: o escravismo como negócio muda a vida de milhões de pessoas e cria um racismo mais brutal e profundo. Ele atravessa as práticas econômicas mais rentáveis da modernidade e toda a sociabilidade ligada ao colonialismo, não só das regiões periféricas.
Paulo – Tenho a impressão de que, no Brasil, por vias tortas, é possível evidenciar mais facilmente essa conexão entre cultura e barbárie. Eu fico pensando no clássico Ideais fora do lugar, do Roberto Schwarz, ali ele fala desse desajuste das formas culturais enxertadas aqui etc., mas ele termina o ensaio sugerindo que, ao mesmo tempo, todo esse nosso desajuste local também ajuda a evidenciar a mentira que são as formas importadas. Ou seja, o fundamento de barbárie dos modelos importados como que emerge no momento em que se tenta aplicá-los de forma torta por aqui. O interesse pelos estudos sobre o Brasil parece ter essa força, bem além de qualquer localismo vazio.
Sérgio – Tem um debate que talvez eu não saiba reproduzir bem, mas que é fundante do chamado pós-estruturalismo: ele se dá quando o Derrida critica uma observação do Lévi-Strauss sobre o fato de que as civilizações que passaram a escravizar gente foram também as primeiras a ter escrita. A distinção social trazida pela posse e uso de pessoas escravizadas seria, do ponto de vista do antropólogo, contemporânea do desenvolvimento das formas culturais letradas. Derrida, salvo engano, tira esse debate dos Tristes Trópicos e se aproveita de um aspecto do fraseado do livro para erguer um sistema teórico contrário à abordagem de Lévi-Strauss, ele tenta mostrar violências mais internas e subjacentes e que seriam constitutivas de toda linguagem. Cito de memória, mas talvez o que incomode um espírito metafisicante, como o de Derrida, é a lembrança benjaminiana de que o patrimônio cultural da humanidade não nasce só do esforço dos grandes gênios, mas, sobretudo, da “escravidão anônima de seus contemporâneos”. Lévi-Strauss apenas observa o vínculo entre o poder sacerdotal, a estratificação social injusta e o controle cifrado dos códigos. O que é diferente em outras sociedades originárias, nas quais a capacidade de agenciar os manas, as forças espirituais coletivas, como fazem os pajés do Brasil ou os caraíbas tupinambás, não implica uma distinção social estável, porque é antes um dom místico: a pessoa é uma mediadora de um poder da comunidade. A coisa que mais desconcerta os jesuítas quando eles chegam aqui é a igualdade indígena, a ausência de autoridades punitivas. Tem uma frase famosa, que vem dos primeiros cronistas, esboçada em Américo Vespúcio, e ganha forma com Gandavo e Gabriel Soares de Souza. Ela diz que os tupis “não têm rei, nem lei, nem fé, porque eles não conseguem falar as letras R, L e F”. Aqui não era possível fazer como se fez em alguns lugares da África ou Ásia, uma conversão de cima para baixo, que descia do rei para o povo. Os indígenas do Brasil tinham uma vida incomodamente comunitária. Portanto sua relação com os processos culturais era muito diferente da de lugares marcados por uma história de desigualdade estamental. Nos processos culturais desse tipo é decisivo que alguns disponham de tempo livre para a escrita e outros não. E num mundo de escravizados – ainda o nosso – faz todo sentido a frase de Freud, de que a Cultura nasce com a repressão.
Paulo – Quando se estuda algumas formas de teatralidades medievais, sobretudo aquelas ligadas à Igreja, das quais deriva o teatro jesuítico, aparece um tipo de questão com curiosas semelhanças com alguns debates contemporâneos sobre representação e performance, não?
Sérgio – A ideia de um teatro performativo é recente e ligada a um debate teórico específico. Ela é um contramovimento, uma reação a uma hegemonia histórica do teatro dramático e ou mesmo a suas variantes épicas, uma crítica à ideia de “representação” dialógica, gosto pela arte do significante. Mas no século XVI, a palavra teatro não era usada para nada além do espaço físico da arquibancada. Quando muito, surgia como um termo da cultura retórica, das artes liberais, usada como metáfora culta de convite à apreciação visual. Teatro como conceito ligado à ação cênica aparece só no fim do século XVI. Assim, não havia “teatro” na Idade Média e sim tropos cantados, jogos, momos, arremedilhos, entremezes, procissões, mascaradas e autos que integravam outra ação cultural maior. Essas cenas estavam de fato muito mais próximas de uma cena performativa do que de uma cena dramática, sem que tivesse importância qualquer debate teórico em torno disso porque não havia valorização estética em abstrato desse tipo de manifestação.
Paulo – Inclusive era considerado heresia chamar tais ritos religiosos de representação, não é? Falar que a hóstia representa o corpo de Cristo era uma heresia. Talvez ainda seja.
Sérgio – Isso foi tema de inúmeros debates em concílios da Igreja, por séculos. O momento da partilha do pão na missa tinha, originalmente, a memória de uma divisão igualitária da comida pobre, feita numa casa rica que foi ocupada a pedido de Jesus, operada como ingestão simbólica do corpo de Deus. Daí os banquetes abertos do cristianismo primitivo. Só muito depois o símbolo se converte no Deus presentificado da Eucaristia. É curioso que a argumentação teórica mais abstrata da Idade Média tenha deliberado em favor da crença mais mágica de todas: a de que não ocorre ali só um ato simbólico e sim uma manifestação da presença. Abstração excessiva e pensamento mágico podem andar juntos. Outro exemplo interessante do fetichismo cristão é o culto das relíquias, dos ossos dos santos. É um tipo de adoração que vem da antiguidade mediterrânea, migra do túmulo dos heróis greco-latinos para o culto dos restos mortais dos santos mártires, que se tornaram padroeiros das cidades medievais, e as protegem na guerra ou na doença. Os ossos, ou mandíbulas do santo eram guardados nos relicários nas igrejas, levados em procissão pela cidade, assistidos e tocados: eram a própria presença santa.
Mariana – É algo meio macabro também. Recentemente eu fui ao Pátio do Colégio e vi o osso do Padre Anchieta, quase tirei uma foto e te mandei. Tem um impacto, um efeito.
Paulo – O que eu acho curioso é que a cena contemporânea tem um debate semelhante. A ideia de que a afirmação da presença em si seria um passo mais autêntico, mais verdadeiro e intenso do que a ideia de representação. Claro, você tem razão, no século XX isso é posto de outra forma, dentro do campo institucional, da arte, da cultura, só que os termos dos debates são parecidos.
Sérgio – Num ato cênico é impossível distinguir, em abstrato, a dimensão performativa da representacional. É difícil dizer se a ação do artista está mais para o lado da “mesmidade” do corpo ou da “alteridade” da figuração imaginária – sem que se descreva também a relação com quem vê. Um corpo, mesmo que imóvel em cena, ao se mostrar em situação de atenção estética, instaura sinais simbólicos transmitidos somente pela relação com o contexto. Durante o meu mestrado eu entrei num pequeno delírio teórico de tentar descrever essas possíveis camadas ônticas da ação cênica. A minha hipótese fenomenológica era que toda “metamorfose” cênica é composta por várias camadas hipotéticas, como uma cebola. Eu posso visualizar a parte mais externa ou a interna da ação, ou mais de uma ao mesmo tempo, como o espectador que escolhe se está enxergando Hamlet ou o ator que o representa. Como artista eu posso também intensificar uma dessas dimensões: posso pôr a ênfase no nível performativo, em que supostamente não há ficção e apenas a presença física, posso criar uma dinâmica mais expressiva, em que uma dimensão pessoal se manifesta, ou expor uma ação interpretativa, em que a ficção se constitui de modo distanciado, ou enfim posso tentar agir de modo representacional, no esforço inglório de submergir no outro, de instaurar uma vivência ficcional radical. Era apenas uma tentativa teórica de pensar possibilidades da atuação. Eu fiz isso com a vontade de ajudar a crítica a visualizar para onde se orienta a intencionalidade estética da cena por meio da atuação. Hoje acho que essas distinções teóricas só ajudam se não viram orientações normativas, regras de arte que anulam visões diferentes. Não dá para dizer que um modo poético é mais atual do que outro: tudo o que se refere à cena é tão velho quanto o primeiro passo de dança ou o primeiro gesto lúdico de imitação.
Paulo – Só retomando um ponto: de onde vem esse interesse de defender essa atitude “performática” ali no mundo medieval? Você lembrou que a eucaristia é um processo que vai se transformando neste ato mágico de transubstanciação. Mas de onde vem esse processo? Essa vontade da presença?
Sérgio – Tem a ver com a cultura religiosa cristã dos séculos XII e XIII. O Corpus Christi é oficializado em 1264, mas, décadas antes, o Concílio de Latrão já tinha escolhido um lado no debate da transubstanciação. Era um momento pós-cruzadas, de crescimento urbano. A cultura religiosa migrava dos mosteiros para as catedrais. Isso coincide com o crescimento econômico das cidades pelo comércio. A festa de Corpus Christi foi contemporânea de São Tomás de Aquino, que é o maior teórico aristotélico da Igreja. Ou seja, você tem uma tradição filosófica sendo constituída, e as abstrações entram em cena ao lado da magia da hóstia. E como elas precisam ser personificadas, surge uma nova cena alegórica: ao mesmo tempo abstrata e sensorialista. A junção dos extremos que depois vai marcar o Barroco. A hóstia é a abstração da abstração, mas ela é pura presença sensorial a desfilar pela cidade. Não por acaso, o Corpo de Deus vai ser a festa mais burguesa, todas as corporações de ofício tinham que participar dela. É nela que começa o que chamamos de teatro moderno. Você tem ali, naquele momento, todo um conjunto intelectual ligado a uma cultura urbana: as universidades são do mesmo período.
Mariana – E é interessante pensar nesse processo de abstrações. Tem a ver também com essa grande abstração chamada dinheiro, que ganha um novo fôlego com as rotas comerciais.
Paulo – Sim, o dinheiro é o gesto performativo.
Sérgio – Esse é o centro do meu trabalho atual, a questão das metamorfoses cênicas aceleradas pela pressão do capitalismo emergente. Há, por exemplo, uma espécie de imaginário urbano que se constitui no fim da Idade Média e que gera uma ostentação cênica, que estimula a visualidade. E isso também se vê nos processos de colonização no Brasil do século XVI, só que aqui o imaginário das cidades é um simulacro frágil, e perde espaço nas festas para outras formas.
Mariana – E o ouro, como forma-dinheiro, ressurge no imaginário. Por exemplo, o Santíssimo Sacramento se relaciona com a imagem do Sol, retomando um ideário da Antiguidade.
Sérgio – Mesmo lá isso se deu num processo: no começo, o Corpo de Deus andava em arcas, chamadas de “gaiolas” em Portugal. Depois, pelo século XV, surge o ostensório com essa forma solar, que já é um análogo da moeda. Em muitas cidades da Europa foi a festa do Corpus Christi que promoveu uma profissionalização das artes da cena. Na Espanha, por exemplo, isso explodiu mais tarde com os chamados “autos sacramentais”, partes de espetáculos que compunham o ciclo da procissão do sacramento da comunhão, festa “abrilhantada” pelo ouro colonial das monarquias católicas.
Mariana – Quando comecei a estudar a festividade do Triunfo Eucarístico no mestrado, você me disse: “Mari, é preciso estudar a história das cidades”, como forma de entender o desenvolvimento dessas festas a partir do desenvolvimento das cidades.
Sérgio – A cidade é a instância cultural mais importante da cultura do Renascimento porque ela aproxima Igreja, nobreza e mercado e obriga a interações públicas nas celebrações do calendário cristão ou nas entradas reais. Ainda não havia uma cultura nacional estabelecida. Os espaços cênicos fixos só surgem quando as monarquias nacionais decidem se fixar, escolhem de vez quais eram as “capitais” dos reinos. Os chamados currais, pátios cênicos onde se cobrava ingresso, se irradiam de fato em Espanha e Portugal por volta de 1570. Os teatros de Londres, empreendimentos ainda mais burgueses, são do mesmo período. Já o edifício Olímpico de Vicenza, da década seguinte, foi feito por nobres eruditos. É uma nova fase da cultura urbana: monárquica, imperialista, ligada a um capitalismo colonialista. Não é à toa que quando o dinheiro migra, essa cultura europeia muda também. O dinheiro vai para o norte da Europa no fim do século XVI, onde se associa a uma cultura protestante.
Mariana – No LITS, muito do nosso trabalho foi ligado a modelos de estudo. Muitos deles são ligados à teoria crítica brasileira interessada na literatura, como Antonio Candido, Roberto Schwarz, José Antonio Pasta. Realmente, eles nos ajudam muito mais do que a historiografia convencional do teatro brasileiro, porque estão interessados justamente na relação entre a forma artística e o processo social.
Paulo – Ao mesmo tempo, são autores que nunca se ativeram exatamente nessa questão específica do teatro, nas questões do espetáculo, das mediações com a sociedade que são do tipo extraliterária. Isso me parece ser uma questão importante para o Brasil: conseguir observar o teatro nessa relação extraliterária também, que evidencia a tensão do texto com o espetáculo.
Mariana – O que também nos força a sair do campo do teatro estritamente, né? A perspectiva somente estética sobre o espetáculo é limitante. Para dar conta disso, precisamos ir para história, antropologia, filosofia, como também para a literatura.
Sérgio – Há pouco falamos da história do teatro como história de uma cultura literária nacional. E há outro índice de valor: o palco fechado, num edifício teatral, com companhias regulares, repertório, autores, público, coisa que é até hoje rara no Brasil. Era o que a burguesia queria valorizar como autoimagem. No século XX, porém, começam as crises com essas expectativas e o teatro, tocado por outros imaginários, almeja a independência da cena, reclama um valor de arte para a encenação. E surgem outros paradigmas. Depois da Segunda Guerra, se multiplicam ainda mais as formas e os lugares sociais das artes da cena. Em contextos de países pobres, as realizações foram ainda mais diversas, tanto pela rarefação dos dramas nacionais como pela força da indústria cultural que tudo absorve, ou até mesmo pela revalorização ocasional de formas culturais tradicionais a partir da década de 1960. Diante disso, praticar uma crítica dialética, essa mencionada “semântica das formas” pede uma atenção à dimensão não literária dos fenômenos e exige reconstituições do contexto produtivo, com o recurso àquela categoria interativa que chamei de trabalho. Então, você terá que dialogar com muitos campos de conhecimento. E precisa desenvolver uma espécie de imaginação sociológica em torno da obra, o que exige estudos interdisciplinares mas também uma abordagem ligada à prática, como vocês notaram nas pesquisas de vocês. Uma nova atitude em relação às histórias da cena pede novos modos de trânsito entre ruínas e sonhos.
Paulo – É um processo de trabalho e pesquisa muito difícil, mas também muito vivo. É como vocês disseram: temos que articular teatro com história, arquitetura, sociologia, filologia etc. Sérgio – E dar um passo que me parece o mais arriscado do ponto de vista científico, que é inevitável na nossa área de estudos: o da imaginação. Como a cena é uma arte que depende do aqui e agora, você precisa constituir hipóteses imaginativas em relação a ela, para se aproximar de um olhar histórico. E também se perguntar: que imaginários estão em jogo? E como se traduzem em práticas? Do ponto de vista de método, eu aprendi muito com Raymond Williams, que nos ensina a descrever as interações entre as formas emergentes e aquelas que são heranças residuais, as mais antigas, e que temos dificuldades de compreender porque quase sempre aderimos a uma narrativa evolucionista. E é a dialética que interessa, pois o conservadorismo muitas vezes sobrevive com a aparência da inovação. São orientações que procuro contrastar com meu aprendizado pelos interiores e sertões do Brasil, com meu trabalho prático e contato com experiências de vida popular e cultura tradicional. Atualmente, por exemplo, estou colaborando com a escrita de uma Paixão de Cristo, feita por artistas mulheres num assentamento rural no interior do Ceará. Ali há pessoas com quem trabalho há um bom tempo. É isso que me permite imaginar melhor o que ocorria numa cena do passado.
Paulo – Ou seja, tem mais um conhecimento que você precisa articular que é o conhecimento da prática artística. O fato de você ter trabalhado como diretor por tantos anos te ajuda a dar vida a esses elementos.
Mariana – Mas é uma linha muito tênue, não? Eu lembro que escrevendo a tese eu entrei num delírio de imaginação, estimulada pelo Sérgio, mas foi o Sérgio quem também me deu o limite. Eu começava cada capítulo criando uma cena. Aí eu chegava empolgada para o Sérgio, e ele me falava “é Mari, mas você precisa imaginar a partir de elementos concretos”. (risos)
Sérgio – É, sempre é um risco. O importante é conseguir devolver isso para hoje. Não tenho interesse em ficar só nas questões históricas se elas não me ajudarem a enfrentar essas formas de dominação cultural, de um mundo do qual todos nós participamos por atuar em suas estruturas, que procuro desmontar de algum jeito. Tanto criticamente, na tentativa de alguma mudança que sempre dependerá de uma ação política maior, quanto procurando criar outros lugares sociais, situações, parcerias, outras conjunções e confluências de pessoas.
NOTAS
1 TOLEDO, Paulo Vinicius Bio. Impasses de um teatro periférico: as reflexões de Oduvaldo Vianna Filho sobre o teatro no Brasil entre 1958 e 1974. São Paulo, 2013. Dissertação (Mestrado em Teoria e Prática do Teatro) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
2 SOUTTO MAYOR, Mariana França. Espetáculo disforme: o trabalho teatral da Casa da Ópera de Vila Rica (1769-1793). São Paulo, 2020. Tese (Doutorado em Teoria e Prática do Teatro) ̶ Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
3 O drama impossível: o teatro modernista de Antonio de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Orientação de José Antonio Pasta. USP, FFLCH, 2003.
AUTORES
Sérgio de Carvalho é dramaturgo, encenador da Companhia do Latão e professor livre-docente de Dramaturgia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Programa Ano Sabático 2021 do Instituto de Estudos Avançados da USP. E-mail: sergiocarvalho@usp.br
Mariana Mayor é pós-doutoranda em História Social pela FFLCH/USP. Foi professora de História do Teatro Brasileiro do IA/UNESP e investigadora da Universidade de Coimbra, com bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. É editora da Teatro situado: revista de artes cênicas com olhos latino-americanos. E- mail: marianasoutto@gmail.com
Paulo Bio Toledo é doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo e professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). E-mail: paulo.v.bio@paulofavari
ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM
Fausto Viana e Felisberto Sabino da Costa (orgs.), 40 ANOS DO PPGAC ECA USP, Edição comemorativa. São Paulo ECA -USP 2021, pp.111-130.
ISBN 978-65-88640-51-7 DOI: 10.11606/9786588640517
Conheci Jean-Claude Carrière no final de 1995, ou início de 1996, já não tenho certeza. Em 1995 eu ensaiava em São Paulo sua peça O Catálogo (L´Aide-Mémoire). O texto chegou a mim acidentalmente: estava entre uma pilha de peças que Ney Piacentini me emprestou quando conversávamos sobre a possibilidade de um espetáculo conjunto. Àquela altura eu atuava só como dramaturgo, escrevia para jornal, e era professor ocasional. Tinha experimentado a direção por duas vezes, durante o curso de Artes Cênicas da USP, onde minha estréia, ainda na graduação, foi nada menos do que Hamlet (versão desconstruída e reduzida, de trás para frente, com o palco coberto de terra), e já no mestrado uma adaptação de um conto do livro Passos em Volta, do poeta português de Herberto Helder (versão azulada que alternava diálogos e monólogos “interiores” enunciados). Pretendia seguir entre a dramaturgia e a teoria porque as tentativas com direção me mostraram a dificuldade de alinhar o plano cênico e o trabalho de atuação. Não sabia como dialogar com atores, sofria com isso, e só via sentido em dirigir se pudesse viabilizar uma criação de fato partilhada, pois detestava “dar ordens” ou sugerir coisas sobre as quais não podia ter certeza. De início resistente, encontrei na peça de Carrière (lida numa tradução, com meu italiano ruim) uma estrutura simples e inteligente: era a chance de praticar com dois atores brilhantes, pois juntava-se a nós Graziella Moretto, que tinha saído há pouco da Escola de Arte Dramática. Meu plano era experimentar as propostas de Stanislavski anotadas por seus alunos, em especial o trabalho sobre “ações físicas”, procedimento que utilizo até hoje. E de fato eu estudava de manhã para aplicar à tarde. Com a peça levantada (não tenho certeza quando), pus na cabeça que iria para França por algumas semanas, sem ter condições para tanto. Precisava estudar francês, me parecia “evidente”; precisava fugir para tomar certas “decisões pessoais”; e precisava, dizia também a mim mesmo, “encontrar Carrière”. Uma tia querida, Leila Helena, uma das pessoas mais importantes na minha vida, e que já tinha me ajudado em momentos de aperto, foi quem me emprestou o dinheiro da passagem. Nunca me deixou devolver. Subloquei um quartinho numa casa de jovens artistas brasileiros, que moravam depois de Montmartre, para os lados do Mercado das Pulgas, em Paris. Só transitava a pé pela cidade, no tempo de uma impressionante greve geral contra a reforma da previdência. Certo dia tomei coragem e, de um telefone público, liguei para os quatro “Jean-Claudes Carrières” registrados na lista telefônica. Num inglês decorado, tentei me comunicar com um deles, e deixei recado na secretária eletrônica de dois outros, apresentando-me, sem muita esperança, como o diretor de O Catálogo no Brasil. Três dias depois, a atriz Giovana Soar, que hoje trabalha na Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, bateu na porta do meu quarto dizendo com um sorriso: “Sérgio…Monsieur Carrière ao telefone”. Sonado, escutei dele um pedido de desculpas pela demora em me responder, estava fora de Paris, e também que me convidava para ir a sua casa em alguns dias. Convenci, muito facilmente, um outro estudante radicado na cidade, Fernando Kinas, a me acompanhar, como tradutor e a participar da conversa. Fernando, que era amigo daquela casa de curitibanos e em breve se tornaria diretor teatral, sabia tudo sobre a programação de espetáculos da cidade e era meu parceiro de peregrinações pela cena alternativa e pelas palestras na Sorbonne ou no Odéon, sempre eventos gratuitos. Chegamos atrasados ao encontro, no esforço de comprar mais fitas para meu gravador. Vi o desconforto com o tempo perdido no rosto de Carrière, que ainda assim nos recebeu gentilmente em sua casa linda, e nos disse que tinha pouco tempo para a conversa, estava em processo de ensaios com Peter Brook, em torno da peça Hamlet. A animação dele, e sobretudo a nossa, em falarmos sobre dramaturgia, fez com que tudo corresse bem. Uma hora depois ele se ergueu e disse: “Voltem depois de amanhã e continuamos a conversa”. Em nosso retorno ficamos umas quatro horas. Eu o considerava uma espécie de “amigo espiritual” em arte, ainda que discordasse de suas posições políticas, com que tomei contato mais tarde. Trocaríamos mais algumas palavras anos depois, quando o procurei no saguão de um teatro, no Brasil. A entrevista publicada abaixo contém uma seleção de trechos de nossa longa conversa. Só saímos de sua casa, naquele dia de alegria, quando, à certa altura, ele disse de modo firme, e como que a contragosto: “Está bom, é suficiente, preciso ir ao ensaio, Peter está me esperando.”
CONVERSA COM JEAN-CLAUDE CARRIÈRE SOBRE A ARTE DO ROTEIRO
Entrevista feita por Sérgio de Carvalho e Fernando Kinas.
Jean-Claude Carrière (1931-2021) foi roteirista, dramaturgo, ator e escritor. Escreveu os roteiros de alguns dos filmes mais importantes de Luis Buñuel, trabalhou com Jean-Luc Godard, Nagisa Oshima, Milos Forman, entre outros. Em parceria com Peter Brook adaptou textos como Mahabharata. Parte desta entrevista foi publicada originalmente no jornal o Estado de S. Paulo, Caderno 2, em 31 de janeiro de 1996. A versão integral, aqui reproduizida, foi publicada em meu livro ATUAÇÃO DIALÉTICA (São Paulo: Expressão Popular, 2009).
Você nos disse quando nos encontramos pela primeira vez: “Em O Catálogo aparecem concentradas, em três dias, algumas das várias possibilidades de uma relação amorosa…”
Mas esta é uma constatação que se faz posteriormente. Quando escrevemos, estamos simplesmente à procura de situações interessantes, deixando falar a invenção. Só depois é que a gente se diz: “Bom, não se pode seguir sem um plano, sem uma certa reflexão.” Só depois é que a gente avalia: “É, isso pode ser uma história de amor, completa, concentrada.” De antemão, eu nunca sei o que uma cena deve significar, nunca. É preciso partir de uma ação que nos surpreenda. Por exemplo, uma mulher chega na casa de um homem. E então? Eu mesmo não sei quando começo a escrever. Estou numa posição idêntica à do homem que diz: “Moça, o lugar que você procura não é aqui” E que ouve dela: “Ah, mas tinham me dito que era aqui.” Eu gosto de ser totalmente surpreendido por aquilo que conto. Meu ideal absoluto, que talvez ocorra por alguns minutos a cada dez anos, é o de escrever aquilo que as personagens fazem quando acontece delas adquirirem vida própria.
Qual foi a primeira imagem que lhe surgiu do texto?
Eu estava sozinho em Paris, durante o verão. Morava num apartamento térreo, perto de um jardim. Fazia calor, a janela estava aberta. E um gato entrou na sala. Na verdade, uma gata. Desconhecida. E começou a passear, como costumam fazem os gatos. Eu deixei, até que de noite decidi que ela deveria ir embora. Mas ela não quis ir embora. E ficou. No dia seguinte também. Então, bem, eu fui comprar coisas para ela comer, para fazer a cama. Três dias depois sumiu. É provavelmente a imagem dessa gata que me deu a ideia porque logo depois eu comecei a peça, bastante surpreso de estar escrevendo para teatro.
Este texto é de 1967, uma de suas primeiras experiências como dramaturgo. O que levou você ao trabalho no teatro?
Essas coisas ocorrem num movimento inconsciente. O teatro me veio assim, sem reflexão. Se alguém me perguntasse qual o meio de trabalho que prefiro – pois sou aquilo que se chama horrivelmente de um autor multimídia, eu escrevo para livros, para televisão, para teatro, para canções, tudo que se pode escrever eu escrevo… Mas quando me perguntam qual você prefere, eu não sei. De certa forma o cinema é o mais difícil.
Por quê?
Porque o cinema exige conhecimento técnico. O cinema – como o teatro e o romance – exige talento e invenção. Mas exige ainda o conhecimento técnico de uma outra linguagem. Do ponto de vista do teatro, é como se escrevêssemos em chinês. A escrita cinematográfica não tem a ver com palavras, mas com outra coisa. E isso exige de um roteirista o conhecimento de todo o métier do cinema, que eu adquiri muito lentamente e muito duramente. E exige ainda uma terceira qualidade, a humildade. Porque de toda forma será um filme do diretor ou do ator. Mas não posso negar no meu passado a presença do teatro. O teatro é fundamental, pois é o meio mais simples, o mais direto.
Você nunca pensou em se tornar diretor?
Sou um autor. Se eu houvesse me tornado diretor – e em uma época isso seria possível – eu seria diretor de cinema. Não posso dizer onde isso teria me levado. Em todo caso, eu não teria trabalhado com Peter Brook. Quando se é diretor de cinema, não se pode ser outra coisa. Um diretor de cinema tem que esperar até o próximo filme que pode demorar 4 ou 5 anos. Tudo o que na minha vida nasceu da curiosidade, eu não poderia experimentar. Deve-se escolher a vida de acordo com a natureza pessoal, com a personalidade. Um diretor é um homem de ideia fixa. Ele pode passar 4 anos se levantando todas as manhãs com uma única ideia: o filme. E se ele largar essa ideia, ninguém vai apanhá-la. Peter Brook trabalha em seu espetáculo e não pode se permitir pensar em outra coisa. Ele verá o espetáculo cem vezes. É um trabalho que exige uma certa disposição de espírito que eu não possuo. Quando faço uma coisa, tenho necessidade de outra coisa, da multiplicidade: é assim que sou. Eu seria muito infeliz como diretor. Creio que sou melhor, ou mais útil como dramaturgo ou roteirista. É uma tarefa que eu creio não poder fazer melhor que Peter Brook, ou que Buñuel, ou Louis Malle. Mas como roteirista eu sei que posso fazer muito para ajudá-los. O que eu diria hoje para um jovem roteirista é que ele deve se preparar para ajudar o cineasta. Se você tem curiosidades diversas, seja roteirista. Passamos a vida de um tema a outro e devemos nos tornar especialistas numa determinada questão em pouco tempo.
Você diz que o cinema exige uma certa humildade – em função da relação com o diretor. Mas o teatro também, na medida em que você não escreve para durar, para a memória coletiva, mas para o trabalho prático.
Posso entender, mas devo dizer duas coisas. Eu, pessoalmente, não sou ligado a uma certa imagem de mim mesmo: sou o autor de hoje, que é invisível, um agente de transmissão, de comunicação entre as culturas e indivíduos. Mas o autor de ontem se via como um papa, um sacerdote do pensamento – mesmo Jean-Paul Sartre era assim. Só que essa época do autor terminou e eu fico muito feliz. Entretanto, uma peça de teatro permanece. Os textos que fiz para Peter Brook são representados em outros lugares. La Controverse de Valladolid foi realizado em diversas partes do mundo. O texto permanece, mas o autor não é mais a alegoria de seu tempo. Marguerite Yourcenar disse algo muito belo sobre isso. Um jornalista a entrevistou na televisão e a interpelou: “por que você após fazer escritos pessoais começou a traduzir os poetas gregos?”. E ela respondeu: “é a mesma coisa”. E é verdade: é a mesma coisa! Os poetas gregos tem tanto direito quanto eu de se fazerem conhecer. O mesmo com Mahabharata.
Como costuma ocorrer seu trabalho em adaptações? Adaptar a Conferência dos Pássaros é muito diferente de adaptar o Mahabharata?
O que se pode dizer é: tudo depende da forma que daremos ao material – será um filme ou uma peça de teatro? Não são a mesma coisa. Muitas vezes eu me recusei a adaptar para o cinema um romance. Porque no romance eu não via o filme. É preciso, de certa forma, esquecer o original. Ninguém verá a peça com o livro entre os joelhos, conferindo as falas. Fizemos um filme com Peter Brook sobre o Mahabharata depois da montagem teatral e tivemos que refazer toda a adaptação. E Peter Brook refez toda a mis-en-scène. Pois se nós filmássemos a mis-en-scène do teatro, que era belíssima, não faríamos um filme. Por exemplo: na peça havia uma série de carros de com- bate. No teatro eles eram representados por uma roda que cada ator trazia nos braços. E isso era muito bom: ninguém considerava aquilo um truque teatral, pois a roda estava ali para evocar um carro de combate. Poderia até ter ficado ridículo, mas funcionava muito bem. Já no cinema pareceria um truque teatral. O cinema é muito mais realista. Utilizamos, então, carros verdadeiros. A cada momento da peça havia esse tipo de problema. Por exemplo, no cinema se fala muito menos do que no teatro. As cenas são duas vezes mais curtas. Quando filmamos a encenação de Tchekov eu cortei quase vinte e cinco minutos do texto, e isso sem cortar os grandes momentos, apenas as pequenas frases, uma, duas linhas, quatro palavras. Nisso há uma vantagem dupla: obriga os atores a serem estimulados de novo pois o texto que ele acreditava saber não é o mesmo. E dá um outro ritmo à peça vista como filme. E nenhum tchekoviano notou. Um “teatro filmado” não faz o menor sentido. O teatro é o encontro real: isto é o teatro. Se nós o filmamos e o projetamos numa sala ou na televisão, devemos tratá-lo como cinema. É simples assim.
Mas em Vanya on 42nd Street (Tio Vânia em Nova York) de Louis Malle, ali a junção é excelente, sem deixar de parecer teatro.
Mas Vânia é uma obra prima. Louis Malle utilizou um grupo de atores que já tinha trabalhado na coisa por cinco anos com o Andre Gregory. Havia entre eles uma comunidade de vibrações. Eles se conheciam como uma família. Conviviam como as personagens da peça. Peter Brook diz que o filme de Louis Malle é histórico, um marco na história da reflexão sobre o diálogo entre a personagem e o intérprete.
Eu li que você, quando você trabalhava no Mahabharata, fez uma lista de palavras que não poderia utilizar. É um procedimento que utilizou mais vezes?
Toda a palavra carrega consigo uma série de imagens. Se eu digo “casa”, podemos evocar diversas coisas, nem sempre correspondentes ao sentido do texto do Mahabharata. Era preciso, assim, saber quais eram as imagens mundiais – aquelas que atravessam os séculos – e quais as imagens mais particulares, que poderiam causar uma traição profunda à obra original. Se utilizássemos na montagem de Mahabharata uma palavra como “cavaleiro”, seria uma traição. Hoje, ao pensar nessa palavra, vemos um cavaleiro da Idade Média. Se eu digo “nobre”, vemos um nobre do século XVIII. Inconscientemente nós projetamos sentidos, nós reagimos às palavras. A palavra é pronunciada e nós a vemos em imagem, automaticamente. Então eu listei todas as palavras que me pareciam imediatamente interditáveis. Por exemplo, eu hesitei sobre a palavra “profeta”. No Mahabharata há profecias mas achei que a palavra era muito judia, muito bíblica. Outra palavra difícil de se traduzir era inconsciente. Pois o inconsciente existe na Índia…Há uma outra expressão em sânscrito que, se fosse traduzida palavra por palavra, seria “o doce movimento de Atma”. Impossível traduzir a última palavra. Alma, que seria a primeira escolha, contém a idéia de pecado, alude ao universo católico – outra palavra que aparece, encarnação, por exemplo, também era impossível. Agora, como traduzir inconsciente, já que para nós inconsciente significa libido? Nem tudo é sexual na lenda antiga. Pois encontrei num livro antigo uma expressão que é “o coração profundo”. Uma expressão inventada com palavras bem simples. Bem, essa expressão, retirada de um livro francês, me soava muito bem. Quando fui passar para o inglês “deep in the heart” – já surge outra coisa, uma expressão bem conhecida. É impossível usá-la em inglês, era preciso encontrar outra. Encontrei “coeur profond” também num livro de Lévi-Strauss, numa tradução de um texto ameríndio da América do Norte. Este é o segredo de nosso trabalho: procurar o segredo das palavras. As palavras no teatro contém imagens segundo um movimento que não é aquele do romance. Vou dar um exemplo preciso. Em a tempestade de Shakespeare, existe uma frase muito célebre. Próspero diz após um breve espetáculo: “We are such stuff as dreams are made on”. Quer dizer, era um espetáculo ilusório, uma ilusão, os atores desvanecem, tudo desaparece e não há mais nada. Todas as traduções em francês utilizam stuff como matéria (substância): la même matière que les rêves sont faits. Mas se você escuta a frase em inglês, “We are such stuff as dreams are made on” há duas vezes algo como um “uf” – que sugere um sopro de vento. Isto é a genialidade da escrita. Alguém diz alguma coisa e o som da palavra diz ao mesmo tempo. “We are such stuff as dreams are made on”. O vento aparece. Se você não encontrar isso em francês, está perdido. Você repõe o sentido, mas perde a matéria do que Shakespeare está dizendo. Quando eu utilizo a palavra étoffe como stuff, acompanho o mesmo raciocício. Se dissermos “nous sommes de cette étoffe que le rêves sont faits” encontramos o mesmo movimento no interior da palavra, que é um movimento secretíssimo, mas que se não está lá, algo morre.
Quando escreve uma peça, você procura um padrão de palavras para cada personagem, um tipo de escritura?
Sim e não. Existe um exemplo ideal: o filme Les enfants du paradis, que todo mundo conhece, com roteiro de Jacques Prevèrt. Ali cada personagem tem uma linguagem particular, uma popular, outra aristocrática, outra de teatro. Mesmo a personagem de Arletty muda de linguagem, pois ela aparece como aristocrata, mas na segunda parte já não fala mais como na primeira. Cada um tem sua linguagem, mas todos são Prevèrt. É como Shakespeare, cada um fala uma linguagem, mas é tudo Shakespeare. Até certo ponto existem as linguagens particulares, mas em um dado momento é o autor que fala através das personagens. Outro exemplo: Otelo é uma personagem que fala mal. Mas na verdade não fala mal, pois através dele Shakespeare expressa todo o seu gênio. É isso o que há de importante a se saber. Cada autor decide por onde vai.
Existe uma diferença entre a velocidade da narrativa nos diferentes meios, teatro e cinema?
Há algo que se pode constatar na história muito nova do cinema: contamos as histórias hoje da mesma forma que as contávamos nos anos 30 ou 40. Nosso espírito está habituado à linguagem do cinema. Eu me levanto, há uma janela, eu a olho. Um corte. No plano seguinte vemos uma roda. Para to- do mundo fica claro que eu estou olhando para a roda através da janela. A relação direta entre as duas imagens não existe. Já no teatro, a forma narrativa do teatro clássico desapareceu. No século XIX antes de uma cena de ação havia sempre uma outra preparatória, que servia para explicar quem era a personagem envolvida. Isto acabou. Em Shakespeare, porém, a mu- dança de tom, a passagem de um momento de graça a um momento sério, era já muito rápida. Dentro de uma mesma frase ocorrem diversos momentos e o público os percebe, o que é extraordinário. Mas isso se padronizou de modo mais lento até o século XIX, e depois foi revisto. De fato, hoje, existe uma aceleração no modo de produção das imagens. A influência atual do zapping é ambígua: obriga o espírito em alguns segundos a tentar entender o que se passa. E não apenas a perguntar o que é, mas também se perguntar se isso é bom. O que vemos hoje no teatro e no cinema são diversas respostas a essa aceleração. Alguns artistas vão no mesmo sentido, outros se opõem. Em Tarkovski, por exemplo, há uma imagem quase imóvel, ou que muda muito pouco, e podemos perceber essa imagem em toda a sua sutileza, em todos os níveis, em todos os seus elementos que nos escapariam se nós a víssemos muito rapidamente.
Como você vê o uso de tecnologia no teatro? Essa tentativa de trazer para dentro da cena elementos da cultura midiática?
O que você chama de tecnologia? De um modo geral, ela sempre esteve presente no teatro. Já no século XVII, o palco utilizava toda a maquinaria disponível do tempo. A questão pode ser posta de outra forma: se a presença humana desaparecesse então poderíamos perguntar se isso ainda seria teatro? Ou seria apenas uma projeção de hologramas. Será que um espetáculo de marionetes é teatro? Na verdade, não sei responder. O teatro me parece o momento em que há pessoas vivas….se há tecnologia ou não, é um debate crítico… Posso dizer que gosto do teatro de modo puro, mas não do teatro puro. A pureza é um veneno fatal para diversas condutas humanas, inclusive ao teatro.
Você acha que os debates críticos ajudam a estabelecer os padrões dominantes nas artes de um tempo?
É difícil dizer, mas se olharmos para a história da literatura francesa, não sobrou um único poema entre Racine e os românticos que seja digno de memória. As pessoas criaram milhões de versos e nenhum bom poema. Porque eles continuavam aplicando as regras poéticas do século anterior, e julgavam fazer poesia. A prova é que hoje não há um único desses poemas que os franceses ainda leiam com gosto. É uma questão importante: é muito comum que continuemos a fazer peças de teatro, filmes, romances sem nos darmos conta de que já perdemos o essencial, o movimento. Fazemos filmes sem fazer bom cinema. As eleições de uma época, quanto a isso, podem ser medíocres. Se tomarmos o critério do valor de mercado como forma de se reconhecer um poeta, quem aparece como o grande poeta do século XVIII? Jean-Baptiste Rousseau. Não estou falando de Jean-Jacques. Esse outro Rousseau está totalmente esquecido hoje.
Você, como escritor, parece trabalhar mais com estruturas clássicas da narrativa, no sentido de uma procurar formas de uma dramática teleológica. Isso é verdade?
Sem sugerir nenhuma exclusão de outras experiências, me parece que o teatro e o cinema acolhem bem a narração desde que ela não se oponha por completo à narração dramática. Não tenho problema nenhum com o desenvolvimento a partir de conflitos e me parece que Shakespeare e Dostoievski nunca se incomodaram com a narração. Não há nenhuma razão para não seguirmos contando histórias. Todos grandes artistas do teatro contaram, de diferentes maneiras. É o cerne do meu trabalho com Peter Brook e outros. Muitas vezes nós nos di- vertimos em inverter a narração. Em Le Fantôme de la liberté de Buñuel, pode-se dizer que o que se conta é o contrário de uma narração. Isso é feito para vermos se do outro lado da narração não há algo de interessante. E muitas vezes há coisas bastante interessantes. Por outro lado, nos cem anos de cinema, toda tentativa de se abandonar de vez a narrativa dramática não foram muito longe. É verdade que um cinema lírico, poético como um poema surrealista, é possível, sobretudo em curtas metragens de dez ou doze minutos, ou outros experimentos foram tentados na televisão. Mas é um território ainda pouco explorado. E por que? Talvez pela mesma razão que o cinema não penetrou muito no domínio do ensaio filosófico. É um campo da teoria, melhor percorrido pela leitura…
E os filmes de Godard?
Os filmes de Godard, talvez, mas seu trabalho parece mais o de um jornalista inspirado pelos grandes autores. É claro, há boas tentativas, mas mesmo assim é algo sempre muito difícil. Não quer dizer que não deva ser tentado. Eu mesmo estou escrevendo um filme para a televisão sobre filosofia, inspirado na vida de Sócrates. Pode ser que pareça mais um diálogo filosófico, sem situação dramática. Não farei nenhuma concessão e quero saber se a televisão pode produzi-lo ou não. Mas eu sei que nessa experiência estou fazendo o papel de provocador. Vocês viram La Controverse de Valladolid? É um filme sobre a descoberta da América que é de pura discussão teológica, e que se passa em 1550.
Por essa confiança na narração, você nunca foi acusado de estar na contramão das vanguardas?
A vanguarda é algo de bastante antigo. Mas qual será o problema que as pessoas têm com a narração? O fato é que é bastante difícil contar uma história. Ainda mais quando se quer fazer algo mais do que uma história. Criar palavras soltas, um poema difuso, me parece mais fácil. Tenho, pessoalmente, mais interesse na relação entre personagens, relação que se faz através das palavras. Mas isso não é uma regra geral. Todas as experiências artísticas são importantes. Digo isso porque posso detestar uma peça que conta com clareza uma história, e adorar uma peça teórica ou política.
O encontro do jovem Nelson Xavier com os artistas do Teatro de Arena, no fim dos anos 1950, promoveu uma não-especialização que foi a marca de sua atitude de ator, a despeito de sua identificação posterior com figuras como Lampião ou Chico Xavier. Mas que outro ator poderia se orgulhar dessa associação a personagens tão emblemáticos das contradições do Brasil?
“Faces”, de John Cassavetes, me trouxe a vontade de fazer cinema. Sua beleza impressionante não é técnica. Câmera documental, sem plano e contra plano, descontinuidade, marcas de muitos cineastas modernos. O assunto tem algo de banal: o casal burguês em crise se refugia no sexo pago. Mas, como em Tchekhov, os estragos psíquicos surgem patéticos, em contextos sociais precisos.
Dentre os filósofos brasileiros, Gerd Bornheim foi o mais querido pela gente de teatro. Tinha como ninguém o prazer do espetáculo, a admiração pela forma transitória da cena, por uma ficção condicionada à presença física dos atores. Tinha também um gosto muito pessoal pela crise. Pelo teatro como experiência crítica, em que os valores não estão mais dados. E tudo precisa ser construído na relação entre o palco e a platéia.
Assistimos a algumas cenas de Chaplin como modelo de trabalho nos ensaios de O Patrão Cordial. Mesmo nos filmes anteriores à composição do “tipo Carlitos”, está em jogo uma personagem abúlica, de vontade precária, a quem o mundo das coisas surge como ameaçadoramente vivo.
Não é só através do tema que Dogville, filme do diretor Lars Von Trier, se aproxima da obra de Bertolt Brecht. De fato, a canção Jenny e os Piratas, trecho da Ópera de Três Vinténs, inspira o argumento do filme, cedendo-lhe a imagem da moça explorada por toda a cidade e a de uma vingança de aniquilação. Mas o parentesco de assunto é distante, comparável ao da releitura feita por Chico Buarque em sua Geni e o Zepellin. São casos em que o assunto brechtiano serve a outros propósitos.
Dos filmes que me marcaram a adolescência, Noite dos desesperados (1969), de Sidney Pollack, é talvez o de memória mais viva. Assisti na televisão, sozinho, numa madrugada. Numa mais o revi. O filme retrata um concurso de dança de salão em que o último casal a seguir de pé ganha o prêmio, até o limite das forças e da sanidade. Todos bailam como mortos vivos, numa corrida diante de uma plateia que parece mecânica, ao som de músicas ironicamente alegres. São personagens arrebentadas, no tempo da depressão norte-americana.
Num texto irônico de sua juventude, Marx elogia o erotismo e o senso ético da Bolsa de Valores, porque afinal, ele escreve, na “bolsa de valores também é o amor que impera”. A bolsa de valores é um lugar onde cada investidor busca satisfazer o seu desejo de felicidade, o que significa, na prática, o amor. Portanto, se alguém joga na bolsa, diz ele, “e faz isso com correção”, sabendo calcular bem as conseqüências das operações, está agindo moralmente, ao mesmo tempo em que realiza o amor.
Essa ironia literária de Marx – essa piada de que o mercado é um lugar de moralidade e erotismo – serve até hoje como uma espécie de modelo modernista para a representação teatral antiburguesa.