A penúltima peça de Henrik Ibsen estreou em Paris, em 1897. Hoje um dos menos conhecidos entre seus dramas modernos, John Gabriel Borkman é lançado no Brasil com tradução direta do norueguês feita por Fátima Saadi e Karl Erik Schollhammer. O título dá seqüência à coleção Teatro da Editora 34 iniciada com O Pequeno Eyolf, peça imediatamente anterior no conjunto da obra do dramaturgo. Olhando o cartaz dessa primeira apresentação parisiense de John Gabriel Borkman, vemos em primeiro plano o rosto de um homem velho de suíças, como que pairando no ar.
À direita de Ibsen, em menor escala, um farol de navegação emite raios em várias direções. A imagem hiperbólica de um dramaturgo-farol ganha maior relevo se conferirmos os outros nomes da propaganda: o desenho é assinado por Edvard Münch e anunciava a temporada de 1897-1898 de um teatro experimental inaugurado quatro anos antes, o L´Ouvre, que passaria à história da cena moderna pelas incursões simbolistas de seu diretor e principal ator, Aurélien Lugné-Poe e, pelo estrondo iconoclasta da montagem de Ubu Roi de Jarry apresentada no ano anterior. Àquela altura Ibsen já era considerado o maior dramaturgo do século 19. Sua fama, construída aos poucos – ao longo de 40 anos e mais de 20 peças -, não dispensou debates críticos acirrados. Sua enorme popularidade, entretanto, se deveu menos à sofisticação dramatúrgica do que ao escândalo causado por alguns de seus temas, como o feminismo de Casa de Bonecas, ou a sífilis hereditária dos Espectros. Pode-se dizer que Ibsen se tornou um autor conhecido em todo o mundo (como aliás quase sempre acontece) não por seu imenso valor artístico mas por repercussões acidentais. O tom romântico de suas posições liberais e o realismo zolaísta no tratamento de temas provocativos garantiam, ao que parece, o interesse do público teatral mesmo quando os conflitos eram sutis demais para o gosto do tempo ou os desenlaces ambíguos demais para satisfazer a expectativa geral de positividade. É certo, porém, que poucos escritores entenderam tão bem a dramaticidade moral da era burguesa quanto Ibsen. E poucos se tornaram “faróis” estéticos e técnicos do teatro ainda em vida. É, assim, compreensível que, em 1897, uma peça mais ou menos realista de Ibsen fosse a grande atração de um teatro de vanguarda de Paris, muito embora o desejo da cena já gerasse comportamentos estilísticos mais heterodoxos.
Um texto como John Gabriel Borkman trazia problemas de difícil resolução para os teatros convencionais, em especial quanto à interpretação dos atores. O comentário feito por Bernard Shaw, seis anos antes, em The Quintessence of Ibsenism – série de artigos que menosprezava o puritanismo do teatro inglês diante do “novo teatro” -, dá a medida da complexidade de Ibsen. De acordo com Shaw, em toda a Grã-Bretanha não havia mais que duas atrizes maduras o suficiente para atuar nas peças de Ibsen e a coisa não era muito diferente do lado do público. O “novo teatro” estava para o vaudeville, dizia Shaw, assim como o jogo de xadrez está para o boliche.
Defender uma orientação ibsenista representava, para ele, uma escolha ética: “Dramaturgos que só compõem peças de acordo com receitas para produzir lágrimas ou risos estão agora levando sua profissão mais a sério, até à plenitude de sua capacidade, e se aventurando mais e mais nos incidentes e catástrofes de uma história espiritual e menos nos desmaios, surpresas, assassinatos, duelos e intrigas que são os lugares-comuns do teatro atual. ” A obra de Ibsen está, portanto, numa encruzilhada histórica. Fazia frente a uma tradição teatral que se fortalecia com o culto ao virtuosismo passional das estrelas do palco, exibido em gêneros populares como o melodrama e a farsa. Tradição à qual o próprio Ibsen, curiosamente, deve parte de sua formação prática como homem de teatro. No período em que dirigiu os teatros de Bergen (1852- 1857) e Cristiania (atual Oslo, 1857-1862) ele pôde verificar a comunicabilidade certa de dezenas de vaudevilles franceses, sendo que muitos deles eram de Eugéne Scribe, o maior autor do gênero, mestre da “peça bem-feita”. Por outro lado, ele já era herdeiro de um ideal poético da livre apropriação do trágico e do cômico na representação do indivíduo comum, daquele conceito segundo o qual “os segredos de uma vida familiar” são a matéria dramática por excelência, tal como formulado num livrinho que muito o influenciou, O Drama Moderno, escrito por Herman Hettner em 1844 com base na obra do notável autor de Marie Magdalene, o alemão Friedrich Hebbel. O teatro realista do século 19 é a culminância daquele mesmo movimento que na era barroca instaurou a tragicomédia elizabetana e espanhola, passando depois pelo drama burguês de Diderot e Lessing. O drama rigoroso – com suas leis unitaristas, sua organização causalista, sua atualidade e funcionalidade imanentes – encontrou em Ibsen seu apogeu e sua crise. O nascimento do que se chama “teatro moderno” (assinalado pelo advento do encenador) coincide com essa crise histórica do drama. Ibsen, nesse sentido, é um dos pais do Modernismo, assim como o foram os primeiros diretores realistas Andre Antoine e Otto Brahm. A necessidade de uma “organização crítica dos elementos do espetáculo”, atributo básico da encenação, corresponde à perda de um padrão coletivo. Entre as novas personagens dramáticas da literatura, o repertório técnico dos atores e o gosto do público se abriam fissuras (que vêm se alargando até hoje). A cena, por meio da reflexão interna do encenador, precisaria construir no palco uma síntese que não estava mais dada. A crise histórica do drama foi muito bem descrita numa obra que se tornou uma referência dos estudos literários, Teoria do Drama Moderno (1880-1950), publicado na Alemanha em 1956 pelo húngaro Peter Szondi, uma das principais influências de Anatol Rosenfeld em O Teatro Épico. A peça escolhida por Szondi ao estudar Ibsen é John Gabriel Borkman. Entre outras coisas, Szondi mostra como o drama moderno de Ibsen empreende uma total inversão da técnica analítica, tal como se dava à perfeição no Édipo Rei. Em Sófocles a discussão sobre os fatos do passado aparece para esclarecer o estado atual da cidade e de Édipo, sendo a análise a própria ação da peça. Nas grandes peças de Ibsen, ao contrário, a situação do presente não é muito mais do que um pretexto para a evocação do passado.
A primeira cena de John Gabriel Borkman é uma longa seqüência evocatória. Uma mulher de meia idade (Ella) chega à casa de outra (Gunhild) e aos poucos adquirimos elementos para várias hipóteses: são duas irmãs que não se falavam há oito anos, uma parece mais fria e amarga do que a outra (como em tantas outras duplas femininas de Ibsen), o marido de Gunhild cometeu no passado uma trapaça financeira no banco (é comum em Ibsen um “pecado original” anterior à história) e ela cultiva a esperança de que o único filho (Erhart) reabilite o nome da família. Ao fim da cena, a irmã visitante diz, enfim, a que veio: está doente e quer levar consigo o rapaz Erhart para acompanhá-la em seus últimos dias. Na técnica analítica de Ibsen, as personagens surgem para discutir um passado que ainda permanece vivo e incômodo no presente. Essa discussão expiatória, que cumpre também a função da “exposição” dos fatos ao espectador, parece esconder sempre um último “segredo familiar” ou alguma tênue vontade de modificação das coisas. Em John Gabriel Borkman, por exemplo, o motivo da chegada de Ella tem mais força metáforica do que de mote dramático: ela deseja a companhia do sobrinho não pela iminência da morte, mas pelo vazio de sua vida (ela mora numa região distante e gelada, e um dia teve o amor humilhado pelo pai do rapaz). Szondi tem razão quando observa que a tragicidade imanente ao mundo burguês não tem sua raiz na morte, mas na vida mesma. A grande personagem “trágica” da peça é o velho John Gabriel Borkman. Se essa peça contém “um resumo de todo Ibsen” – como constatou Otto Maria Carpeaux -, ou mesmo se é “executada de modo demasiado estático” – como objetou o norte-americano John Gassner -, o fato é que Ibsen optou com consciência pelo centramento estático e sintético das situações, tecidas ao redor de uma das maiores personagens de sua obra. A primeira manifestação que nos chega de Borkman é o som de seus passos. O velho mora no andar de cima da casa, isolado há oito anos do mundo. O auge da cena do encontro das duas irmãs é o momento da escuta. Gunhild dirá a Ella: “Mais de uma vez tive a impressão de que lá em cima, sobre a minha cabeça, há um lobo doente que mede com os passos a jaula (Ela ouve melhor, e sussurra. ) Ouça agora. Ouça – é o lobo que anda de um lado para o outro, de um lado para o outro.”
Imaginamos um homem espectral antes de vermos o velho Borkman de corpo presente. Ele nos aparece como uma assombração e a própria mulher lhe dirá depois que ele “já está morto”. Quando, porém, conhecemos Borkman de mais perto, notamos a vivacidade agônica de sua condição, sentimos de perto a ambivalência de sua tragicidade que, à moda clássica, se revela na desmedida. Talvez se possa dizer que ele tem algo do Rei Lear de Shakespeare porque também barganhou com o amor da pessoa que mais amava, também é um excessivo do orgulho e vai morrer exposto aos elementos da Natureza. Até o único amigo que visita Borkman, o escrevente Foldal, tem algo do fool de Lear. Só que o bobo de Lear é um sábio cujas tolices comentam uma Verdade objetiva, da qual o público partilha, e que só escapa ao velho Lear. Na peça de Ibsen, Foldal é um doce ignorante que comenta dos filhos: “Eles têm mais instrução, esperam mais da vida.” Tanto ele quanto Borkman fizeram durante anos um pacto da “mentira vital” (um dos temas de O Pato Selvagem). Na cena em que Borkman nega o talento poético de Foldal, o escrevente lhe retruca que o perdão sonhado pelo velho também é impossível. Borkman conclui: “Então estivemos todo esse tempo enganando um ao outro. E cada qual enganando a si mesmo. ” Ao que Foldal responde: “Mas não é isso, no fundo, a amizade, John Gabriel?”
Peter Szondi já tinha observado que em Ibsen não é o itinerário à verdade que constitui a ação trágica. A verdade não está no mundo, mas na interioridade de cada um. O problema que se apresenta ao espectador é menos o de juntar as partes e mais o de observar o confrontamento dos juízos pessoais. A questão ibsenista não é a do conhecimento, mas a do valor moral. Suas peças são processos cênicos, julgamentos familiares em que o maior litígio se dá entre o desejo e a possibilidade de realização. Na última cena de Rosmersholm, o marido diz à mulher antes do suicídio: “Vejo a vida tal como ela deve ser vista por nossos espíritos liberados. Não estamos sujeitos a nenhum tribunal. Cumpre-nos, pois, a nós mesmos nos julgarmos. ” Na cena em que reencontra sua mulher e sua cunhada, John Gabriel Borkman se defende dizendo que em oito anos de espera teve tempo para refazer sozinho todo o seu processo: “Fui meu acusador, meu advogado de defesa, meu único juiz. Fui mais imparcial do que qualquer outra pessoa. (… ) E o veredito a que cheguei todas as vezes foi o seguinte: sou culpado apenas para comigo mesmo. ” O velho Borkman está convicto de que nunca foi perdoado porque não houve compreensão real dos seus motivos interiores. Ele está só. Mas acredita que sua absolvição é possível porque “um novo olhar transmuda antigos atos”. A moral varia de acordo com os pontos de vista, a verdade se interioriza, o sentimento diante da arte se condiciona à relação individual. Ibsen conduz o tema do individualismo dos campos ético e lógico ao campo poético. Na primeira cena de Borkman e Foldal, o velho compara sua própria queda com a tragédia escrita por Foldal e em seguida observa: “Mas, de um outro ponto de vista, é uma boa comédia. ”
O impasse dramatúrgico que surge aí pode ser enunciado do seguinte modo: como poderia uma peça teatral ainda se basear numa relação dramática objetiva (pressuposto do gênero) quando não há mais relações objetivas entre personagens que se mostram estranhas e isoladas em sua proximidade familiar? Se não é o drama, qual é então o gênero teatral que pode retratar o mundo em que vivemos? A dramaturgia moderna é o conjunto das respostas a isso. Em John Gabriel Borkman, Ibsen realizou um deslocamento ainda mais radical de foco, ao estacionar o conflito no lapso entre o passado e o presente. Dois sentimentos, ao que parece, regem a peça, o de que há um erro insuperável, e o de que “muito, muito tempo se passou”. Szondi observou que “quando as personagens falam do passado, não são os eventos singulares, nem sua motivação a vir em primeiro plano, mas o próprio tempo”. A contradição aí é de difícil resolução. Na dramática rigorosa, em que as personagens agem por si próprias, o passado só ganha a cena pela evocação analítica. Mas sempre permanece confinado na fala. Ibsen não só se refere ao tempo mas faz dele seu assunto central, num gênero literário avesso a essa tentativa. A representação direta do tempo só seria possível – em se concordando com Lúkacs – na forma do romance, gênero que acolhe a temporalidade na “série de seus princípios constitutivos”. Muito da dificuldade que temos hoje em ler e encenar Ibsen não se deve ao cheiro de mobília antiga na descrição do cenário ou ao ultrapassado das prédicas libertárias. A dificuldade, creio eu, está em algo que Otto Maria Carpeaux detectou com a seguinte frase: “A sua técnica teatral é tão magistral – magistral demais – que observamos com certo mal-estar, com certa desilusão, o funcionamento impecável da máquina.” O domínio pleno das peripécias e reconhecimentos, a exposição dissolvida com economia por toda a peça (e não, como de praxe, exposta no Primeiro Ato), toda a perfeição formal que no passado garantia a eficácia de suas peças hoje nos dá a impressão de ser excessiva, de conter uma incompatibilidade qualquer. Ibsen manipulava uma expectativa melodramática de seu público, até para frustrá-la, e para isso se utilizava de artifícios consagrados da tradição teatral. Pensemos na sra. Borkman saindo de trás do tapete onde esteve escondida ouvindo a conversa do marido. Só que suas personagens são criaturas espectrais, já não habitam um mundo de relações dramáticas. Elas têm, no máximo, “dramaticidades”. Os recursos que sustentavam a voltagem dramática parecem pouco se adequar à nossa leitura das personagens que Ibsen imaginou. A sensibilidade dramática atual parece preferir um passo além ou aquém, uma opção entre os mundos com que Ibsen dialogava. Somos mais íntimos de um esmaecimento quase completo do mecanismo narrativo (iniciado por ele) como ocorre na técnica “desdramatizada” de Tchekhov, ou, por outro lado, preferimos nos deixar levar por apelos mais imediatos de uma teatralidade que visa aos sentidos. Ibsen continha isso tudo. Em suas palavras há tanto o desejo de representar o que não cabe no drama, quanto o sentimento de uma crise comum ao teatro e à sociedade. Por isso é um manancial. Sua consciência teatral estupenda orienta tudo que vem depois, incluindo Shaw, ONeill e, me arrisco a dizer, Nélson Rodrigues. Sua arte é grande porque suas contradições também o são, e ela sempre exige do público e da encenação uma escolha, um ponto de vista estético ou moral. Qual a nossa atitude diante de uma cena como aquela em que Foldal narra seu atropelamento? Enquanto ele conta que rolou na neve, machucou-se, perdeu seus óculos e quebrou seu guarda-chuva, ouvimos o tilintar da carruagem na qual – sem que ele saiba – sua filha vai embora. O velho Borkman ri da ingenuidade de Foldal. A vida é cômica e trágica, melodramática e farsesca. Em poucos instantes é John Gabriel quem sobe a colina (outra imagem freqüente em Ibsen) dizendo à mulher que o segue: “Vou em frente, sempre em frente, ver se ainda consigo retomar a liberdade, a vida, o contato com as pessoas. ”
(Publicado em O Estado de S. Paulo, 05.07.1997, p.D6.)