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diálogos das artes Latão e Brecht

Dogville: das vantagens de usar Brecht

Não é só através do tema que Dogville, filme do diretor Lars Von Trier, se aproxima da obra de Bertolt Brecht. De fato, a canção Jenny e os Piratas, trecho da Ópera de Três Vinténs, inspira o argumento do filme, cedendo-lhe a imagem da moça explorada por toda a cidade e a de uma vingança de aniquilação. Mas o parentesco de assunto é distante, comparável ao da releitura feita por Chico Buarque em sua Geni e o Zepellin. São casos em que o assunto brechtiano serve a outros propósitos.

Em Dogville, ao contrário do que se tem dito, o que está em jogo não é uma imagem dos Estados Unidos, e sim a forma de representação norte-americana do mundo, ao menos como foi consagrada por Hollywood, e que corresponde a uma reelaboração dos padrões europeus do drama burguês do século 19, em sua hipertrofia do individualismo moralizante.

Para que não haja dúvidas sobre o núcleo do assunto, somos introduzidos no filme pela caminhada da personagem Tom, um jovem idealista com pretensões filosóficas que organiza na paróquia de sua pequena cidade uma série de reuniões sobre “reforço moral”. Quando por acidente ele encontra uma fugitiva à procura de ajuda, Graça, tem à mão a “ilustração” adequada para seu discurso.

Na tensão crescente entre a representação moralizadora defendida por ele e a realidade vivida, as nove partes de Dogville mostram o processo de exploração consentida de Graça, em que ela tenta levar adiante o plano de integração social de Tom até o limite da dor: oferece sua ajuda aos habitantes, torna-se geradora de coisas supérfluas, passa a ser disputada como mão-de-obra barata, até que sua vida fica tão cara que lhe resta entregar o corpo como última moeda de troca. Seu vínculo idealista com Tom a mantém presa às relações perversas, fetichizadas por ela própria nas sete estatuetas (correspondentes às sete casas da cidade) que coleciona e que mais tarde serão destruídas junto com a sua liberdade física.

A pergunta crítica de Dogville aparece no penúltimo ato: “Não vale a pena comprometer somente um dos seus ideais, só um pouco, para aliviar a minha dor?”. O sentido da frase -que depende de quem a pronuncia, em que momento- volta a ressoar no massacre final, quando a violência repugnante das mortes põe em dúvida qualquer possível prazer com a vingança.

Mais do que pelo tema, Dogville se aproxima do teatro épico (de Brecht) pelo modo “distanciado” de narrar, que estimula o espectador a sair da ficção e completar a história com a realidade, procedimento sugerido pelo perturbador corte para as fotografias dos créditos, em que a miséria sem paternalismo das fotos de Jacob Holdt é contraposta à música de ritmo alegre de David Bowie.

Brecht também se interessava pelo imaginário norte-americano, pelos gângsters de Chicago e pelas lutas de boxe. Não sei se pelos filmes de terror, como Lars von Trier. Reconhecia ali um limiar simbólico em que a ética e a estética da sociedade de consumo aproximam o novo do arcaico. Essa paisagem moderna de truculência e vitalidade era despedaçada em sua poética para que a conformação ideológica ficasse visível.

Foi por isso que fez de seu teatro uma espécie de armadilha moral, um tribunal impossível, que desconcertava qualquer expectativa de identificação com o caráter das personagens, de comoção com as paixões dos protagonistas. Sua estratégia era sugerir perguntas morais que não podem ser respondidas sem uma reflexão sociopolítica. Criava no espectador o sentimento da ausência, de que faltava alguma coisa ao qual estava habituado. E o que faltava era a praticabilidade de certos ideais burgueses.

A qualidade cinematográfica de Dogville deve muito ao fato de que o paradoxo moral gerado no plano da fábula -através de uma “redução ao absurdo” da lógica da situação- aparece como problema estético na encenação cinematográfica.

O “sistema teórico” de Tom é um análogo do sistema de filmagem exibido por Trier dentro do filme. Aquilo que surge como assunto, na imagem do “cego que não quer ver” e decide permanecer de cortinas fechadas idealizando uma luz imaginária, encontra correspondência formal na tensão entre os modos de ver: de um lado a paródia do naturalismo das atuações e da câmera (que procuram uma dramaticidade convencional), do outro o antinaturalismo do cenário pintado no chão, amparado pela narração e construção poética das falas.

A incompatibilidade de registros, o vai-e-vem entre o conflito fechado e a materialidade dos espaços torna a cena descontínua, quebrada e permite que os extremos sejam tocados: no máximo da vitimização pelo estupro, a câmera se distancia e revela a artificialidade da composição dos atores diante do espaço, suspendendo a emoção. Trier nos leva a suspeitar de vários aspectos do filme, inclusive da utilização de uma estrela consagrada.

Estabelece-se um jogo cênico autocrítico, com regras mais ou menos expostas, aparentado àquele que Paulo Emílio percebeu no filme A Chinesa, de Godard, quando escreveu que “o moderno espetáculo teatral nos obriga cada vez mais a refletir sobre sua natureza, pois deliberadamente se desagrega diante de nossos olhos. O teatro não pretende mais enganar ninguém. É através do desengano que procura nos atingir”.

A técnica épica da incompletude fundamental -que nada tem a ver com precariedade artística, mas sim com capacidade de mobilizar a atuação crítica do público através da geração de espaços de intervenção- ainda é um osso duro de roer para a crítica conservadora, que sempre reage aos gritos, reclamando da falta de “complexidade” das personagens, ou acusando a natureza esquemática da montagem.

Como pensador dialético, Brecht dizia que uma obra de arte dura o tempo em que exige trabalho, existe enquanto está para ruir, enquanto requer a co-fabulação do espectador.

Dogville deve ser comemorado como uma retomada da experimentação formal e do conceito de obra-ensaio no cinema, como negação do plano preso ao campo do visível e do colorido homogeneizador que falsifica o “prisma brilhante do mundo”. Talvez enfático demais em algumas de suas explicações, talvez íntimo demais dos valores que nega, supera qualquer defeito ao estimular o espectador a uma atitude produtiva. Numa época em que o maior protagonista do cinema comercial é o virtuosismo técnico do orçamento, Dogville se serve dos avanços da tecnologia para pôr o ato de produzir em primeiro plano, à frente dos meios de produção.

(Publicado no site Tropico quando o filme foi lançado no Brasil, http://p.php.uol.com.br/tropico/html/index.shl.)

Por Sérgio de Carvalho

Sérgio de Carvalho é dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, grupo teatral de São Paulo, Brasil. É professor livre-docente na Universidade de São Paulo na área de dramaturgia.

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