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As sete qualidades de um grande humorista (1993)

Fui ao show de Jô Soares, Um Gordo em Concerto, e saí convicto de que existe mesmo uma relação próxima entre a racionalidade e o riso, sendo ambos atributos básicos da nossa humanidade. Alguém já disse, creio que Horace Walpole, que “este mundo, para quem sente, é uma tragédia, para quem para quem pensa é uma comédia”. Os absurdos da vida confirmam o paradoxo. Nunca, porém, estivemos tão carentes da face cômica, carentes do logos e da alegria como nesses desumanizados dias que correm. Durante o show de Jô Soares gargalhei, como se dizia antigamente, “às bandeiras despregadas”. Aventuro-me aqui a teorizar sobre o cômico a partir do trabalho deste que, sem dúvida, é nosso piadista maior. A tentativa não deixa de ser risível, o que, de qualquer modo, não se opõe à natureza do tema. Arbitro como sendo sete as virtudes do grande humorista. SENSO DE OBSERVAÇÃO. O olho clínico para as particularidades, para as minúcias, para o que há de mais banal na vida cotidiana. Jô Soares reconstitui uma consulta ao dentista a partir de detalhes como o sugador de saliva. É também capaz de nos fazer rir dos avisos de “não converse com o motorista” escritos em ônibus. VISÃO COMPARATIVA. Poderíamos chamar isso de exercício da metáfora descendente. Por exemplo, quando um bêbado confunde a axila peluda de uma moça com os pelos pubianos ou, quando um palhaço põe o rosto embaixo do próprio traseiro, temos a comparação de algo socialmente “superior” com algo de status social inferior. O humor coloca lado a lado o “alto” e o “baixo”. Revela a pequenez do ser humano, nossa cara animal. Lembra-nos que somos como macacos na jaula ou que mesmo a inalcançável rainha da Inglaterra também tem flatulência. AGUDEZA CRÍTICA. Reforço aqui a tese de que o riso é uma distensão da razão. Não é à toa que se fala “entender uma piada”. O alvo preferido da crítica cômica é a ordem social, as relações de poder. Os latinos diziam que “rindo se castigam os costumes”. Jô, neste sentido não poupa ninguém. A cena do supositório de cocaína de Collor é impagável, em que pese o grotesco da situação. Rimos, mas suspiramos reflexivos, instantes depois. CAPACIDADE DE SURPRESA. Kant dizia que o riso provém da “reversão de uma expectativa densa em nada”. Todos os teóricos do assunto, de Hegel a Freud, de Bergson a Fourastié, de Olavo Bilac a Pirandello, diferem nos termos mas concordam na ideia. Quando esperamos um certo desenvolvimento lógico de um acontecimento e, somos subitamente surpreendidos, surge o humor. Jô Soares usa e abusa disto. Declama um melodramático poema sobre um menininho pobre e, antes que chegamos a comoção, lança um petardo. TIMING. A arte do humorista supõe um conhecimento do ritmo certo para cada espetáculo. No meio teatral, diz-se que a comédia pede da representação um tom “alto, forte e brilhante”. No entanto, para determinado público, às vezes é melhor falar em voz baixa, pronunciando rapidamente as frases. Para outro pode ser preciso ralentar a ação e aumentar o volume. Jô é um mestre nisso. Sabe que a variação e as pausas são fundamentais para o bom encaminhamento do show. Sabe que a plateia precisa ter tempo para gozar. IMAGINAÇÃO CÊNICA. O humorista verdadeiro não apenas narra suas piadas, mas as interpreta também. Ele deve ter alma de comediante, de ator de teatro. A graça de um chiste é proporcional à habilidade em fazer a plateia visualizar a cena. PRESENÇA ANGÉLICA. É aquela qualidade que torna o espectador prontamente simpático ao motorista. Jô Soares usa a técnica de começar o show fazendo troça de si próprio, e logo nos torna seus cúmplices. Esta qualidade, no entanto, é algo maior. Alguns chamam de charme, outros de presença, outros de poder pessoal. Em Portugal diz-se “aquele ator tem um anjo”. Repare-se que certas expressões como “ele é espirituoso” ou “não tem graça” remetem ao universo religioso. Graça e espiritualidade qualificam tanto os santos como os bufões. Somente Baudelaire discordaria, pois considerava o riso uma coisa diabólica, um estigma do pecado original. Guimarães Rosa, ao contrário, via no capeta a corporificação da ausência de humor, denominando-o de “o sem gracejo”, “o-que-não-se-ri”. Jô Soares líquida a questão em seu show, lembrando que o riso é humano, demasiado humano. Talvez por isso, hoje, tão raro.

(Crônica publicada no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo, em 17 de setembro de 1993.)

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Giotto e os vendilhões do templo

Para a escrita de uma versão libertária da Paixão de Cristo, que faço a convite de artistas militantes do assentamento Santana, no interior do Ceará, com quem colaboro há alguns anos, lembrei-me de estudar as imagens pintadas por Giotto, em especial as feitas para a Capela dos Scrovegni, no começo do século XIV. Pude ver de perto essas obras por uma conjunção de acidentes, anos atrás. Eu trabalhava num grande jornal de São Paulo e, o novo editor, se viu obrigado a diminuir o espaço da crônica semanal. Sendo eu o único cronista novato, autor de textos que transpiravam um socialismo difuso, e o não-famoso em meio a vários escritores consagrados, meus chefes decidiram, apesar de ser dos mais lidos do caderno, que eu seguiria apenas como crítico de teatro. Recusei o rebaixamento sorrindo e anunciei minha saída do jornal. Um pouco pela consciência culpada do editor, que confessou obedecer ordens, ou como elemento de sedução para que eu seguisse mais tempo no trabalho, ofereceram-me uma passagem aérea para a Itália, aonde eu iria escrever reportagens sobre um festival de artes cênicas. Evidentemente, aceitei a compensação incomum que me permitia, pela primeira vez, visitar o Velho Mundo, num tempo em que eu não tinha dinheiro para pegar um táxi para o aeroporto. Conheci naquele festival alguns dos melhores encenadores europeus da época, como Jerzy Grotowski. Quando finalizei o trabalho, viajei pelas lindas cidades da Toscana, entre elas Pádua. E foi um acaso, o de um passeio sem rumo certo, que me levou a entrar na pequena capela pintada por Giotto a partir de 1304. Tive ali um sentimento inédito sobre o quê pode ser uma experiência de artes visuais: todas as paredes cobertas por afrescos de imagens variadas, de sentido narrativo e alegórico. Hoje sei que são 39 essas pinturas com cenas da vida e da Paixão de Cristo, ao lado de episódios da história de sua mãe, Maria, que estão sob uma terceira série de imagens, as de seus avós Santa Ana e São Joaquim, apresentados conforme os relatos dos evangelhos apócrifos. Na parte mais baixa das paredes, há personificações das virtudes e dos vícios. A organização épica dos quadros, que apesar de independentes produzem diálogos entre uma linha de afrescos e outra; a necessidade do espectador contemplá-los em movimentos comparativos, ora horizontais ora verticais, ou procurando um conjunto possível; a beleza dessa arte cristã de ares orientais; as cores vivas e desbotadas, e principalmente a absurda força gestual, tudo era de uma beleza única para mim, a despeito de meu ateísmo, decorrente dos anos vividos nos corredores de um colégio católico. Para a escrita da peça do Assentamento, lembrei que ainda possuía o livro comprado no dia da visita em Pádua, com imagens da Capela de Giotto. Relendo-o, e a partir de outras fontes, sou informado de que a origem daquele prédio esteve ligada a um absurdo caso envolvendo uma família de usurários. A capela foi construída por ordem de um burguês rico chamado Enrico Scrovegni, como parte de um acordo feito com a Igreja, para que ele pudesse receber a herança deixada por seu pai agiota, uma fortuna feita com empréstimos a juros, num tempo longínquo em que ganhar dinheiro apenas por dispor de dinheiro era considerado pecado mortal. Entre as punições à usura estavam a recusa ao enterro em solo consagrado e a intransmissibilidade dos bens como herança. Ao que parece, a proximidade com o papa Benedito XI gerou um meio de se manter os bens dos Scrovegni na família: parte da riqueza seria doada “aos pobres”, e o herdeiro teria que entrar para uma ordem leiga e construir uma capela. A igrejinha decorada por Giotto, com as mais belas imagens da Paixão de Cristo já pintadas, foi assim erguida em nome do trânsito livre do dinheiro e da transcendência da dívida. Dizem que Giotto cobrou um preço altíssimo pelo trabalho. E significativamente, omitiu o mais conhecido dos vícios de suas personificações grotescas: na Capela dos Scrovegni não ganhou forma a alegoria da Avareza, porque “não se fala de corda, em casa de enforcado”. Em contrapartida, como outro recado sutil, Giotto pintou, de modo muitíssimo concreto e vivo, a cena da expulsão dos mercadores do Templo. À frente de uma mesa de cambista, tombada no chão, com as arcadas do templo ao fundo, enquanto os animais dos comerciantes, destinados ao sacrifício, fogem de suas gaiolas, Jesus ergue o cotovelo no instante do soco que ameaça o vendilhão. Essa imagem de um Cristo mostrado em perfil violento, sobreposta à história de sua produção, me parece uma aula de dramaturgia atual, e uma lição sobre a arte na relação com seu lugares sociais. Inspira, por outro lado, o projeto tão diverso de uma Paixão de Cristo reinventada por um grupo de artistas amadores, mulheres de um assentamento rural no sertão do Ceará.

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Sarrafo, um jornal pau-para-toda-obra

O SARRAFO foi um jornal sobre teatro feito por alguns grupos da cidade de São Paulo no ano de 2003. Em sua primeira formação, “éramos seis”: Ágora, Parlapatões, Folias d´Arte, Teatro da Vertigem, Fraternal e Companhia do Latão. Participavam como editores várias pessoas dentre as que organizaram, tempos antes, o Arte contra a Barbárie, movimento de crítica à mercantilização da cultura e das políticas públicas em São Paulo que deu origem à Lei de Fomento ao Teatro.

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Decálogo de Cascudo para nortear a vida (1993)

Eu organizava esta semana os livros na estante, naquela tentativa inconsciente de colocar em ordem a própria alma (algum resquício da primitiva magia simpática), quando o acaso me fez deparar com uma pequena obra, perdida atrás da fileira de livros. Intitulada O livro das velhas figuras, foi-me presenteada há muitos anos pelas mãos do próprio autor, o grande literato e folclorista Luís da Câmara Cascudo. Recordo-me incerto da circunstância.

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A atriz H

Por onde passa, instaura começos
ensaios, de alegria e espanto,
como as velhas divindades
(na mão, uma cicatriz)
No centro móvel da cena,
Ela percorre desvios
Estaca a fala, suspende o rito
Voa o cenário,
inaugura o sentido
No gesto em que tudo já era
no ato em que tudo é princípio
seu despudor é risonho
quase ofensivo
à cata da relação
precisa
Porque sabe o que interessa,
seu papel tipo,
quiçá um estilo,
parece antigo,
inapreensível,
vibra cordas da razão
Poderia ser dito, de modo mais materialista:
“É melancólica essa beleza
Que sabe seu agora”
no olho do vivo
Seu tempo de teatro é exato
como seu corpo:
prático, límpido, nítido, último.
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Monan Piririguá (2011)

Piririguá Obyg tinha 130 anos quando o missionário da Companhia de Jesus o procurou no aldeamento de Itanhaém. A pele enrugada do velho tupiniquim sobrava nas costelas e coxas, mas não no rosto descarnado. Portava adornos descoloridos da virtude guerreira antiga. Foi um homem principal, disso sabiam todos, e não só o prestígio, mas o corpo magro e riscado fascinara o jesuíta.

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Uma canção do reisado (2011)

No Assentamento Santana, onde mora Alana, Seu José, brincante do Boi, é a mim apresentado por Silma. Percebe que me interesso pelo que ele faz e me narra uma cena. “Nunca viu?” Ele representa cada um dos personagens do jogo do reisado, canta trechos, cria o espaço, as oposições, os tipos. Consigo ver cada detalhe.

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Cançoneta de Maria Ilieva

Sou Maria Ilieva

das ameixas escaldadas,

do xarope fermentado,

na Bulgária dos novos dias.

Pode provar meu senhor,

Meu conhaque seca feridas,

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Tipos do jornalismo atual (notas para personagens, 2011)

editor neotropicalista é a encarnação do ideal do “criticar aderindo e aderir criticando”.Vai a todas a festas, mas se sente como um antiburguês no meio dos burgueses, um subversivo que esparrama graxas avançadas nas engrenagens da estrutura. 

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Um intelectual no exílio (dos cadernos de Giácomo Soderini)

No desterro de San Casciano, Maquiavel, o proscrito, se acanalhava o dia todo no jogo de baralho. Sobre a mesa na taberna, freqüentada por um açougueiro, um moleiro e dois padeiros, contava os pontos das cartas de efígie perdida. E ao fim da jornada, embriagado após o passeio pelas ruas escuras, imobilizava-se diante da porta de seu quarto de estudos, despia-se da camisa comum e retirava da sacola panos curiais que vestia de modo mais ou menos solene, a fim de penetrar dignamente trajado em sua intimidade, na lembrança dos palácios principais, e ser recebido de modo cortês por si próprio. Na existência de San Casciano, Maquiavel praticava a amizade rude do moleiro, do açougueiro e de dois padeiros, e entrevia, no apagar da vela, formas modernas de adular o novo príncipe.