A procura da interação entre o velho e o novo possibilita ao escritor ver nas coisas o seu processo. Todo o teatro de Brecht é atravessado por imagens de anacronismos e progressos, momentos da contradição entre atitudes antigas e novas, formas distanciadas de se compreender os padrões da atualidade. Numa nota de trabalho a respeito de A Boa Alma de Setsuan ele escreve: “Claro que já existem aviadores e ainda existem deuses neste Setsuan”.
Acontecimentos motivados por épocas diversas aparecem em todo seu teatro. No atrito entre a dominação dos templos orientais e o exército inglês de Um Homem é um Homem, no novo petróleo que precisa do velho trabalho servil de A Exceção e a Regra, no diálogo o entre os revolucionários dos bairros de Paris e a razão financeira dos bancos em Os Dias da Comuna. O anacronismo social é mantido como forma de compreender o estrago em seu curso, surge para distanciar a mercantilização, exposta por sua vez em formas avançadas, quase totalizadas (neste quase, uma recusa ao sentimento trágico, uma abertura à prática teatral, a confiança de que a peça se realiza na plateia, o entusiasmo pela pesquisa, a vontade de que a peça estimule a criatividade de todos – o trabalho do teatro dialético).
De seus colaboradores no Berliner Ensemble, tal como me foi relatado por Peter Palitzsch, Brecht exigia que saíssem às ruas à procura de acontecimentos que envolvessem tempos contraditórios. Começava aí o aprendizado do escritor, no cultivo do “sexto sentido para a história”.
Numa das parábolas de A Compra do Latão, o escritor aprende tal atitude clássica de um operário que um dia pega uma antiga faca, de cima da escrivaninha do poeta, e se impressiona com a qualidade do cabo, que permite uma empunhadura adequada. O operário comenta: “Então, naquele tempo em que acreditavam em bruxas, eram capazes de fazer uma coisa assim. Hoje em dia usam aço melhor, mas ninguém sabe mais equilibrar o cabo e a lâmina. Como essa cabe na mão!”. Para observar é preciso comparar, para comparar é preciso já ter observado.
A imagem atravessa a lírica de Brecht, às vezes constituindo o tema do poema: “Meu avô já vivia numa época nova. Meu neto talvez ainda viva na antiga. (…) As novas antenas continuam a difundir velhas asneiras. A sabedoria segue passando de boca em boca.” Nos versos de Procura do novo e do velho, outra formulação bonita: “Como diz o povo: quando muda a Lua, a nova segura a velha por uma noite em abraço. Apresentai sempre o ainda e o já – as lutas das classes. As lutas entre o velho e o novo ardem também dentro de cada um.”
Quando estava no exílio nos Estados Unidos, longe de uma atividade prática, isolado de seus colaboradores, lidando com a dialética extrema da Guerra, Brecht releu alguns desses escritos de A Compra do Latão e comentou que pareciam vir de outro tempo, e lhe jogavam poeira na cara. Por aquela época, em que esteve extremamente atento às novas coisas ruins (mais do que às velhas coisas boas) também escreveu: “Querer o novo é antiquado, o que é novo é querer o velho.” Mas quem está fazendo isso? Por que um progresso histórico se converte em anacronismo? E como pode se dar o contrário? O problema, tornava-se claro, passava a ser a qualidade das novidades, seu sentido e valor social, diante de nossa velha (porém mutável) situação de humanos.
(Nota de trabalho em Paraty, quando da realização de uma oficina da Companhia do Latão.)