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Latão e Brecht

Do diário das apresentações de Ópera dos Vivos (2011)

10.11.2011
Palestra a um grupo de teatro intelectualizado. Após a fala inicial, ouço a pergunta reincidente: “Você acha que essa perspectiva iluminista, essa crítica da ideologia feita pelo teatro épico, dá conta das questões contemporâneas?”. Respiro fundo e tento explicar que o procedimento do teatro dialético não pode ser identificado ao desmascaramento, à exposição da mola econômica, que os aspectos decisivos estão na interação contraditória entre a cena e o público etc.

Fico com vontade de sugerir a leitura dos textos de Marx sobre religião,mas opto em escapar da conversa inútil (que não modificaria pontos de vista já cristalizados) com uma citação de um filósofo contemporâneo, o que serve antes para confundir do que para esclarecer minha posição. Parece que a inteligibilidade em arte não é um valor muito apreciado. Em casa, sublinho no Diário de Trabalho, o seguinte trecho, do período norte-americano de Brecht, que mostra sua diferença em relação a qualquer materialismo vulgar: “A oportunidade especial que o marxismo teve na Europa não existe aqui. O sensacional desnudamento das práticas comerciais nos países burgueses indicou que o marxismo surgiu como um iluminismo, efeito que não é possível aqui. Aqui você se vê diante de um Estado instituído diretamente pela burguesia, que em nenhum momento se envergonha de ser burguesa.” Sua obra – lá atrás – já lidava com uma compreensão avançada das utilidades e limites da atitude iluminista, num tempo em que “a opressão avança dispensando a máscara do pacifismo”.
12.11.2011
Apresentação do primeiro ato de Ópera dos Vivos (Sociedade Mortuária) na Escola Florestan Fernandes, ligada ao MST. Passamos o dia preparando o espaço cênico numa quadra poliesportiva. Na ausência da iluminadora do grupo, eu mesmo me encarrego do trabalho da luz. O cabo trifásico é puxado do quadro com a ajuda de um eletricista da Escola. É ligado na mesinha de 6 canais emprestada por um grupo de teatro amigo. Improvisamos varas de sustentação dos refletores com bambus recolhidos no mato, que são amarrados em escadas. Outros são postos num andaime, erguidos por nós atrás da arquibancada improvisada. Iluminamos também as árvores próximas à quadra. Sem extensões para puxar energia, emendamos fios e mais fios. Fico com um extintor de incêndio (retirado de um automóvel) à mão, por via das dúvidas. Durante a apresentação, para expandir as variações de luz, trabalhamos com lâmpadas adicionais ligadas a réguas de energia, diretamente conectadas às tomadas das paredes. L. me ajuda na operação frenética e às vezes coreográfica durante o espetáculo. O debate após a sessão revelou o interesse formal dos integrantes do MST e de artistas presentes (era uma mostra organizada por coletivos socialistas) na força de historicização do espetáculo do Latão. A parábola sobre a origem das Ligas Camponesas gera seu valor artístico conforme a cena ajuda a imaginar possibilidades de uma realidade social menos alienante. Um militante vindo de Angola nos pede mais textos teatrais: viu no nosso trabalho um modelo para peças sobre problemas africanos. Na desmontagem da iluminação – que, apesar de precária, foi importante e resultou bonita – somos ajudados por artistas de vários grupos.

Por Sérgio de Carvalho

Sérgio de Carvalho é dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, grupo teatral de São Paulo, Brasil. É professor livre-docente na Universidade de São Paulo na área de dramaturgia.

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