O SARRAFO foi um jornal sobre teatro feito por alguns grupos da cidade de São Paulo no ano de 2003. Em sua primeira formação, “éramos seis”: Ágora, Parlapatões, Folias d´Arte, Teatro da Vertigem, Fraternal e Companhia do Latão. Participavam como editores várias pessoas dentre as que organizaram, tempos antes, o Arte contra a Barbárie, movimento de crítica à mercantilização da cultura e das políticas públicas em São Paulo que deu origem à Lei de Fomento ao Teatro.
Nossas reuniões eram no Galpão do Folias. Cada coletivo pagava uma parte dos custos dos profissionais da diagramação e de impressão. Eu e Hugo Possolo, que tínhamos alguma experiência jornalística, éramos os “editores-chefes”, mas a pauta era discutida sempre em assembléia animada, da qual faziam parte gente como Marco Antonio Rodrigues, Aline Meyer, Ali Saleh, Márcio Marciano, Míriam Rinaldi, Patrícia Barros, Carlos Francisco, Nani de Oliveira, entre outros (com quem me desculpo pelo eventual esquecimento). Moreira, do Engenho Teatral, era também da linha de frente, e Tolentino, do Tapa, vez ou outra estava conosco. Nessas ocasiões falávamos sobre muito assuntos menos sobre o jornal, cuja pauta no fim era aprovada às pressas. O animador maior do processo era o saudoso Reinaldo Maia, que lançava ao ar dezenas de palavrões e depois que o fogo dos debates se instalava, era quem dava forma ao caos e ajudava a encaminhar os rumos do trabalho. Os novatos estranhavam a balbúrdia, sem entender que era o Maia, com sua paixão da discórdia, o maior dos agregadores entre nós. Márcio Boaro era do núcleo duro da redação e nosso mentor tecnológico, e no Sarrafo conheci o Pedro Penafiel, com quem trabalhei por anos no Latão. Ele era o diagramador contratado por Eucléia Bruno, jornalista que nos acompanhava, e que acabou por compreender nosso método heterodoxo. Entre nossos colaboradores ilustres, o mais famoso era Tersites de Souza, que assinava uma coluna sarcástica, agressivíssima e erudita, a mais esperada e lida do nosso jornalzinho divertido, que espalhávamos de mão em mão pelos teatros da cidade. Protegíamos a sete chaves a verdadeira identidade de Tersites. Só eu e Hugo sabíamos quem era, na medida em que sua obsessão temática – a idiotia dos gestores culturais – podia causar incômodos desagradáveis. Mais de um deles nos ligou atrás de Tersites: “Quem é esse sujeito que considera estúpido nosso “pedido” de assistir aos ensaios dos grupos que estamos contratando para nossa instituição?” “Não posso revelar, é segredo de estado”, eu respondia impassível. O lançamento do Sarrafo se deu numa festa cheia de gente num restaurante ao lado do Trianon (me foge o nome agora). Acho que o querido Sérgio Mamberti era sócio do lugar. Me alegra lembrar que Lélia Abramo estava presente. Vejo sua imagem sorridente, de outra geração, nos confirmando a importância do que estava acontecendo. O segundo número do Sarrafo é aquele de que mais me orgulho. Resolvemos criticar um projeto cultural da Volkswagen que nos parecia estapafúrdio. O tema era delicado porque seu curador era o grande diretor Antonio Abujamra, amigo nosso e a quem admirávamos. Mas a questão não era com ele, e sim com a empresa organizadora. Convidei uma repórter amiga do Estado de São Paulo, Beth Néspoli para escrever o artigo, pois sabíamos que tinha as informações sobre o caso e não poderia publicar a matéria num grande jornal. Ela escreveria com pseudônimo e partilhava da nossa indignação: o projeto fazia uso de um milhão e meio de reais de dinheiro público, mas o grupo vencedor do concurso (se não me falha a memória, o objetivo era encenar a peça A Cantora Careca de Ionesco) levaria apenas cinquenta mil reais. O restante do dinheiro desaparecia em publicidade, festas, cachê de produção etc. Tínhamos a impressão que o tema proposto – um clássico do “teatro do absurdo” – era uma ironia genial do Abu, mas não podíamos deixar passar o caso exemplar de uso, quase sempre desastroso, da lei do mecenato, a chamada Rouanet. Depois de escrever a matéria, que ficou excelente, Beth me disse: “Eu quero assinar, não vou usar pseudônimo. Se o Estadão brigar comigo, que brigue”. Lembrei, então, de uma foto que fiz na estrada, perto do mar, de um fusca depenado, foto em preto e branco, tirada por um adolescente. Seria a imagem da capa. O título acho que encontramos em assembléia: Volksfarra com dinheiro público. Dias depois, Roberto Lage, outro de nossos parceiros fundamentais no Sarrafo, chegou à reunião rindo, dizendo que acabara de enviar exemplares do jornal para a direção da Volks em São Bernardo, embrulhados numa caixa de bombons. O jornal teve ainda uma segunda temporada, anos depois, com mais grupos, da qual já não participei. Hugo deve se lembrar como nos divertíamos a cada vez que tínhamos em mãos a coluna do nosso misterioso e elegante amigo Tersites. Hoje penso: Tersites, além de latinista, era para nós uma espécie de fruta Gogóia: “Samba que eu ensaiar, mestre não óia.”
Uma resposta em “Sarrafo, um jornal pau-para-toda-obra”
Nossa, voltei a um tempo de intensidades simultaneamente próximo e distante: as pessoas estão (quase) todas aí, atuantes, mas aquele ambiente cultural soa como existência de priscas eras. Só para anotar, o título, veio de um e-mail a mim enviado por Aimar Labaki no qual ele comentava uma matéria curtinha e quase invisível que escrevi no Estadão sobre o projeto. Na mensagem, ele usou essa expressão volksfarra. Comentei com você quando perguntou se eu tinha ideia para um título. O resto, você fez. A foto de capa foi fundamental para o impacto do texto. Sempre fui agradecida a vocês todos por terem aberto o canal para essa crítica. Ele teria ficado entalada.
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