Em torno do Sr. K, um irônico pensador anti-ideológico, Brecht escreveu dezenas de fragmentos teórico-narrativos. A maioria das Histórias do Senhor Keuner já era conhecida no Brasil: pela tradução de Marcelo Backes editada em formato de bolso no Rio Grande do Sul em 1998 (Unidade Editorial, Prefeitura de Porto Alegre) ou pela pioneira, a de Paulo César Souza, editada em 1989, pela Brasiliense. Revista para a editora 34, é esta tradução que agora se reimprime com a inclusão de 15 fragmentos recém descobertos, provenientes da chamada “Pasta de Zurique”, do espólio da documentarista suíça Mertens-Bartozzi.
“A melhor maneira de uma pessoa aprender é ela própria fazer a coisa”, nos diz a estética teatral brechtiana. A incompletude do palco é uma ferramenta de co-responsabilização do público. É também essa a voz literária de Keuner, um crítico alegre, comedor de pudins, que aparece em textos curtos epigramáticos como um pensador que pratica o desmonte das idéias dominantes fazendo-as colidir com a prática real. O inacabamento programático de suas palavras e gestos está no cerne de sua postura dialética.
Numa aparente contradição com sua atitude clássica Brecht queria que seu teatro transmitisse a sensação de que “falta alguma coisa”. A ausência da emoção conclusiva aguça o trabalho dos sentidos e convida o espectador a investigar razões exteriores à ficção, que provém das forças sociais.
Nos escritos do Sr. Keuner, sujeito e objeto da crítica se alternam numa confusão chã que beira a palhaçada, à maneira do sufi Nasrudin. O divertimento desse João Ninguém-Keuner é gerar um curto-circuito na tendência idealista do leitor, sendo esta, paradoxalmente, estimulada pelo questionamento do caso. A evidência das idéias comuns é assim estranhada e negada. É o leitor quem produz suas lições.
Os conceitos reguladores centrais dos atos na sociedade moderna – Propriedade, Indivíduo, Nação, Deus, Bondade, Honestidade etc. – são enunciados de modo a que a resposta genérica convencional seja ridicularizada junto com a própria pergunta. Para Keuner, o caráter do sujeito “corrupto” não pode ser entendido sem a reflexão sobre “a arte de não corromper”, as opiniões estúpidas devem nos levar à crítica das vivências estúpidas, a estética deve ser deduzida das necessidades da luta e o desejo mais legítimo do ponto de vista moral é o de existir.
Se o gesto irracional tem sempre algo de idealista, a crítica de Keuner também não leva a sério a teoria crítica sem utilidade prática. Interessado no debate sobre a mercantilização da vida, fenômeno típico de uma “época antiga” em que “devem ter existido muitas pessoas que eram vistas apenas como objeto de uso”, Keuner repudia junto com o processo de coisificação dos homens a gritaria filosófica sobre “o caráter incorrigível” dos jornais ou sobre canções da moda que determinam a vida em situações decisivas. Os jornais são corrigíveis, não o Homem como abstração. E “se tivéssemos uma boa vida, não precisaríamos realmente de conselhos muito sábios”.
Seu comportamento por vezes lembra o de Brecht quando sugeriu a Theodor Adorno “que atacasse o capitalismo por ter acabado com o hábito de pechinchar. Foi isso que eliminou toda a imaginação, todo o humor, todo o embate divertido, em suma toda a graça que havia no comércio”.
Nas histórias do Sr. Keuner, qualquer teoria que engendre a passividade – mesmo a mais verdadeira – é rejeitada como contribuição à naturalização, como metafisicante, incapaz de terrenalizar a experiência e ajudar os homens na tarefa de produzir seu destino. De modo sinuoso, Keuner desconfia dos que desconfiam da práxis. Como nas principais criações de Brecht, ele habita uma zona simbólica em que a reificação não é absoluta, em que existe uma medida humana do “não”, em que é possível a construção de gestos coletivos de mudança para melhor, a partir de relações não submersas no ciclo mercantil da troca nem afastadas das disputas pelas conquistas produtivas. “Só aparentemente as coisas já não dependem das nossas decisões; na realidade, as decisões tornaram-se simplesmente mais difíceis de tomar” escreveu certa vez Brecht contrariando a idéia de que “o sujeito está liquidado com ossos e tudo” e que as causas das tragédias são muito abstratas para que possam ser nomeadas. É na reinvenção do conhecimento divertido e no fortalecimento – pelo movimento – da capacidade da ação coletiva que Brecht continua a dar sentido à tese de Marx de que o pensamento que vale a pena é o que intervém na prática e se deixa criticar por ela. A boa crítica, segundo Keuner-Brecht, é a que reconhece sua incompletude fundamental: aquela que produz para conhecer.
(Texto publicado na Folha de S. Paulo, quando do lançamento do livro em julho de 2006.)