Boa noite. Agradeço muito o convite da Ana e do Milaré para estar aqui. Minha fala será breve. Todas as peças que escrevi até hoje foram baseadas no que se costuma chamar de processo colaborativo, aquele em que o material dramatúrgico, as personagens e até muitas relações ficcionais e estéticas surgem na sala de ensaio, a partir da prática das improvisações dos atores e dos estudos do grupo como um todo em torno de um tema ou projeto formal.
Quem já participou de processos desse tipo sabe que envolvem grande dificuldade e que nem sempre resultam numa boa escrita cênica. Processos colaborativos exigem de todos os participantes uma grande capacidade de trabalhar no escuro. Eu sou um fervoroso defensor desse tipo de processo, mas ao mesmo tempo sei reconhecer suas enormes dificuldades. Se o teatro é ainda (ao menos na escala não industrial em que é produzido no Brasil) uma forma artística em que o trabalho intelectual e o trabalho braçal podem estar em pé de igualdade, se o teatro oferece às vezes uma possibilidade desalienante para as pessoas, se o teatro tem a potência, herdada de sua condição artesanal, de evitar especializações muito rígidas, oferecendo aos atores, por exemplo, a chance de se tornarem donos do conjunto da história (e não apenas executar ordens de um diretor, não apenas decorar falas e marcas inventadas pelos outros), nem sempre essa potência desalienante se realiza. Existem muitos processos colaborativos autoritários, trabalhos sem igualdade criativa, em que as pessoas são postas a correr atrás das idéias vagas de um encenador, sem consciência dos motivos e das finalidades do todo, sem saber o que está acontecendo exatamente. A primeira questão fundamental do processo colaborativo é, portanto, relativa ao modo de trabalho: ele só faz sentido como ferramenta de conscientização, desalienação e coletivização.
Uma segunda questão importante se liga às técnicas de coletivização da escrita. Num processo colaborativo surgem ideias e formas que jamais surgiriam na escrita isolada, a não ser nas situações em que o escritor se vale de muitos “colaboradores” do passado ou de presente. Essa multiplicação de pontos de vista costuma ajudar o teatro desde que seja traduzida numa perspectiva crítica comum – o que é tarefa do dramaturgo ou dramaturgista estabelecer. Não é incomum que peças escritas desse modo sejam colchas de retalhos, amontoados de sketches ou de depoimentos pessoais ou feitas de cenas monológicas alinhavadas ao acaso, justapostas segundo um pretexto arbitrário. A verdadeira coletivização da cena aparece quando os esforços coincidem, quando uma unidade concreta se cria, quando se acumulam experiências num mesmo sentido de diálogo com o público. Em suma, quando existe uma intervenção crítica da dramaturgia (que só será traumática se surgir ex-machina, de fora do processo) capaz de realizar um novo sentido. Quanto a isso é preciso ter clareza que um bom texto não pode ser produzido inteiramente no calor da sala de ensaio, ainda que o material para um bom texto o possa. É como se um processo colaborativo tivesse que passar por pelos menos duas etapas antes que o roteiro se estabeleça, em condições de ser redefinido segundo os caminhos do espetáculo: a primeira de geração de materiais e caminhos formais, a segunda de crítica e reinvenção desses materiais numa nova perspectiva de escrita (em que a fase anterior é negada e superada). É evidente que essas etapas podem não ser sucessivas, e que a própria geração de material ganha intensidade quando pautada por um propósito crítico.
Tratarei muito rapidamente de alguns aspectos da primeira fase, a de geração de materiais durante a pesquisa temática e formal. São inúmeros os caminhos que podem ser experimentados. Na minha experiência de dramaturgo-em-processo, todo o material teórico e vivencial recolhido em livros, entrevistas, imagens, conversas, jornais, palestras etc. sempre foi convertido, na sala de ensaio, em estímulo para a improvisação dos atores. A improvisação é, portanto, o principal meio pelo qual os atores se apropriam da pesquisa e pelo qual o dramaturgo trava conhecimento com um entendimento prático do material. Existem, porém, muitas formas de se improvisar. Aí surge uma questão: qual é o tipo de improvisão que vai ser feita para que a peça (diante de seu projeto crítico) seja gerada? Eu diria que é tarefa de um bom “dramaturgo colaborativo” sugerir técnicas de improviso segundo a linha geral da pesquisa. É um debate muito amplo para ser discutido aqui, mas em síntese, é possível dizer que a natureza do improviso depende do conceito de ação física que está sendo utilizado na sala de ensaio. Improvisação, processo colaborativo e ação física são expressões que mudam de sentido conforme quem as usa, e um dramaturgo interessado em viabilizar e estimular as experiências produtivas do grupo precisa entrar nesse debate.
Na história teatral do século XX, todos os grandes formuladores do conceito de ação física têm que dialogar com Stanislavski. Se você compreender a ação física na perspectiva stanislavskiana, tal como seus discípulos Toporkov, Gorchakov e Maria Knebel explicaram nos seus livros, você tem uma abordagem da improvisação baseada nas tarefas corporais gerada pela relação entre pessoas. O conceito de ação física se liga, em Stanislavski, à capacidade de um ator não atuar para expressar uma emoção genérica, mas a uma técnica de entendimento corporal dos objetivos (físico e subjetivos) e sua concretização na relação com o outro. Cada relação psico-física exige um cumprimento de detalhadas tarefas, determinadas pela situação geral das personagens. Stanislavski inventou isso ao perceber que a emoção não é controlável, mas sim a ação física relacional que a gera. Ora, o improviso em base stanislavkiana, ainda que possa ter outros usos, serve principalmente a uma psico-lógica realista da personagem concebida como indivíduo. Sua ênfase está na inter-subjetividade. Quando Grotowski, e depois o seu discípulo Eugênio Barba, conceituam ação física, são em termos completamente diferentes, ainda que eles se amparem em Stanislavski, sobretudo na leitura de Toporkov. É uma outra abordagem de teatro, com outro interesse poético, em que a ênfase já não é relacional, mas intra-subjetiva ou performática. Pode ser pulsional, no caso do Grotowski, um artista fascinado pela vibração psicofísica do performer em situação estética, que o leva a outros níveis de consciência, ou ligada à tensionalidade do corpo do ator, no caso do Barba, que compõe a cena com base no atrito de diversas partituras corporais, sonoras, rítmicas segundo uma técnica de montagem de partituras interpretativas. Vocês podem me dizer assim “mas são questões muito técnicas da cena que talvez não venham ao caso” para um escritor de teatro. Eu diria que a compreensão disso evita muita energia gasta à toa num processo colaborativo. Em algum nível o projeto poético (mais ou menos realista, mais ou menos subjetivo, mais ou menos performático etc.) condiciona o trabalho técnico. Ao escrever palavra para gestos criados em improvisos é preciso considerar o vínculo entre aquela forma de ação física e o estilo ou forma do texto em relação com o universo poético do todo. A etapa de geração de material será tanto mais produtiva quanto maior clareza houver nos critérios de avaliação das tentativas e dos erros.
Na Companhia do Latão, por exemplo, nós praticamos uma espécie de improviso que busca o detalhamento realista da cena com base na sua exposição dialética. Eu não diria que é plenamente stanislavskiano porque a ênfase na inter-subjetividade pode variar conforme a cena em debate. Na verdade, o teatro de Brecht, assim como todo bom teatro crítico posterior ao modernismo, exige um redimensionamento da noção de sujeito. A dramaturgia nas peças do Latão lida com limites em que a subjetividade é condicionada por imposições extra-individuais. Utilizamos, assim, uma prática improvisacional que combina Stanislavski e Brecht numa versão própria, que exige do ator atitude de intérprete realista e de narrador simultaneamente. Ela nos serve a representar cenas em que os homens aparecem coisificados, sem que o fatalismo se instaure, abertas à uma exposição das causalidades. É preciso do ator, portanto, no teatro épico-dialético, um tipo de trânsito entre um realismo detalhado do ponto de vista psico-físico e uma compreensão narrativa das determinações sociais e económicas do caso. Isso se faz com um aprendizado conjunto das contradições objetivas que se manifestam nas contradições subjetivas e uma consequente pesquisa formal.
Dito de outro jeito, o processo de geração de materiais, na Companhia do Latão, já está imbricado com a reflexão poética: nosso uso da ação física stanislavskiana é dialetizado pela crítica das condições materiais da situação da personagem. Assim, quando é chegada a hora de dar uma reorientação crítica aos materiais, aquela hora difícil de definir personagens, funções, caracteres, organizar o tempo da ação, numa dialética constante entre o abstrato e o concreto, entre o sentido geral e a imprecisão viva e a partículo indefinível, como proceder? A única resposta possível é que o processo se orienta a partir dos seu temas (com caminhos formais decorrentes do que foi acumulado pelo grupo). A questão técnica sobre se uma cena vai ser fragmentária, vai ter um desenvolvimento clássico com uma peripécia dramática tradicional ou será lírica depende do sentido geral assumido pelo projeto em relação a seus participantes.
Um exemplo. No ano 2000, a Companhia do Latão resolveu estudar o tema das relações de trabalho contemporâneas, numa pesquisa cénica que resultou em A Comédia do Trabalho. O projeto formal – de praticar uma comicidade popular – só saiu do nível do cliché quando começou, de fato, a se associar a um recorte do tema e a um entendimento teórico menos superficial de seus aspectos fundamentais. Isso ocorreu no momento em que, após muitas entrevistas e leituras, fomos percebendo o quanto o trabalho precarizado assume novas feições para além da dialética patrão-empregado. Começamos de fato a gerar bons improvisos quando notamos que o capitalismo já não pratica a extração de mais-valia segundo a mesma configuração ideológica do passado, na medida em que as relações de trabalho, após a revolução tecnológica dos anos 80, multiplicaram suas feições violentas e internalizaram na subjetividade diversos conflitos. A peça começou a aparecer quando o campo temático (na verdade uma série de dúvidas comuns) se delinearam: como o mundo do trabalho, que antes organizava agrupamentos e contestação, hoje, assim precarizado, favorece a desorganização coletiva? Por que os indivíduos, tragicamente, se culpabilizam pelo seu destino diante de instituições desmaterializadas? O enquadramento estético gerado pelas perguntas corretas para cada pesquisa artística é que faz a diferença. Como o ator vai trabalhar isso na sala de ensaio? Isso é questão da qual se possa rir? Como um dramaturgo vai se relacionar com essas indagações? A nossa geração de escritores de teatro terá que lidar com problemas nem imaginados pela a tradição dramática ocidental. Nem mesmo aquela tradição formal que considero a mais avançada, o teatro épico-dialético de Brecht, é suficiente para representar a sociedade atual. O trabalho dos melhores dramaturgos modernistas não é suficientes para o estágio de deterioração da vida em que estamos, mas pode nos ensinar grandes caminhos de pesquisa. Se eu quiser representar a vida de hoje como movimento, não como estado, de um modo ativador, passível de transformação, lidando ao mesmo tempo com a reificação dissolvente e com a recusa ao fatalismo, nas condições do capitalismo em sua periferia, terei que considerar o legado formal do passado, de artistas como Brecht, Buenaventura e tantos outros, e estudar as formas da dominação hoje, inclusive aquelas que se manifestam no plano da ideologia, ao qual pertencem as representações. O processo colaborativo é um lugar experimental de contato com a força do grupo em sua capacidade de reinventar sua situação. É essa sua possibilidade útil.
Quando o dramaturgo que se insere num processo colaborativo começa a repensar sua função, quando compreende que pode interferir na estratégia de geração de material tanto quanto no combate formal com esse material, e se utilizar da desalienação gerada por um processo realmente coletivizador, quando um dramaturgo aprende que tendências formais correspondem a tendências ideológicas (coisas que um artista digno do nome precisa sempre criticar para reinventar as formas), ele está se aproximando de um atitude artística nova. São algumas impressões para que possamos debater. Agradeço a atenção de todos.
CONVERSA COM O PÚBLICO
Pergunta: Meu nome é Maria de Souza. Eu trabalho como atriz e atualmente também sou professora de voz. Não aqui. Eu estou há dez anos afastada de São Paulo. Eu estou trabalhando em Salvador. E uma das coisas que eu me perguntei, por exemplo: dessas peças tantas que vocês falaram, eu só assiti à Comédia do Trabalho. E aí eu fico pensando como é que essa dramaturgia, que é tão ligada a essa encenação, a esses atores criando e tudo… como é que ela migra, por exemplo. Como é que ela migra, não só de estado, digamos assim, mas de tempo. Como é que ela entra num processo de escrita histórica. Porque a gente veio aprendendo dramaturgia pelo texto, esses textos dos caras isolados, que escreveram o possível, de certa forma, de ser lido. Mas como é que elas migrariam? Fiquei um pouco curiosa com relação à isso. E mais uma pergunta com relação – essa mais para Sérgio – queria que você falasse um pouco mais dessa crise da potência do indivíduo. Porque recentemente, num debate de sociologia, eu vi uma pessoa falando assim: a gente não tem mais herói. Então a gente está brigando por… ? Qual é a nossa briga essencial como artistas? Só.
SC: A primeira pergunta, eu acho, se liga à autonomia do texto. Em que medida um texto gerado em processo colaborativo sobrevive e pode servir a outras montagens etc. Eu acho que essa é uma questão que tem que ser posta. Porque o tipo de dramaturgia surgida nesse tipo de processo tende – não quer dizer que sempre seja assim – a se transformar naquilo que um roteiro de cinema significa para o filme. O roteiro costuma estar muito vinculado àquele filme que foi feito. O que não impede que um roteiro seja refeito e reinventado por outros encenadores. E uma dramaturgia que raramente é pensada para a duração; ela é pensada para o trabalho imediato, torna-se secundário que ela dure. Agora, eu acho que os trabalhos que duram são aqueles que têm consistência literária, que podem ser lidos, que não dependem da explicação da cena, ou que, bastando uma rubrica que traduza as intenções da cena, se complete.
Quanto à pergunta sobre a questão do indivíduo, posso colaborar com algumas idéias. A questão esta no nascimento do teatro moderno, no Naturalismo, quando se olha a vida mais de perto. Foi o que os naturalistas fizeram na virada do século XIX. Por que? Eles começaram a tentar representar no palco a vida como ela é. A fatia de vida, de Jean Jullien. Isso é sempre uma abstração, porque “a vida como ela é” sempre depende do modo como eu olho a vida. O relato de uma pessoa que vive na periferia depende do enquadramento formal que ela tenha sobre aquilo. E isso pode ser trabalhado de muitas formas mais ou menos realistas, pode haver distancia entre matéria e forma a ponto, inclusive, de contarmos a realidade como uma parábola. Talvez seja uma forma boa, inclusive, de trabalhar o material naturalístico. Mas o que eu estou querendo dizer é o seguinte: quando o Naturalismo, no final do século XIX, percebeu que a vida já não vive do mesmo jeito com que aparece no romance convencional e no teatro; quando percebeu que as relações sociais já não dependem tanto da vontade individual; que a nossa vida é mais determinada, coisificada e brutalizada do que parece, trouxe a representação um problema relativo não só a vida, mas ao modo de representar a vida. O drama tradicional se baseia no diálogo, na subjetividade projetada para o outro. É a partir da minha vontade autoconsciente que eu projeto na relação com outro alguma coisa. A partir desse embate se configura o que se costuma chamar de “protagonista”, “antagonista”. A partir de um conflito de ordem intersubjetiva se estabelece o desenvolvimento de um drama. A questão nova e mostrar que o individuo não exerce mais a vontade, não porque ela esta reprimida pelo velho regime, mas porque a própria subjetividade esta em risco, condicionada, esmagada num mundo em que o projeto liberal se da como farsa. O Büchner, muito antes do Naturalismo, tentou fazer isso no Woyzeck. Ele pega uma personagem que, por seis meses, come ervilha. Foi submetido como uma cobaia de laboratório. Depois de seis meses comendo ervilha, o sujeito fica um imbecil com lapsos de subjetividade. E vai assassinar a mulher dele. Nele a vida já não vive do modo como o mundo liberal prometeu. O mundo liberal nos prometeu igualdade, exercício da vontade livre, enfim, democracia. E a dramaturgia do final do século XIX começa a descobrir que as promessas do mundo liberal não correspondem exatamente ao cotidiano de todos. Talvez de um ou outro. Tanto que surge essa percepção; quer dizer, nem todas as pessoas podem ter vida interior. Algumas pessoas ainda têm acesso a isso. Corria até uma piada no final do século XIX: para um sujeito ter vida interior num romance francês, tem que ter uma renda de 100 mil francos por ano. Era uma observação do século XIX que não destoa muito dos nossos problemas de representar a vida hoje. Por que? Porque nem todo mundo está livre da pura sobrevivência. Essa é uma questão com que temos de lidar, porque o tipo de personagem, o grau de vontade livre e auto-consciência de uma personagem, o que a move como indivíduo dramático, tem que ser posto sob suspeita em determinadas condições. Ou segundo determinados interesses de representação. Eu não estou dizendo que a gente deva representar só os homens-coisa. E nem que a boa forma disso é a naturalista. Por exemplo, o expressionismo tratou desse tema usando imagens do circo. Vejam o número de atrações circenses: a mulher barbada é uma mulher-coisa. O homem-macaco está coisificado. E a peça vem como uma montagem de atrações grotescas. Porque é um pouco a situação da crise do indivíduo, percebida não só como realidade, mas diante da promessa burguesa do exercício da vontade livre.
Num país de condição periférica como o Brasil isso é um problema constitutivo. Porque aqui a promessa liberal não se pôs no campo da sociabilidade. Na Europa e Estados Unidos ela se põe como promessa jurídica; você acredita no campo do Direito, que vai resolver a querela entre indivíduos, mas na prática não é bem assim. Aqui, nem no campo do Direito, nem no campo do universo simbólico, o que deixa a nossa representação mais problemática. Você vê, o Sábato Magaldi, nos anos 50, observou uma coisa nas peças brasileiras. Ele não deu a explicação do motivo, mas ele notou o problema ao dizer – reparem como peça brasileira sempre acaba mal. Não é que acaba triste. Acaba mal acabada. O dramaturgo escreve pior no final. Sabe por que ele observou isso? A minha explicação é: porque o dramaturgo brasileiro sempre pega matéria desconjuntada, fragmentos de vida, e no final tenta dar uma solução positiva dramática, ou dar um desfecho que não foi preparado, ou criar uma solução teleológica que não foi construída…
Rubens Rewald: Ou geralmente vai para a farsa…
SC: Ou cria uma resolução externa ao problema…
Rubens Rewald: Porque é uma grande… não vou falar problema, mas é… às vezes não consegue ir no drama até o final.
SC: Mas a questão importante é – aquela matéria com a qual ele trabalhou nunca foi dramática. Se você olhar uma peça como O Homem e o Cavalo, do Oswald de Andrade, é um grande texto. Ele começa com gozação atrás de gozação. Tem uns doze quadros. No primeiro tem umas senhoras no céu costurando; São Pedro está lá, um cantor de ópera, uma espaçonave caída, cheio de coisas satíricas, ridículas, muito bem escritas. É cheia de preconceitos, mas é muito viva, a peça. E ela vai muito bem num regime negativo. De repente, Oswald quer deixar a peça positiva, para fazer o elogio do socialismo. Aí a peça começa a desandar. Ele começa a criar uma estrutura positiva, as pessoas vêm dar lição para as outras, ela começa a acontecer no plano da fala, e não no plano da ação. Antes, os problemas estavam no plano da ação; depois, eles surgem como discurso. Então, tem um rebaixamento. Não é que a peça estraga de vez, mas ela decresce de qualidade técnica. No fundo é falta de atenção para a nossa matéria rarefeita. E a nossa matéria rarefeita não é porque somos atrasados. É que o capitalismo mundial avançou muito aqui e deixou essa matéria rarefeita sem os freios da sociabilidade burguesa, sem os freios da ética burguesa, mentirosos também na origem. Porque aqui a nossa burguesia nunca assumiu a sua tarefa revolucionária de romper com o patrimonialismo, com o antigo regime, de vez e utilizou o discurso liberal para referendar seu conservadorismo, como mostra Roberto Schwarz.
(Trecho de debate ocorrido no Centro Cultural São Paulo, no Seminário Interações, Interferências e Transformações: a prática da dramaturgia, na mesa “Processos dramatúrgicos: uma rede em construção.” Esta fala foi mais tarde transformada num texto que integra o volume Introdução ao Teatro Dialético, Expressão Popular, 2008. Há uma versão desse encontro reunida em https://www.yumpu.com/pt/document/view/24580656/clique-aqui-para-download-centro-cultural-sao-paulo)