Dentre os filósofos brasileiros, Gerd Bornheim foi o mais querido pela gente de teatro. Tinha como ninguém o prazer do espetáculo, a admiração pela forma transitória da cena, por uma ficção condicionada à presença física dos atores. Tinha também um gosto muito pessoal pela crise. Pelo teatro como experiência crítica, em que os valores não estão mais dados. E tudo precisa ser construído na relação entre o palco e a platéia.
Não são poucos os filósofos que se interessaram pela reflexão estética. A dignificação ontológica do sensível foi quase uma justa imposição da fenomenologia a todo pensamento do século passado. Mais raros são aqueles que, na vida de todos os dias, fazem com que de fato o “olho produza”, na expressão de Brecht sobre a arte do espectador da era científica.
Guardo a lembrança de Gerd Bornheim como um amoroso do teatro, espectador ideal porque sempre em atividade interpretativa, um descontente. Era quando deixava de ser o professor cativante, tecedor de sistemas, e se punha como o aluno assistemático, de perspectivas móveis.
Tendo estudado Marx, não guardou dele o combate anticapitalista, mas a crítica à alienação do trabalho. Acredito que enxergava no teatro essa dupla possibilidade, de vislumbre do desacerto atual e de resgate de algum sentido de totalidade. Todos os autores de seu interesse estavam distantes ou se distanciaram, por razões diversas, do mundo da especialização burguesa. Dos pré-socráticos que traduziu, na fronteira entre o mito e a palavra filosófica, ao Hegel das “manifestações sensíveis da Idéia”. De Heidegger e sua nostalgia do Ser (antes o poeta dos “caminhos que não levam a lugar nenhum” que o pensador irracionalista) a Sartre, não só o filósofo, mas o escritor de teatro.
Talvez seus melhores estudos teatrais sejam ligados ao romantismo alemão, mas todos os grandes temas, afora o Brasil, lhe foram próximos: os trágicos gregos, Shakespeare, Brecht. Teatro e teoria eram para ele atividades dos sentidos. Nos últimos anos, em que parecia andar mais cansado dos acidentes da vida, e como que numa recusa a perder o prazer de viver, falava muito de uma Grécia originária, estética e hedonista, em que o teatro não se distinguia de seus outros, a música, a dança, o ritmo. Essa saudade regressiva lhe impregnou de um wagnerianismo incerto, quase melancólico nos comentários estéticos.
Dialético que era, seu livro sobre Brecht ensaia uma oposição a isso: Brecht é lido como o poeta da “separação”, da ruptura às fusões da ópera, o anti-wagneriano cuja perspectiva totalizante não era espiritualizante, pedia distinções e pontos de vista de classe. Mas é como se Gerd Bornheim, repetindo o que fez com Marx, se encantasse apenas com um lado de Brecht, o da pesquisa formal, que de fato é o mais inovador se não lhe abstrairmos sua busca de objetividade material e histórica.
Sua imagem estética de Brecht pode ser comparada àquela feita por um “artista que se põe a pintar Lênin, e cujo retrato lembra sem dúvida Lênin, mas cuja técnica de luta não recorda de modo nenhum a técnica de luta de Lênin”. Talvez este meu esboço do pensador crítico e homem ético do teatro que foi Gerd Bornheim sofra do mesmo limite, perdoável aos que muito lhe admiraram e com ele tanto aprenderam.
(Gerd Bornheim morreu dia 5 de setembro de 2002, aos 72 anos. Este texto foi publicado na Folha de S. Paulo em 21 de setembro de 2002. A imagem provém do blog http://umolharacadadia.blogspot.com/2008/03/filosofia-e-arte-homenagem-gerd.html.)