No desterro de San Casciano, Maquiavel, o proscrito, se acanalhava o dia todo no jogo de baralho. Sobre a mesa na taberna, freqüentada por um açougueiro, um moleiro e dois padeiros, contava os pontos das cartas de efígie perdida. E ao fim da jornada, embriagado após o passeio pelas ruas escuras, imobilizava-se diante da porta de seu quarto de estudos, despia-se da camisa comum e retirava da sacola panos curiais que vestia de modo mais ou menos solene, a fim de penetrar dignamente trajado em sua intimidade, na lembrança dos palácios principais, e ser recebido de modo cortês por si próprio. Na existência de San Casciano, Maquiavel praticava a amizade rude do moleiro, do açougueiro e de dois padeiros, e entrevia, no apagar da vela, formas modernas de adular o novo príncipe.
Simião, o sapateiro
(Um fragmento)
Na ágora de Atenas, ele produzia sandálias, consertava cadarços, conforme os jeitos dos pés e o desgaste das pedras. No tempo da Democracia dizia cobrar um preço justo. Era famoso não por essa impalpável medida, mas pela habilidade de modificar a matéria-prima conforme sua qualidade, conforme as necessidades que lhe fossem trazidas. Simão, o sapateiro, quando justiça se discutia, tinha para si saudades da Tirania, devido a algumas convicções íntimas que os homens acreditam serem políticas. Mas Simão, comerciante do próprio trabalho, notava no dorso dos dias, que os homens gastam mais suas solas no vai e vem escarpado da ágora democrática, nos desembarques dos portos, nas praças em gritaria. Simão conheceu Sócrates. Dele ouviu a palavra verdade (outros dizem filosofia) enquanto esticava o couro por meio de duas presilhas.