Este estudo de Paula Autran dá continuidade a uma pesquisa realizada na Universidade de São Paulo em torno do trabalho pedagógico de Augusto Boal na área de dramaturgia.
Se no mestrado ela procurou descrever os procedimentos do lendário Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, grupo de estudos que Boal coordenou no fim dos anos 1950, e que visava estimular a escrita de peças politizadas sobre o Brasil, no doutoramento ela investigou uma segunda frente da mesma tarefa, ocorrida no âmbito da Escola de Arte Dramática, onde Boal trabalhou como professor convidado.
Em ambos os trabalhos há uma sondagem dos vestígios no intuito de conhecer estratégias daquela pedagogia que se mostrou tão influente e foi capaz de animar uma geração de artistas a escrever para o teatro. Espalhados pelas obras, pelos depoimentos contraditórios dos ex-alunos, pelas anotações esparsas, esses vestígios, entretanto, são incompreensíveis sem a recuperação da atitude que os atravessava e lhes dava sentido.
Talvez seja essa a observação mais importante de seu mestrado sobre o Seminário de Dramaturgia: a ênfase não estava no exercício das técnicas de “playwriting” dramático, que Boal conheceu nos Estados Unidos e transmitiu aos jovens atores do Arena. O que estava em jogo – como ferramenta pedagógica – era a descoberta de uma postura experimental, coletivizada e autocrítica movida pelos temas da luta social naquele momento histórico. Foi o ambiente de intercâmbios “laboratoriais” que permitiu a artistas como Chico de Assis, Guarnieri, Vianinha, Benedito Ruy Barbosa e Edy Lima se tornarem dramaturgos sensíveis a uma nova representação social brasileira. Em mais de uma ocasião, Boal registrou que não havia ali nenhuma receita ou formulário para a escrita de peças, e sim a “procura de uma pesquisa”.
É inegável, entretanto, que havia uma tendência poética dominante associada àquele modo de estruturação de peças, algo que parecia estar na cabeça de Boal e de seus pares, ainda que tenha se manifestado em formas diversas. É justamente tal aspecto que ganha novos contornos no estudo de doutoramento de Paula Chagas, realizado à partir da anotações da EAD e das reflexões dramáticas posteriores contidas no livro O Teatro do Oprimido de Boal.
Uma estudante na época, a dramaturga Renata Pallottini, dizia ter aprendido com Boal que uma peça se desenvolve num processo de interações dialéticas. Em seus livros sobre o tema, registra que a “lei da ação dramática” correspondia à “lei da variação quantitativa”, de modo a que a evolução dramática, para seu professor, devia ser compreendida nos termos de uma “lógica dialética”.
Outro discípulo, que se tornou também grande dramaturgo de teatro e televisão, Lauro César Muniz, me explicou o modo de estruturar a cena praticado por sua geração mais ou menos nos seguintes termos: “Num primeiro nível, as contradições gerais surgem entre A e B. Duas personagens, ou dois grupos de personagens se põem diante de um problema comum. Não se trata só do conflito de vontades opostas. A e B estão numa unidade contraditória, em interação problemática, que surge na medida em que a interação não é só externa: existem também contradições internas de lado a lado. A figura A não é uma identidade fechada: trava uma luta interna que dificulta sua ação com B, e vice-versa. Há intensificação, aumento quantitativo do problema. A cena e a peça correspondem a esse processo de intensificação, até o momento em que a quantidade provoca uma mudança de qualidade na relação: a variação qualitativa.” Boal dizia que a asso- ciação entre Drama e Dialética, à procura de supostas leis universais, traduzia também uma prática stanislavskiana: “O conflito de vontades opostas desenvolve-se quantitativa e qualitativamente dentro de uma estrutura conflitual interdependente. Assim, Stanislavski, foi posto dentro de um sistema.”
É preciso entender, portanto, que o modelo poético dos seminário e aulas tendia a considerar a dramaturgia do ângulo de um gênero específico, o Drama moderno, em que fazem sentido as noções de vontade, contra-vontade, consciência, caráter individual, mas sem o cuidado de historicizá-las
Os estudos de Paula Autran buscam discutir essas lições imprecisas sem desconsiderar, entretanto, sua força prática. Boal, em suas aulas, explicava os pensadores do teatro europeu de modo parcial porque tinha propósitos em vista. É assim que sua leitura de Aristóteles tendia a “dramatizar” os conceitos de ethos (caráter) e dianoia (pensamento), despindo-os dos aspectos transcendentais considerados pelo pensador grego, no mesmo compasso em que não dava atenção ao debate sobre a primazia do mito (composição da ação trágica). Confundia as pressões do dever antigo e os excessos maníacos do herói, fundamentos do erro trágico (que vêm do passado para o presente), com as motivações individualizadas de personagens cindidas nas hesitações do livre-arbítrio.
Aproximava-se, nesse sentido, de Hegel, a maior de suas referências nos cursos. Ao lado dele, mostrava aos alunos que a dialética começa onde o dualismo termina, sendo seu fundamento a contradição. Numa anotação de 1963, registra: “Dialética das emoções, exemplo de Romeu dialético: ama Julieta, porém esse amor cria seu próprio desamor.” Não se trata mais de uma vontade e sua contra- vontade, e sim de um movimento subjetivo que engendra seu contrário.
Nunca compreendi a ênfase dramática no pensamento teatral de Augusto Boal. Talvez se devesse ao fato do país estar saturado de sentimento histórico e social, e ter descoberto há pouco tempo a importância da ação politicamente consciente, na contramão de uma história anterior de anulação da autonomia. Mas o fato é que o novo Drama brasileiro só poderia ser uma forma em crise, com fissuras, contraditória. Teria que ocorrer fora dos cômodos da família, nos campos abertos em que lutavam o país velho e o novo. Assim como Hegel, Boal parecia evitar a “atividade nadificante” que o movimento das auto-negações enseja, preferindo manter, dentro da cena, a esperança nas ações individuais, numa dialética positivada.
O diálogo parcial que manteve com as pesquisas do teatro épico tem relações com isso: a complexidade estética produzida por Brecht é da ordem da negatividade. Classificar sua dramaturgia como uma constelação de “personagens-objeto” é falsear uma dialética não-teleológica, que produziu um conjunto impressionante de modelos de trabalho que poderiam ter inspirado ainda mais sua geração.
Por outro lado, em termos práticos, Boal recorria a formalizações épicas com resultados surpreendentes: antes do golpe criou as figuras falhadas de Revolução na América do Sul e depois, a coralização crítica do Sistema Coringa.
A impressão que tenho, reforçada pelo estudo de Paula Autran, é que Boal sabia que o tempo daquele teatro era breve, e era preciso ajustar as categorias às necessidades de luta para animar uma atividade possível. Daí a noção de laboratório tantas vezes invocada: os trabalhos artístico-pedagógicos são pesquisas sobre as diferenças. E se não havia, então, o risco do formalismo que hoje envolve a expressão, é porque o horizonte comum era a luta pela igualdade. Poucas gerações do teatro perceberam com tanta clareza que as diferenças não se constituem rumo a um futuro melhor sem um ambiente solidário, e que “nenhuma personagem existe senão em inter-relação”. Fichte disse certa vez que “toda compreensão pressupõe encontro, todo encontro pressupõe compreensão”. Que os debates aqui reunidos ajudem a produzir novos encontros (como o que aproximou a pesquisadora, seu orientador e o pesquisado, todos dramaturgos- professores) em torno de questões que parecem aludir, simultaneamente, a um tempo antigo e a um que está por vir.