Conheci Jean-Claude Carrière no final de 1995, ou início de 1996, já não tenho certeza. Em 1995 eu ensaiava em São Paulo sua peça O Catálogo (L´Aide-Mémoire). O texto chegou a mim acidentalmente: estava entre uma pilha de peças que Ney Piacentini me emprestou quando conversávamos sobre a possibilidade de um espetáculo conjunto. Àquela altura eu atuava só como dramaturgo, escrevia para jornal, e era professor ocasional. Tinha experimentado a direção por duas vezes, durante o curso de Artes Cênicas da USP, onde minha estréia, ainda na graduação, foi nada menos do que Hamlet (versão desconstruída e reduzida, de trás para frente, com o palco coberto de terra), e já no mestrado uma adaptação de um conto do livro Passos em Volta, do poeta português de Herberto Helder (versão azulada que alternava diálogos e monólogos “interiores” enunciados). Pretendia seguir entre a dramaturgia e a teoria porque as tentativas com direção me mostraram a dificuldade de alinhar o plano cênico e o trabalho de atuação. Não sabia como dialogar com atores, sofria com isso, e só via sentido em dirigir se pudesse viabilizar uma criação de fato partilhada, pois detestava “dar ordens” ou sugerir coisas sobre as quais não podia ter certeza. De início resistente, encontrei na peça de Carrière (lida numa tradução, com meu italiano ruim) uma estrutura simples e inteligente: era a chance de praticar com dois atores brilhantes, pois juntava-se a nós Graziella Moretto, que tinha saído há pouco da Escola de Arte Dramática. Meu plano era experimentar as propostas de Stanislavski anotadas por seus alunos, em especial o trabalho sobre “ações físicas”, procedimento que utilizo até hoje. E de fato eu estudava de manhã para aplicar à tarde. Com a peça levantada (não tenho certeza quando), pus na cabeça que iria para França por algumas semanas, sem ter condições para tanto. Precisava estudar francês, me parecia “evidente”; precisava fugir para tomar certas “decisões pessoais”; e precisava, dizia também a mim mesmo, “encontrar Carrière”. Uma tia querida, Leila Helena, uma das pessoas mais importantes na minha vida, e que já tinha me ajudado em momentos de aperto, foi quem me emprestou o dinheiro da passagem. Nunca me deixou devolver. Subloquei um quartinho numa casa de jovens artistas brasileiros, que moravam depois de Montmartre, para os lados do Mercado das Pulgas, em Paris. Só transitava a pé pela cidade, no tempo de uma impressionante greve geral contra a reforma da previdência. Certo dia tomei coragem e, de um telefone público, liguei para os quatro “Jean-Claudes Carrières” registrados na lista telefônica. Num inglês decorado, tentei me comunicar com um deles, e deixei recado na secretária eletrônica de dois outros, apresentando-me, sem muita esperança, como o diretor de O Catálogo no Brasil. Três dias depois, a atriz Giovana Soar, que hoje trabalha na Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, bateu na porta do meu quarto dizendo com um sorriso: “Sérgio…Monsieur Carrière ao telefone”. Sonado, escutei dele um pedido de desculpas pela demora em me responder, estava fora de Paris, e também que me convidava para ir a sua casa em alguns dias. Convenci, muito facilmente, um outro estudante radicado na cidade, Fernando Kinas, a me acompanhar, como tradutor e a participar da conversa. Fernando, que era amigo daquela casa de curitibanos e em breve se tornaria diretor teatral, sabia tudo sobre a programação de espetáculos da cidade e era meu parceiro de peregrinações pela cena alternativa e pelas palestras na Sorbonne ou no Odéon, sempre eventos gratuitos. Chegamos atrasados ao encontro, no esforço de comprar mais fitas para meu gravador. Vi o desconforto com o tempo perdido no rosto de Carrière, que ainda assim nos recebeu gentilmente em sua casa linda, e nos disse que tinha pouco tempo para a conversa, estava em processo de ensaios com Peter Brook, em torno da peça Hamlet. A animação dele, e sobretudo a nossa, em falarmos sobre dramaturgia, fez com que tudo corresse bem. Uma hora depois ele se ergueu e disse: “Voltem depois de amanhã e continuamos a conversa”. Em nosso retorno ficamos umas quatro horas. Eu o considerava uma espécie de “amigo espiritual” em arte, ainda que discordasse de suas posições políticas, com que tomei contato mais tarde. Trocaríamos mais algumas palavras anos depois, quando o procurei no saguão de um teatro, no Brasil. A entrevista publicada abaixo contém uma seleção de trechos de nossa longa conversa. Só saímos de sua casa, naquele dia de alegria, quando, à certa altura, ele disse de modo firme, e como que a contragosto: “Está bom, é suficiente, preciso ir ao ensaio, Peter está me esperando.”
CONVERSA COM JEAN-CLAUDE CARRIÈRE SOBRE A ARTE DO ROTEIRO
Entrevista feita por Sérgio de Carvalho e Fernando Kinas.
Jean-Claude Carrière (1931-2021) foi roteirista, dramaturgo, ator e escritor. Escreveu os roteiros de alguns dos filmes mais importantes de Luis Buñuel, trabalhou com Jean-Luc Godard, Nagisa Oshima, Milos Forman, entre outros. Em parceria com Peter Brook adaptou textos como Mahabharata. Parte desta entrevista foi publicada originalmente no jornal o Estado de S. Paulo, Caderno 2, em 31 de janeiro de 1996. A versão integral, aqui reproduizida, foi publicada em meu livro ATUAÇÃO DIALÉTICA (São Paulo: Expressão Popular, 2009).
Você nos disse quando nos encontramos pela primeira vez: “Em O Catálogo aparecem concentradas, em três dias, algumas das várias possibilidades de uma relação amorosa…”
Mas esta é uma constatação que se faz posteriormente. Quando escrevemos, estamos simplesmente à procura de situações interessantes, deixando falar a invenção. Só depois é que a gente se diz: “Bom, não se pode seguir sem um plano, sem uma certa reflexão.” Só depois é que a gente avalia: “É, isso pode ser uma história de amor, completa, concentrada.” De antemão, eu nunca sei o que uma cena deve significar, nunca. É preciso partir de uma ação que nos surpreenda. Por exemplo, uma mulher chega na casa de um homem. E então? Eu mesmo não sei quando começo a escrever. Estou numa posição idêntica à do homem que diz: “Moça, o lugar que você procura não é aqui” E que ouve dela: “Ah, mas tinham me dito que era aqui.” Eu gosto de ser totalmente surpreendido por aquilo que conto. Meu ideal absoluto, que talvez ocorra por alguns minutos a cada dez anos, é o de escrever aquilo que as personagens fazem quando acontece delas adquirirem vida própria.
Qual foi a primeira imagem que lhe surgiu do texto?
Eu estava sozinho em Paris, durante o verão. Morava num apartamento térreo, perto de um jardim. Fazia calor, a janela estava aberta. E um gato entrou na sala. Na verdade, uma gata. Desconhecida. E começou a passear, como costumam fazem os gatos. Eu deixei, até que de noite decidi que ela deveria ir embora. Mas ela não quis ir embora. E ficou. No dia seguinte também. Então, bem, eu fui comprar coisas para ela comer, para fazer a cama. Três dias depois sumiu. É provavelmente a imagem dessa gata que me deu a ideia porque logo depois eu comecei a peça, bastante surpreso de estar escrevendo para teatro.
Este texto é de 1967, uma de suas primeiras experiências como dramaturgo. O que levou você ao trabalho no teatro?
Essas coisas ocorrem num movimento inconsciente. O teatro me veio assim, sem reflexão. Se alguém me perguntasse qual o meio de trabalho que prefiro – pois sou aquilo que se chama horrivelmente de um autor multimídia, eu escrevo para livros, para televisão, para teatro, para canções, tudo que se pode escrever eu escrevo… Mas quando me perguntam qual você prefere, eu não sei. De certa forma o cinema é o mais difícil.
Por quê?
Porque o cinema exige conhecimento técnico. O cinema – como o teatro e o romance – exige talento e invenção. Mas exige ainda o conhecimento técnico de uma outra linguagem. Do ponto de vista do teatro, é como se escrevêssemos em chinês. A escrita cinematográfica não tem a ver com palavras, mas com outra coisa. E isso exige de um roteirista o conhecimento de todo o métier do cinema, que eu adquiri muito lentamente e muito duramente. E exige ainda uma terceira qualidade, a humildade. Porque de toda forma será um filme do diretor ou do ator. Mas não posso negar no meu passado a presença do teatro. O teatro é fundamental, pois é o meio mais simples, o mais direto.
Você nunca pensou em se tornar diretor?
Sou um autor. Se eu houvesse me tornado diretor – e em uma época isso seria possível – eu seria diretor de cinema. Não posso dizer onde isso teria me levado. Em todo caso, eu não teria trabalhado com Peter Brook. Quando se é diretor de cinema, não se pode ser outra coisa. Um diretor de cinema tem que esperar até o próximo filme que pode demorar 4 ou 5 anos. Tudo o que na minha vida nasceu da curiosidade, eu não poderia experimentar. Deve-se escolher a vida de acordo com a natureza pessoal, com a personalidade. Um diretor é um homem de ideia fixa. Ele pode passar 4 anos se levantando todas as manhãs com uma única ideia: o filme. E se ele largar essa ideia, ninguém vai apanhá-la. Peter Brook trabalha em seu espetáculo e não pode se permitir pensar em outra coisa. Ele verá o espetáculo cem vezes. É um trabalho que exige uma certa disposição de espírito que eu não possuo. Quando faço uma coisa, tenho necessidade de outra coisa, da multiplicidade: é assim que sou. Eu seria muito infeliz como diretor. Creio que sou melhor, ou mais útil como dramaturgo ou roteirista. É uma tarefa que eu creio não poder fazer melhor que Peter Brook, ou que Buñuel, ou Louis Malle. Mas como roteirista eu sei que posso fazer muito para ajudá-los. O que eu diria hoje para um jovem roteirista é que ele deve se preparar para ajudar o cineasta. Se você tem curiosidades diversas, seja roteirista. Passamos a vida de um tema a outro e devemos nos tornar especialistas numa determinada questão em pouco tempo.
Você diz que o cinema exige uma certa humildade – em função da relação com o diretor. Mas o teatro também, na medida em que você não escreve para durar, para a memória coletiva, mas para o trabalho prático.
Posso entender, mas devo dizer duas coisas. Eu, pessoalmente, não sou ligado a uma certa imagem de mim mesmo: sou o autor de hoje, que é invisível, um agente de transmissão, de comunicação entre as culturas e indivíduos. Mas o autor de ontem se via como um papa, um sacerdote do pensamento – mesmo Jean-Paul Sartre era assim. Só que essa época do autor terminou e eu fico muito feliz. Entretanto, uma peça de teatro permanece. Os textos que fiz para Peter Brook são representados em outros lugares. La Controverse de Valladolid foi realizado em diversas partes do mundo. O texto permanece, mas o autor não é mais a alegoria de seu tempo. Marguerite Yourcenar disse algo muito belo sobre isso. Um jornalista a entrevistou na televisão e a interpelou: “por que você após fazer escritos pessoais começou a traduzir os poetas gregos?”. E ela respondeu: “é a mesma coisa”. E é verdade: é a mesma coisa! Os poetas gregos tem tanto direito quanto eu de se fazerem conhecer. O mesmo com Mahabharata.
Como costuma ocorrer seu trabalho em adaptações? Adaptar a Conferência dos Pássaros é muito diferente de adaptar o Mahabharata?
O que se pode dizer é: tudo depende da forma que daremos ao material – será um filme ou uma peça de teatro? Não são a mesma coisa. Muitas vezes eu me recusei a adaptar para o cinema um romance. Porque no romance eu não via o filme. É preciso, de certa forma, esquecer o original. Ninguém verá a peça com o livro entre os joelhos, conferindo as falas. Fizemos um filme com Peter Brook sobre o Mahabharata depois da montagem teatral e tivemos que refazer toda a adaptação. E Peter Brook refez toda a mis-en-scène. Pois se nós filmássemos a mis-en-scène do teatro, que era belíssima, não faríamos um filme. Por exemplo: na peça havia uma série de carros de com- bate. No teatro eles eram representados por uma roda que cada ator trazia nos braços. E isso era muito bom: ninguém considerava aquilo um truque teatral, pois a roda estava ali para evocar um carro de combate. Poderia até ter ficado ridículo, mas funcionava muito bem. Já no cinema pareceria um truque teatral. O cinema é muito mais realista. Utilizamos, então, carros verdadeiros. A cada momento da peça havia esse tipo de problema. Por exemplo, no cinema se fala muito menos do que no teatro. As cenas são duas vezes mais curtas. Quando filmamos a encenação de Tchekov eu cortei quase vinte e cinco minutos do texto, e isso sem cortar os grandes momentos, apenas as pequenas frases, uma, duas linhas, quatro palavras. Nisso há uma vantagem dupla: obriga os atores a serem estimulados de novo pois o texto que ele acreditava saber não é o mesmo. E dá um outro ritmo à peça vista como filme. E nenhum tchekoviano notou. Um “teatro filmado” não faz o menor sentido. O teatro é o encontro real: isto é o teatro. Se nós o filmamos e o projetamos numa sala ou na televisão, devemos tratá-lo como cinema. É simples assim.
Mas em Vanya on 42nd Street (Tio Vânia em Nova York) de Louis Malle, ali a junção é excelente, sem deixar de parecer teatro.
Mas Vânia é uma obra prima. Louis Malle utilizou um grupo de atores que já tinha trabalhado na coisa por cinco anos com o Andre Gregory. Havia entre eles uma comunidade de vibrações. Eles se conheciam como uma família. Conviviam como as personagens da peça. Peter Brook diz que o filme de Louis Malle é histórico, um marco na história da reflexão sobre o diálogo entre a personagem e o intérprete.
Eu li que você, quando você trabalhava no Mahabharata, fez uma lista de palavras que não poderia utilizar. É um procedimento que utilizou mais vezes?
Toda a palavra carrega consigo uma série de imagens. Se eu digo “casa”, podemos evocar diversas coisas, nem sempre correspondentes ao sentido do texto do Mahabharata. Era preciso, assim, saber quais eram as imagens mundiais – aquelas que atravessam os séculos – e quais as imagens mais particulares, que poderiam causar uma traição profunda à obra original. Se utilizássemos na montagem de Mahabharata uma palavra como “cavaleiro”, seria uma traição. Hoje, ao pensar nessa palavra, vemos um cavaleiro da Idade Média. Se eu digo “nobre”, vemos um nobre do século XVIII. Inconscientemente nós projetamos sentidos, nós reagimos às palavras. A palavra é pronunciada e nós a vemos em imagem, automaticamente. Então eu listei todas as palavras que me pareciam imediatamente interditáveis. Por exemplo, eu hesitei sobre a palavra “profeta”. No Mahabharata há profecias mas achei que a palavra era muito judia, muito bíblica. Outra palavra difícil de se traduzir era inconsciente. Pois o inconsciente existe na Índia…Há uma outra expressão em sânscrito que, se fosse traduzida palavra por palavra, seria “o doce movimento de Atma”. Impossível traduzir a última palavra. Alma, que seria a primeira escolha, contém a idéia de pecado, alude ao universo católico – outra palavra que aparece, encarnação, por exemplo, também era impossível. Agora, como traduzir inconsciente, já que para nós inconsciente significa libido? Nem tudo é sexual na lenda antiga. Pois encontrei num livro antigo uma expressão que é “o coração profundo”. Uma expressão inventada com palavras bem simples. Bem, essa expressão, retirada de um livro francês, me soava muito bem. Quando fui passar para o inglês “deep in the heart” – já surge outra coisa, uma expressão bem conhecida. É impossível usá-la em inglês, era preciso encontrar outra. Encontrei “coeur profond” também num livro de Lévi-Strauss, numa tradução de um texto ameríndio da América do Norte. Este é o segredo de nosso trabalho: procurar o segredo das palavras. As palavras no teatro contém imagens segundo um movimento que não é aquele do romance. Vou dar um exemplo preciso. Em a tempestade de Shakespeare, existe uma frase muito célebre. Próspero diz após um breve espetáculo: “We are such stuff as dreams are made on”. Quer dizer, era um espetáculo ilusório, uma ilusão, os atores desvanecem, tudo desaparece e não há mais nada. Todas as traduções em francês utilizam stuff como matéria (substância): la même matière que les rêves sont faits. Mas se você escuta a frase em inglês, “We are such stuff as dreams are made on” há duas vezes algo como um “uf” – que sugere um sopro de vento. Isto é a genialidade da escrita. Alguém diz alguma coisa e o som da palavra diz ao mesmo tempo. “We are such stuff as dreams are made on”. O vento aparece. Se você não encontrar isso em francês, está perdido. Você repõe o sentido, mas perde a matéria do que Shakespeare está dizendo. Quando eu utilizo a palavra étoffe como stuff, acompanho o mesmo raciocício. Se dissermos “nous sommes de cette étoffe que le rêves sont faits” encontramos o mesmo movimento no interior da palavra, que é um movimento secretíssimo, mas que se não está lá, algo morre.
Quando escreve uma peça, você procura um padrão de palavras para cada personagem, um tipo de escritura?
Sim e não. Existe um exemplo ideal: o filme Les enfants du paradis, que todo mundo conhece, com roteiro de Jacques Prevèrt. Ali cada personagem tem uma linguagem particular, uma popular, outra aristocrática, outra de teatro. Mesmo a personagem de Arletty muda de linguagem, pois ela aparece como aristocrata, mas na segunda parte já não fala mais como na primeira. Cada um tem sua linguagem, mas todos são Prevèrt. É como Shakespeare, cada um fala uma linguagem, mas é tudo Shakespeare. Até certo ponto existem as linguagens particulares, mas em um dado momento é o autor que fala através das personagens. Outro exemplo: Otelo é uma personagem que fala mal. Mas na verdade não fala mal, pois através dele Shakespeare expressa todo o seu gênio. É isso o que há de importante a se saber. Cada autor decide por onde vai.
Existe uma diferença entre a velocidade da narrativa nos diferentes meios, teatro e cinema?
Há algo que se pode constatar na história muito nova do cinema: contamos as histórias hoje da mesma forma que as contávamos nos anos 30 ou 40. Nosso espírito está habituado à linguagem do cinema. Eu me levanto, há uma janela, eu a olho. Um corte. No plano seguinte vemos uma roda. Para to- do mundo fica claro que eu estou olhando para a roda através da janela. A relação direta entre as duas imagens não existe. Já no teatro, a forma narrativa do teatro clássico desapareceu. No século XIX antes de uma cena de ação havia sempre uma outra preparatória, que servia para explicar quem era a personagem envolvida. Isto acabou. Em Shakespeare, porém, a mu- dança de tom, a passagem de um momento de graça a um momento sério, era já muito rápida. Dentro de uma mesma frase ocorrem diversos momentos e o público os percebe, o que é extraordinário. Mas isso se padronizou de modo mais lento até o século XIX, e depois foi revisto. De fato, hoje, existe uma aceleração no modo de produção das imagens. A influência atual do zapping é ambígua: obriga o espírito em alguns segundos a tentar entender o que se passa. E não apenas a perguntar o que é, mas também se perguntar se isso é bom. O que vemos hoje no teatro e no cinema são diversas respostas a essa aceleração. Alguns artistas vão no mesmo sentido, outros se opõem. Em Tarkovski, por exemplo, há uma imagem quase imóvel, ou que muda muito pouco, e podemos perceber essa imagem em toda a sua sutileza, em todos os níveis, em todos os seus elementos que nos escapariam se nós a víssemos muito rapidamente.
Como você vê o uso de tecnologia no teatro? Essa tentativa de trazer para dentro da cena elementos da cultura midiática?
O que você chama de tecnologia? De um modo geral, ela sempre esteve presente no teatro. Já no século XVII, o palco utilizava toda a maquinaria disponível do tempo. A questão pode ser posta de outra forma: se a presença humana desaparecesse então poderíamos perguntar se isso ainda seria teatro? Ou seria apenas uma projeção de hologramas. Será que um espetáculo de marionetes é teatro? Na verdade, não sei responder. O teatro me parece o momento em que há pessoas vivas….se há tecnologia ou não, é um debate crítico… Posso dizer que gosto do teatro de modo puro, mas não do teatro puro. A pureza é um veneno fatal para diversas condutas humanas, inclusive ao teatro.
Você acha que os debates críticos ajudam a estabelecer os padrões dominantes nas artes de um tempo?
É difícil dizer, mas se olharmos para a história da literatura francesa, não sobrou um único poema entre Racine e os românticos que seja digno de memória. As pessoas criaram milhões de versos e nenhum bom poema. Porque eles continuavam aplicando as regras poéticas do século anterior, e julgavam fazer poesia. A prova é que hoje não há um único desses poemas que os franceses ainda leiam com gosto. É uma questão importante: é muito comum que continuemos a fazer peças de teatro, filmes, romances sem nos darmos conta de que já perdemos o essencial, o movimento. Fazemos filmes sem fazer bom cinema. As eleições de uma época, quanto a isso, podem ser medíocres. Se tomarmos o critério do valor de mercado como forma de se reconhecer um poeta, quem aparece como o grande poeta do século XVIII? Jean-Baptiste Rousseau. Não estou falando de Jean-Jacques. Esse outro Rousseau está totalmente esquecido hoje.
Você, como escritor, parece trabalhar mais com estruturas clássicas da narrativa, no sentido de uma procurar formas de uma dramática teleológica. Isso é verdade?
Sem sugerir nenhuma exclusão de outras experiências, me parece que o teatro e o cinema acolhem bem a narração desde que ela não se oponha por completo à narração dramática. Não tenho problema nenhum com o desenvolvimento a partir de conflitos e me parece que Shakespeare e Dostoievski nunca se incomodaram com a narração. Não há nenhuma razão para não seguirmos contando histórias. Todos grandes artistas do teatro contaram, de diferentes maneiras. É o cerne do meu trabalho com Peter Brook e outros. Muitas vezes nós nos di- vertimos em inverter a narração. Em Le Fantôme de la liberté de Buñuel, pode-se dizer que o que se conta é o contrário de uma narração. Isso é feito para vermos se do outro lado da narração não há algo de interessante. E muitas vezes há coisas bastante interessantes. Por outro lado, nos cem anos de cinema, toda tentativa de se abandonar de vez a narrativa dramática não foram muito longe. É verdade que um cinema lírico, poético como um poema surrealista, é possível, sobretudo em curtas metragens de dez ou doze minutos, ou outros experimentos foram tentados na televisão. Mas é um território ainda pouco explorado. E por que? Talvez pela mesma razão que o cinema não penetrou muito no domínio do ensaio filosófico. É um campo da teoria, melhor percorrido pela leitura…
E os filmes de Godard?
Os filmes de Godard, talvez, mas seu trabalho parece mais o de um jornalista inspirado pelos grandes autores. É claro, há boas tentativas, mas mesmo assim é algo sempre muito difícil. Não quer dizer que não deva ser tentado. Eu mesmo estou escrevendo um filme para a televisão sobre filosofia, inspirado na vida de Sócrates. Pode ser que pareça mais um diálogo filosófico, sem situação dramática. Não farei nenhuma concessão e quero saber se a televisão pode produzi-lo ou não. Mas eu sei que nessa experiência estou fazendo o papel de provocador. Vocês viram La Controverse de Valladolid? É um filme sobre a descoberta da América que é de pura discussão teológica, e que se passa em 1550.
Por essa confiança na narração, você nunca foi acusado de estar na contramão das vanguardas?
A vanguarda é algo de bastante antigo. Mas qual será o problema que as pessoas têm com a narração? O fato é que é bastante difícil contar uma história. Ainda mais quando se quer fazer algo mais do que uma história. Criar palavras soltas, um poema difuso, me parece mais fácil. Tenho, pessoalmente, mais interesse na relação entre personagens, relação que se faz através das palavras. Mas isso não é uma regra geral. Todas as experiências artísticas são importantes. Digo isso porque posso detestar uma peça que conta com clareza uma história, e adorar uma peça teórica ou política.