Eu organizava esta semana os livros na estante, naquela tentativa inconsciente de colocar em ordem a própria alma (algum resquício da primitiva magia simpática), quando o acaso me fez deparar com uma pequena obra, perdida atrás da fileira de livros. Intitulada O livro das velhas figuras, foi-me presenteada há muitos anos pelas mãos do próprio autor, o grande literato e folclorista Luís da Câmara Cascudo. Recordo-me incerto da circunstância.
A data anotada sob a dedicatória recupera a lembrança de uma justaposição “natalina”: o gesto se deu durante uma festa de Natal, ocorrida numa casa de praia da cidade de Natal. É um de seus raros volumes de crônicas. Não é de seus trabalhos mais conhecidos ou importantes. Trata-se de uma compilação de saborosas notas biográficas, que evocam a memória de pessoas marcantes do passado do Rio Grande do Norte. O que me causou surpresa, porém, não foi o livro em si, mas um papel ligeiramente amarelado que havia em seu interior. Reconheço a letra de meu pai, que à época em que estivemos em Natal, era quem de fato conversava longamente com Câmara Cascudo e costumava anotar frases pronunciadas por ele. Eu tinha então não mais que nove anos de idade.
Trago uma imagem de Luís da Câmara Cascudo muito diferente daquela que está na nota de cinqüenta mil cruzeiros. Para mim, ele era e será sempre o sábio surdo que exalava cheiro de charuto cubano. Como Borges, tornado cego à luz das páginas dos livros, Câmara Cascudo perdia a audição na velhice, sob o volume sonoro de tantas palavras ouvidas ao longo da vida. Talvez no Brasil deste século só Mário de Andrade possuísse uma cultura clássica tão desmesurada, aliada a interesses populares tão múltiplos. Erudição inquieta, absorvida não apenas em leitura, mas também em conversas e viagens pelo interior do país. De Mário, inclusive, foi discípulo e amigo a distância. A ambos coube o irônico destino de ter o rosto estampado em cédulas do Banco Central hoje em circulação. Agora estão distanciados pela igualmente irônica diferença de um zero, num país que eles, os zeros e os sábios, já não têm tanta importância.
Falávamos, porém, do acaso de um papel encontrado no meio de um livro, significativamente chamado de Livro das velhas figuras, que estava caído ao fundo da prateleira. O conteúdo do amarelado papelzinho é um curioso decálogo interno, ditado pelo próprio Câmara Cascudo. Acredito ser uma necessidade dar a conhecê-lo. São dez mandamentos, sem força de lei, mas de apelo à alma, pelos quais, segundo creio, ele procurava nortear sua vida cotidiana e sua prática de escritor. Transcrevo-o aqui como uma homenagem à sua memória. Julgo tratar-se de material inédito:
Meu regimento interno
1- Não mentir.
2- Não transmitir notícia desagradável.
3- Não cultivar pensamentos humilhantes e vingativos.
4- Não invejar felicidade.
5- Não pensar naqueles que antipatizo.
6- Não colaborar na mediocridade.
7- Não ajudar o diabo.
8- Evitar a tristeza dispensável.
9- Trabalhar menos e melhor.
10- Não ser o quinto evangelista.
A relação dispensa comentários. Que sirva de inspiração a muita gente.
(Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 30.07.1993.)
Uma resposta em “Decálogo de Cascudo para nortear a vida (1993)”
Gostei do “regimento interno”, me inspira.
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