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O fim anunciado: a crítica de teatro vive os seus últimos dias

O processo de esvaziamento da crítica teatral na imprensa brasileira já dura mais de duas décadas. E esses que aí estão talvez constituam o nosso último grupo de críticos. Depois deles, ao menos na imprensa, será a morte da profissão. Fim inglório, para o qual eles próprios contribuíram. Sem críticos profissionais, no entanto, a crítica continuará a ser exercida nos jornais do lado de fora do discurso crítico. Bem longe do pensamento. Continuará a ser exercida na escolha editorial sobre quais artistas merecem uma reportagem. Na decisão sobre o tamanho da matéria supostamente isenta de opinião, que vai ou não sair na capa do caderno. Na escolha das fotos, ou ainda no roteiro da temporada que, cada vez mais seletivo, continuará com suas estrelinhas e aplausinhos de recomendação.

Com o fim do discurso crítico, não serão extintas as valorações. De manifestas, elas vão se tornar ocultas. Sem autoria. E, sem que se apresente o sujeito das opiniões não enunciadas como tal, não haverá o que debater. Não se discute com “escolhas técnicas”, assim como não se discute com “leis do mercado”. O juízo de valor será produzido de forma cada vez mais baixa, sem nenhuma raiz na argumentação. O valor de tal obra será lançado de cima, de insondáveis alturas, sem construção lógica no caminho da verdade, e sem desejo de, por meio do argumento, estabelecer uma relação crítica com o leitor.

Uma peça poderá ter ampla cobertura jornalística, o que vai sugerir algum valor natural, e o leitor ficará sem saber que isso se deve, por exemplo, ao fato de a primeira atriz ser amiga do dono do jornal. O teatro brasileiro, tão pouco respeitado em sua curta história, será registrado com ainda maior ignorância. E, como escreveu Mário de Andrade, a baixeza da inteligência não está na ignorância, mas na utilização dela.

O que chama a atenção no fenômeno é que o processo de rarefação do pensamento crítico não se exerce só de fora para dentro, pelas normas do jornalismo moderno que visam à “eficiência” para com as massas. O impressionante do fenômeno é o modo como ele vem sendo internalizado pelos nossos últimos moicanos. Como numa aceitação agônica de padrões que se apresentam a eles como modernos, algo análoga aos senhores cujo medo de envelhecer faz com que simulem a adolescência no que ela tem de pior, o pouco que ainda se escreve sobre o teatro tem incorporado, de um lado, a absolutização do juízo de valor. De outro, o ocultamento da opinião atrás de uma fachada técnica.

Essas tendências correspondem a dois dos principais modelos de crítica em vigor no teatro brasileiro. No primeiro caso, o da absolutização do julgamento, uma persona crítica mais ou menos enfática sustenta uma opinião baixada por decreto. Nas 20 linhas que lhe são concedidas, esse crítico exibe conhecimento ligeiro sobre o autor como preâmbulo ao louvor ou à paulada nos atores (veja bem: não na atuação dos atores!). A adjetivação geral permite que sobrem duas linhas para elementos como a cenografia ou a iluminação. Nenhuma para o debate de idéias. Porque a finalidade não é a interlocução.

Esse modelo de prepotência valorativa tem a virtude de ainda praticar a subjetividade. Melhor seria se não fosse ela sua única escora. O julgamento só amparada na persona subjetiva, sem escalas na conceituação, tem o contra-efeito de tornar o próprio crítico uma mercadoria de circulação acima do objeto de análise. Aquilo que desperta uma raiva danada na classe teatral, de qualquer modo descontente com a crítica em qualquer tempo, será a mesma coisa que manterá o crítico no emprego: o fato de ele permanecer afamado, de circular por sua idiossincrasia. No mundo da mercadoria, dizem, sejamos como ela. Os críticos que se mantém como “empregados certos” introjetaram a ideologia empresarial dos índices de consumo sob a forma de uma cínica defesa do agrado do espectador. Confundem, de propósito, prazer estético e hedonístico, para que o leitor, ignorando a razão da alta ou baixa agradabilidade, aceite a opinião por afinidade com o espírito negativo da persona crítica. O que prevalece nunca é a discussão sobre a experiência coletiva proporcionada por um trabalho teatral em seu momento histórico. Na posição de um confiável guia de consumo, o que prevalece, sim, é a imagem do poder do crítico e de seu veículo de comunicação.

É digno de nota irônica que tal equívoco tenha sua origem no exemplo dos grandes críticos brasileiros do passado, que praticavam a subjetividade de suas escolhas com base numa cultura teatral humanista. A diferença é que os críticos de antes, por discutíveis que fossem seus propósitos, ao menos os evidenciavam. A crítica de Décio de Almeida Prado ao boulevard local de pouca qualidade literária tinha contrapartida na defesa de uma cena moderna, talvez não a melhor possível, mas a que estava à mão por obra do TBC.

O que aconteceu depois é que o parâmetro da montagem como derivação mais ou menos aceitável do texto, ao longo do tempo, perdeu o sentido em face das mudanças dos anos 60 e 70. Sem se deixar influenciar por dissonâncias intelectuais mais complexas, como a de Anatol Rosenfeld, que percebeu a importância de ver o espetáculo como fenômeno relativo a um contexto histórico, a geração de críticos que veio depois tendeu a reproduzir o modelo da década de 50, esquecendo-se que sua forma correspondia a um combate de época e a um gosto teatral, o da boa cena produzida no palco europeu burguês. Além do quê, eram análises sustentadas não no subjetivismo autoritário, mas numa enorme cultura pessoal, militância progressista e preocupação ética.

Quanto aos poucos críticos que evitaram o modelo personalista e poderiam estar hoje aí exercendo um papel significativo na imprensa, estes têm se mostrado igualmente inúteis. Em sua maioria oriundos da universidade, seus escritos vão na direção contrária da valorização fácil. Contém, quase sempre, interpretações do objeto, análises da concepção do espetáculo, mas seu objetivismo é temeroso quanto à questão do valor. Algo influenciados pela onda estruturalista das primeiras faculdades de teatro, sua maior virtude é discutir com base no que o espetáculo mostra. Seu procedimento resgata parte da vontade de razão dos antigos críticos. Mas, ao deixar de lado a militância, ao não tomar partidos históricos como fizeram os da geração anterior, ao esconder o julgamento atrás de uma análise técnica, e ao adotar uma tolerância novidadeira, sua crítica se indiferencia do movimento geral da cultura de mercado e mostra, ao fim das contas, uma suspeita afinidade com o meio de produção na qual se insere.

É provável que os inocentes úteis achem que não lhes resta alternativa num tempo de produção imensa e diversa senão a de comentar cada espetáculo como se fosse um “autônomo estético”, sem relação com  conjunto da tradição ou com um comportamento mais ou menos válido diante da vida atual. Não tomam parte, assim dos debates sobre a formação do gosto e deixam que os juízos se imponham democraticamente, ou seja, pela ação dos formadores de opinião dominantes. A principal obra de seu alheamento é reforçar a falsa idéia de que o teatro brasileiro pouco contribui para a cultura do país. Na verdade, os últimos críticos teatrais do Brasil estão cansados. A tarefa de assistir a uma infinidade de espetáculos se torna vazia sem um projeto claro em vista. Ainda mais quando parte da produção, da qual poderiam surgir estímulos menos individualizados, não se revela autocrítica quanto às suas intenções em arte. Mas os últimos críticos, exauridos por uma mercantilização da qual não conseguem se desvencilhar, não têm forças para perceber os pequenos movimentos positivos da vida do teatro no país. Sem o vislumbre de um futuro, entregam-se à rotina e ao conformismo no presente. Enquanto isso, a história do teatro brasileiro neste fim de século não está sendo escrita.

Este texto foi publicado em maio de 1999, na revista Bravo, número 20. Rendeu-me, na ocasião, telefonemas mal-educados. Refere-se, evidentemente, a um quadro de época, que não é exatamente o atual. Que o leitor avalie as diferenças e semelhanças. Fiquei com vontade de mudar a frase final, que deveria ser: “Enquanto isso, a história do teatro brasileiro neste fim de século está sendo escrita bem longe das páginas dos jornais.”

Por Sérgio de Carvalho

Sérgio de Carvalho é dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, grupo teatral de São Paulo, Brasil. É professor livre-docente na Universidade de São Paulo na área de dramaturgia.

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