Raymond Williams, em mais de uma ocasião, afirmou que seu interesse pelo teatro surgiu na leitura das peças de Ibsen, ocorrida após sua experiência como combatente do exército na Segunda Guerra Mundial. Ibsen foi, no fim do século XIX, o dramaturgo mais influente entre os artistas que representaram a crise da sociedade burguesa no campo da família. Para Williams, é o autor que toca o limite da “tragédia liberal”. A leitura de sua obra, feita em contraste com as experiências trágicas do século XX, foi decisiva para que o jovem intelectual de origem operária encontrasse um caminho crítico diferente daquele praticado por seus pares na Universidade.
Foram as reflexões de Raymond Williams sobre o drama moderno que produziram seu primeiro livro, Drama from Ibsen to Eliot (1952). O interesse era literário, mas o teatro lhe impunha uma abordagem analítica nova, de sentido mais totalizante: começava ali um deslocamento dos modelos praticados por sua geração (fundados na ideia de uma “leitura cerrada” das obras), que fariam de Williams um dos mais inovadores pensadores da relação entre arte e sociedade. Naqueles estudos sobre os melhores dramaturgos europeus, Williams discute antes a conexão temática e formal entre os vários autores do que suas especificidades. Ao fazer isso, observa que mesmo um grande renovador como Ibsen escreve várias peças a partir de uma antiga “estrutura de liberação” em que o herói luta contra um sistema de impedimentos.
Sua análise aponta questões que escapam, por exemplo, a Peter Szondi, autor que discute o mesmo período em Teoria do drama moderno com objetivo diverso. As muitas observações comuns têm a ver, sobretudo, com uma atenção ao sentido ideológico das formações culturais. A polarização fundamental do drama da modernidade, surgida séculos antes, no Renascimento, entre o novo indivíduo potencialmente livre e a sociedade repressora segue operando em parte da obra madura de Ibsen, num momento, o do Naturalismo, em que pareciam se cristalizar as tendências formais ao diálogo prosaico, à ação unitária estabelecida em torno do protagonista, à temática íntima e individualizante, ao confinamento do drama ao espaço do cômodo. É de certo modo, contra essa hegemonia da representação privatista da vida cotidiana que Williams escreve seu primeiro livro. Entretanto, ao estudar também o método de cada autor, ele encontra um contramovimento: Ibsen retira a ênfase tradicional no sofrimento do herói e a desloca para as dificuldades da luta, em sua dinâmica de fracasso. Ao criar detalhes vivos em torno dos bloqueios, o dramaturgo encaminha a forma para dissolução da própria estrutura da ação potente, convertendo suas personagens em fantasmas: é nesse ponto paradoxal que ele realiza a versão limite do que se poderia chamar “tragédia liberal”.
A novidade no método crítico de Raymond Williams está no esforço de estabelecer uma dialética entre forma e experiência que seja ao mesmo tempo visível no trabalho de um autor forte como Ibsen e de seus companheiros de geração. É um livro interessado em procedimentos técnicos, mas esses só são nomeados em função da experiência suscitada pela obra. Ou seja, não é a forma em si que interessa, mas sua projeção simbólica. Rejeita assim qualquer formalismo ou “conteudismo”, procurando uma síntese em relações que estão para além do texto, tentando descrever sua “estrutura de sentimento”.
Para Raymond Williams, a tarefa mais importante que um crítico pode dedicar à obra de arte e à sociedade de seu tempo é descobrir as “estruturas de sentimento” que estão em jogo, sabendo que elas podem até contradizer o espírito da época, e que seu desvendamento, paradoxalmente, depende do estudo detalhado das “convenções” vigentes, com seus acordos mais ou menos tácitos de expectativas entre o palco e a plateia.
Os notáveis estudos de Williams sobre Ibsen, Strindberg e Tchekhov, entre outros, examinam tanto sua percepção histórica sobre relações humanas que se dissolviam rumo à mortificação, como o atrito dessas questões com as convenções baseadas na interação entre sujeito trágico e mundo. Mas o crítico percebe que as melhores invenções do período não são “técnicas” copiáveis, na medida em que participam de um “método” pessoal em transformação. Strindberg dissolveu a sala naturalista tornando a cena uma projeção estranha de uma figura isolada; Tchekhov manteve o diálogo nas relações de família, mas expôs sua impotência irônica, criando um “grupo negativo” que se vitimiza sonhando com um futuro impossível enquanto exibe sua autoconsciência vaidosa: vozes que não falam mais umas com as outras.
Para Williams, a reprodução dos aspectos externos dessas grandes obras sem suas tensões, beleza de tessitura, e capacidade de diálogo com o tempo social, pode gerar apenas o reforço das tendências às figurações cotidianas. E mesmo a apropriação de vanguarda daí decorrente (ele pensava nos dramas sociais produzidos entre 1920 e 1950) pode recair no elogio sentimental às figuras “estancadas” e na ideologia da impossibilidade da ação. Parecia ao crítico que o Naturalismo tinha gerado uma hegemonia da representação individualizante, um afastamento definitivo da tragédia pública do passado que ainda perdurava. É dessa perspectiva que uma obra teatral como a de T. S. Eliot, a despeito de seu caráter metafisicante, poderia ser valorizada, ao retomar estruturas corais poéticas e se opor ao prosaísmo privatista do tempo.
Essa condenação de limitações que supunha centrais no projeto naturalista (na verdade uma herança dramática anterior) foi relativizada anos depois. Nos livros seguintes o crítico percebe que sua generalização estava incorreta pois fazia uso de uma definição de Naturalismo “fornecida pelos seus inimigos”.
Quase no fim da década de 1960, essa primeira obra de Raymond Williams será reescrita, ampliada e politizada. A nova versão terá o título Drama from Ibsen to Brecht (1968). Ainda que se mantenham vários textos, não se trata do mesmo livro. Sua visão teatral se modifica e Brecht se torna uma referência para o crítico. Os problemas do Naturalismo são atribuídos às versões mais limitadas do projeto e Williams descreve sua contribuição histórica: o impulso a uma representação secular, contemporânea e científica que gera uma linha de continuidade modernista entre aqueles dramas sociais do impasse e as experiências de vanguarda do Expressionismo subjetivo e do Expressionismo social (expressões que Williams usa num livro como Cultura), vistas como aprofundamentos do projeto naturalista original. Novos estudos sobre teatro ampliam sua perspectiva crítica.
Drama em cena
Desde 1946, Williams colaborava num curso de formação cultural para adultos promovido pela Associação Educacional dos Trabalhadores. Com o intuito de estabelecer um guia para leitura de peças, ele escreve artigos pedagógicos sobre história do teatro. Esses textos breves continham o contexto das convenções daquele teatro, análise de um trecho da peça e uma reconstituição imaginária do espetáculo, baseada em documentos.
Publicado em 1954, Drama em cena (depois também revisado em 1968) criava uma modalidade de crítica prática que dependia do uso da imaginação. Aquilo que pode parecer óbvio – afinal, uma peça só faz sentido se reconstituirmos gestos, atos e lugares que condicionam as falas – era, entretanto, inédito. Mas a interpretação das formas cênicas – afinal, dialeticamente, as formas também “falam” – pedia a compreensão de um funcionamento produtivo mais amplo, e o crítico relacionava a obra literária com atores, público, expectativas simbólicas, instituições.
As descrições apresentadas em Drama em cena iniciam-se com Antígona, de Sófocles, passam por autores como Shakespeare, mas seu alvo outra vez está no teatro moderno. O livro já supõe a distinção entre Naturalismo e o “hábito naturalista”. Tchekhov é de novo discutido, não apenas do ângulo do fracasso de um grupo de personagens que “consome toda sua energia no processo de tomar consciência de sua própria incapacidade e impotência”[1]. Williams examina o atrito entre a versão literária e a teatral de A gaivota, comentando as muitas inserções cênicas de gestos e detalhes feitas por Stanislavski na famosa montagem do Teatro de Arte de Moscou. Como o foco de autores como Tchekhov e Ibsen estava na “vida que não se realizou”[2], era necessário que a estrutura da peça explorasse uma dissociação entre fala e ação, o que abria muita margem de leitura (ou mesmo de interferência) dos diretores de cena, que por sua vez reivindicavam uma autoria no palco. Stanislavski estabeleceu uma partitura gestual e física impressionante em sua montagem, que viabilizou inclusive o reconhecimento de uma obra que parecia então não-representável. Por outro lado, o detalhamento ambiental do genial diretor confirmava, na opinião de Williams, a tendência ao crescimento do poder da caixa cênica, num processo de confinamento da ação teatral ao palco que dificulta os trânsitos mais abertos com o público. De novo, Williams parece indicar, ao lado do trabalho do mestre, o risco de sua redução a uma vulgata técnica, o que pode sinalizar um problema social maior num tempo em que o “sentimento das pessoas é trancado em salas fechadas”[3]. O teatro já surge para iluminar dinâmicas culturais e sociais maiores, nas quais está inserido.
As análises de Vida de Galileu, de Brecht, e de Esperando Godot, de Beckett, autores mais importantes do século XX, estão ali para registrar o quanto peças notáveis dependem de um diálogo com uma encenação avançada, capaz de conexões vivas entre ação e fala (simbolicamente, entre teatro e sociedade) sem o quê sua força pode se dissipar. O cinema, como indica a análise sobre Morangos silvestres, de Bergman, que encerra o livro talvez traga exemplos de uma nova síntese entre texto e cena que pode contribuir para modelar o trabalho daqueles que se põem contra a “perda do segredo da ação”. Ainda que Williams aposte fichas demais no potencial da televisão e do cinema com relação ao desenvolvimento do drama moderno, almejando uma superação popular em relação às temáticas burguesas (seu ideal dependeria da tomada dos meios de produção pelos trabalhadores), a perspectiva geral tem validade: ele valoriza obras avessas a qualquer conformismo, não aceita elogios à inação. O problema não é o drama, mas seu confinamento ou sua reprodução abstrata: “Enquanto a sociedade for tratada genericamente, separada da vida do indivíduo, o drama perseguirá a realidade contemporânea não como uma necessidade humana, mas como um relato genérico […]”.[4] Se Beckett ainda consegue expressar tensão social na forma de algumas obras, seus imitadores da vanguarda teatral dos anos seguintes facilmente recaem no fetiche estético do culto à paralisia.
Tragédia moderna
Tragédia moderna, publicado em 1966, trata dessas questões de modo ainda mais aberto, sendo o livro responsável pela reescrita dos anteriores. Nele se vê uma crítica ainda mais dura às imagens (como a do último Beckett) que não permitem “espaço para nada, salvo a rendição ou a adaptação”[5]. Entretanto, Tragédia moderna não é um estudo de formas, como ocorre nos trabalhos anteriores, com os quais compõe um tríptico. Seus ensaios são análises “sócio-ideológicas”.
Seu ponto de partida foi um curso ministrado na universidade, quando Williams percebeu a necessidade de combater um discurso dominante em torno da “impossibilidade” da tragédia na atualidade. Segundo essa visão, a tragédia seria um fenômeno restrito a sociedades antigas onde as dimensões religiosa, política e social se fundiriam numa ordem de sentido metafísico contra a qual o herói se lança, numa trajetória de erro. Só seria possível num mundo em que há destino e não acidentes. Williams percebe no discurso sobre a morte da tragédia (celebrizado pelo livro de George Steiner) o fundo de verdade comum a toda ideologia; acusa nele um elogio aristocrático ao passado e uma valorização da teoria em relação às práticas criativas dos artistas atuais. Mais importante, ele observa que a retórica universitária da tragédia (a exemplo de outras pregações culturais) vem para excluir do campo literário os grandes problemas da atualidade como fome, guerra, exploração, e assim contribuir para uma dissociação representacional entre os sofrimentos das pessoas e os grandes processos abstratos ou coletivos. Sua desmontagem dessa ideologia é cristalina e já começa no mundo antigo: mesmo na tragédia grega não existe uma estabilidade transcendental anterior à peça, sendo a ordem antes um efeito da desordem trágica, pela qual a ação se move.
Mas por que recorrer à pergunta sobre o trágico? Em primeiro lugar porque o conceito segue modelando o trabalho de alguns dos mais importantes artistas do século XX e as velhas formas seguem nas novas. Mas a tragédia e o teatro são meios para que se discuta a vida. A admiração de Williams nos últimos anos por algumas das soluções de Brecht contém o respeito por artistas que não aderiram ao gozo das contradições, nem à verificação elitista do estrago ou ao fetiche da complexidade. Brecht interessa porque não é realista no sentido indicativo de registrar a barbárie do capital, mas no “sentido subjuntivo de supor uma sequência de ações além dela”[6], projetando outra cena além da cena negativa. A desordem trágica, assim, não é ignorada, mas confrontada a um trabalho coletivo possível, em que a cultura é parte do problema. Mas olhar para a tragédia é também compreender que existe um grande campo de experiências sociais ligados a essa percepção, o que inclui a própria ideia de Revolução. Assim como a tragédia diz respeito à compreensão do sofrimento humano concreto, a Revolução, entendida como luta contra a grande desordem capitalista, é realizada por mulheres e homens que vivem o tempo de uma existência real. Encarar sua dimensão trágica é mantê-la em movimento, na contramão das más abstrações geradas pelos traumas do passado ou da retórica sobre as máquinas cegas da atualidade. Revolução compreendida como totalidade: interessam os erros, mas também os homens que lutam contra eles, interessam as crises, mas também as energias que elas liberam, interessam as ações utópicas como atividade imediata.
[1] WILLIAMS, Raymond. El teatro de Ibsen a Brecht. Tradução José M. Álvarez. Barcelona: Ediciones Península, 1975, p. 123.
[2] Idem. Drama em cena. Tradução Rogério Bettoni. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 174.
[3] Ibidem, p. 228.
[4] Drama em cena, cit., p. 228.
[5] “Mas a forma do último Beckett, com sua especificidade e deliberada incondicionalidade, não permite, como imagem dramática, espaço para nada salvo a rendição ou a adaptação. Ela não apenas liquida a esperança, mas avança para matá-la. […] Ela completa, mais profundamente do que poderia ter sido previsto, o desenvolvimento longo e poderoso da tragédia burguesa.” (WILLIAMS, Raymond. “Posfácio para Tragédia moderna”. In: Política do modernismo: contra os novos conformistas. Tradução André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 103).
[6] WILLIAMS, Raymond. A política e as letras: entrevistas da New Left Review. Tradução André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 216.
(Publicado em Cult. 217, out. 2016, p. 56-59, http://revistacult.uol.com.br/home/58notas-sobre-raymond-williams-e-o-teatro/. Foto Mark Gerson, reprodução.)