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Latão e Brecht

Ópera na Terreira da Tribo (notas e fotos, 2011)

Porto Alegre, 28 de junho de 2011. Iniciamos a montagem de Ópera dos Vivos na Terreira da Tribo. É uma viagem tornada possível graças à vontade e ao trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz.

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O espaço foi transformado desde minha última visita. Removeram o material das antigas encenações que estava no fundo do galpão, agora liberado para a cenografia de Ópera dos Vivos, que se ergue sobre três relações teatrais distintas. Os próprios artistas do Ói Nóis construíram as as duas grandes arquibancadas. Uma delas terá que ser girada durante o intervalo. Eles já têm um plano para o deslocamento.Todos os atores do grupo conhecem um pouco de cenotecnia e de iluminação, sendo alguns melhores que a maioria dos técnicos que conheço. A não-especialização é a base de sua prática coletiva. Uma escola de teatro que valesse a pena deveria começar desse ponto central para o Ói Nóis: o trabalho intelectual não deve valer mais do que o braçal; o artista não é mais importante do que o técnico ou o faxineiro; as funções devem ser intercambiadas. Aula inaugural de uma possível escola inspirada nessa perspectiva: introdução à marcenaria para que se construa o próprio tablado onde se darão os ensaios; após o uso dos martelos, dos serrotes e lixas, terá início a leitura de textos de Marx sobre o trabalho na sociedade capitalista (como sugestão, fragmentos dos Manuscritos e da Ideologia Alemã).

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Porto Alegre, 29 de junho de 2011. Terminamos a montagem mais cedo para assistir a uma encenação de Mercado do Gozo feita por alunos-atores do Ói Nóis. Na véspera tínhamos visto A Comédia do Trabalho. Ambos os  trabalhos foram desenvolvidos em oficinas nos bairros periféricos de Porto Alegre, dadas pelos integrantes do grupo, com resultados impressionantes.

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Toda a sofisticação dramatúrgica de Mercado do Gozo aparece no trabalho daqueles atores amadores. Há nítida consciência do assunto tratado. A peça revela à platéia sua potência de comunicação: os temas reconhecíveis do meretrício, dos paraísos artificiais, do burguês em crise passageira com sua situação de classe, logo dão espaço a imagens mais intragáveis, que subvertem as expectativas do conforto hedonista. Os grupos de jovens que compõem a platéia poucos minutos antes ridicularizavam os desempenhos dos atores de outras escolas de Porto Alegre, que também se apresentaram na mostra. Agora se aquietam com os movimentos irregulares de Burgó, Bubu, Getúlia, Rosa Bebé e Cafifa. Passam a dialogar (às vezes em voz alta) com a ficção. A direção de Paulo Flores sublinha o caráter cinematográfico de algumas cenas através da paródia de filmes mudos: a idéia de que “a prostituição é a enésima hora da mulher operária” atravessa as coreografias. A beleza provém da utilidade crítica.

Uma conversa curiosa presenciada antes do início da sessão:

A – Precisa conhecer esse escritor (referia-se a um dramaturgo do século 19): opunha-se àquela concepção do marxismo de que a vida material determina a vida cultural. Ele sabia que antes de mudar o mundo, é preciso mudar o homem.

B – (Em voz baixa, com um sorriso) Um pouco difícil de pôr em prática, não acha?

A- (Sem entender) Ele escrevia contra o determinismo.

B- (Mais decidido) Engraçado que um outro escritor chamado Brecht tenha posto essa mesma frase na boca dos capitalistas de sua peça, que aplaudem a idéia de que “é preciso mudar o homem antes de mudar o mundo”. Para eles, esse ideal vem bem a calhar.

A – (Após um silêncio, bem educado) Bem, as duas coisas são importantes, não é?

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Porto Alegre, 30 de junho de 2011. Conversa de manhã com Martin Eikmeier sobre o desejo de uma escola de teatro baseada nos clássicos da dialética, inspirada no exemplo da Escola Popular do Ói Nóis. Levantamos uma lista de possíveis tópicos de prática experimental. Ele sugere um curso com um título divertido: Estudos do inimigo: pós-modernismo e cultura do capital. Na mesa de jantar, conversa com Nivaldo, um de nossos cenotécnicos colaboradores. Ele me conta que foi garimpeiro na Amazônia, “trecheiro”, e que sua escola “foi esse mundo”. Teria muito o que nos ensinar sobre gestos do mundo do trabalho.

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Porto Alegre, 01 de julho de 2012. Estreamos a versão completa de Ópera dos Vivos, primeira vez fora do Rio e São Paulo. Para a roda de concentração antes da abertura, em que os atores se dão as mãos, convidamos os integrantes do Ói Nóis e lhes explicamos nosso estranho ritual: cantamos o hino do Benfica, time de futebol português, em homenagem ao nosso produtor João Pissarra. Estamos, na verdade, todos emocionados com este encontro entre artistas que se querem bem, coisa rara nos tempos de hoje. A gritaria e os pulos, seguidos de tapas no chão  e “merdas”, quando o círculo se dissolve, nos divertem como sempre. Paulo Flores comenta o voto de fé no time lusitano: “Não sabia que o Latão era tão religioso.” No intervalo, o mutirão de giro da arquibancada contou com mais de 30 pessoas em sintonia perfeita e animada.

Porto Alegre, 02 de julho de 2012. À tarde realizamos uma demonstração de trabalho. Ensinamos ao grupo de interessados as canções do repertório do Latão, que fornecem motes para as cenas. Entre os participantes, rostos conhecidos de atores com quem já tivemos contato em aulas de anos atrás. O tema dos experimentos sem palavras: relações (gestuais) contraditórias. A desmontagem do idealismo das representações não é tarefa simples. Pode ser compreendida intelectualmente, mas isso não conduz de imediato à formulação de imagens mais livres. É preciso trabalhar com contramodelos, de modo a que eles também sejam superados e uma nova síntese seja encaminhada. Um homem conta que certa vez ajudou um cego a atravessar a rua. No meio do trajeto o cego lhe pediu dinheiro. Ele recusou. Quando pisou no outro lado da calçada, o cego emitiu um sonoro “vá se foder” e se afastou rapidamente. Com este relato, ele traduziu seu entendimento correto do debate da oficina.

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A apresentação da noite termina perto da meia-noite. Desmontamos tudo e carregamos o caminhão em outro mutirão acelerado. O trabalho de dias e dias se dissolve em menos de duas horas. Outra matéria para uma futura escola de teatro: a arte de carregar caminhões, seguida de leituras filosóficas sobre a mutabilidade das coisas. Ou ainda: técnicas de organização política, seguida da análise de poemas antigos sobre a amizade.

Por Sérgio de Carvalho

Sérgio de Carvalho é dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, grupo teatral de São Paulo, Brasil. É professor livre-docente na Universidade de São Paulo na área de dramaturgia.

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