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Notas sobre a prática dialética de Boal (2009)

Augusto Boal mudou o lugar do teatro. E realizou o gesto através de uma reflexão teórica única, capaz de inaugurar uma prática de ativação popular trans-estética. O paradoxo é que seu seu projeto contém, ao mesmo tempo, uma negação da arte e a geração de campos de autonomia estética, com vistas a uma práxis igualitária. Assim, em cada afirmação esperançosa sobre as possibilidades de ação humana transformadora, Boal inscreveu também um não fundamental, porque desde cedo foi um dialético. Não conheci mais interessado na mobilidade, na incerteza, na ambigüidade.

Em suas “memórias imaginadas” que têm o título curioso de Hamlet e o filho do padeiro (Record, 2000), as evocações da trajetória familiar e profissional deflagram mais do que a luta entre o ser e o não ser, a verificação de uma unidade relativa ao tempo. “A tragédia de Hamlet não é ser ou não ser: é ser e não ser. Hamlet é os dois (…) e só não sabe ser ele próprio. Sou especialista nessa dicotomia.”, diz Boal. 

A arte, segundo essa visão, é uma produção humana que tem sentido ao produzir o desconhecido, ao inventar um lugar sempre mais além, chamado “outro”. Boal criou, nessa perspectiva, condições estéticas (e extra-estéticas) que permitem exercícios de autonomia crítica e política. 

Talvez tenha sido essa tendência de espírito que o fez, ainda muito moço, trocar a carreira de químico pela de fazedor de teatro, expressão vaga que não abarca sua múltipla atuação. De tudo Boal fez um pouco: foi dramaturgo, diretor, professor, ensaísta. Sempre excessiva e brilhantemente. E sua visão dialética enfatizava a temporalidade das coisas: tinha uma atenção toda especial à vida em fluxo. Enxergava nas partes as dinâmicas do todo. Sabia que toda afirmação é uma supressão. 

Laboratórios e seminários

Boal se decide pelo teatro nos anos 1950, quando se matricula no curso de Dramaturgia de John Gassner, na Universidade de Columbia, Estados Unidos, em paralelo à especialização em Química. Nas horas vagas acompanhava também oficinas no Actor´s Studio. Em dois anos, perdeu o interesse pelas metamorfoses de substâncias, cada vez mais pautadas pela pesquisa industrial, submetidas aos interesses das trocas mercantis. Preferiu a imprecisão do teatro, sua construção precária, também sujeita às imposições da mercadoria, mas sempre algo anacrônica e artesanal quando comparada à serialização cultural. 

Em todos os trabalhos importantes que realizou, Boal imprimiu a herança científica que o levou ao estudo de química. Não é à toa que usou a forma dos laboratórios para transmitir seus conhecimentos ao elenco do Teatro de Arena, grupo dirigido por José Renato, onde ingressou em 1956. 

Mal se iniciava como diretor de cena, Boal valorizava o processo para desautomatizar o produto. Criou um sistema de ensaios feito de exercícios preparatórios de aproximação psicofísica ao papel, com base em Stanislavski, distendendo o tempo de ensaio e coletivizando os procedimentos para além da simples marcação do texto decorado. 

Na área da dramaturgia, depois de um curso interno oferecido ao grupo para compartilhar a chamada carpintaria aprendida nos Estados Unidos, ele funda o famoso Seminário de Dramaturgia, aberto a escritores e estudantes, com a tarefa de estimular a escrita de textos nacionais. Naquele tempo, ele acreditava em estruturas dramáticas clássicas: a peça teatral nasce do entrechoque de vontades individuais rumo a sua reviravolta. Mas essa técnica se relativizava na prática experimental de intercâmbio com os jovens integrantes politizados do Arena (Vianinha e Guarnieri eram filhos de artistas ligados ao Partido Comunista e discípulos de Ruggero Jacobbi, o mais culto dos encenadores italianos que passou pelo TBC de São Paulo). 

Mesmo sendo difícil avaliar o período em função da escassez de documentos, não há dúvida que o trabalho de Boal foi o catalisador de uma revolução estética a partir de sua ação no Seminário de Dramaturgia. O que parece ter ocorrido ali é uma superação do modelo aprendido em Nova Iorque em função de outros fatores, entre os quais o sucesso temático de Eles não usam black-tie, de Guarnieri, que punha em cena embates da vida operária e trazia um modelo em que o conteúdo social pressiona o moralismo da forma dramática. Refuncionalizava-se, assim, a forma do conflito psicológico em nome de um projeto crítico de arte popular e brasileira. A técnica estrutural aprendida com Gassner, de base hegeliana, se convertia na procura sistemática de uma dialética do drama, ampliada com a leitura do próprio autor da Fenomenologia do Espírito. Instaurava-se a prática do debate político sobre uma cena em que o risco do patrulhamento era um mal menor diante da impressionante mobilização dos sentidos cênicos para o momento histórico agudo em que o país entrava. Tudo isso se imagina por depoimentos da época, e pelos resultados no trabalho de tanta gente que começou a escrever do dia para a noite. Muitos dos melhores dramaturgos do país que depois migraram à televisão – penso em Lauro César Muniz e Benedito Ruy Barbosa – devem seu conhecimento técnico a Boal. 

Mas a lógicadialética que Boal transmitia em seus cursos, impunha a ele próprio uma atitude de negação. A melhor peça escrita por ele no período, Revolução na América do Sul, de 1960, se afasta do padrão do conflito inter-subjetivo, a ponto de se converter em outra coisa. A saga cômica do famélico Zé da Silva rumo a uma incompreensão cada vez maior sobre o funcionamento do sistema econômico está mais próxima da palhaçada do circo, em sua estrutura despedaçada. São episódios de uma ingenuidade, na forma de números irônicos. Não se vê ali o realismo autoconsciente com desenlace positivo que anima peças sociais do período. Boal dialoga, mais do que nunca, com a técnica do teatro épico de Brecht, autor que admirava e conhecia bem, mas que não lhe falava ao coração luso-brasileiro, talvez por seu materialismo por demais cortante e distanciado. 

Mas ambos são dialéticos. E mesmo que Boal tenha sido, do ponto de vista filosófico, um idealista, sabia transmudar essa tendência numa prática artística cambiante, feita de atitudes gestuais críticas e reflexivas. Como muitos artistas modernos, Brecht e Boal quiseram que o teatro fosse outra coisa além de “teatro”. Que fosse capaz de desmontar o imaginário social dominante, ao preço de ter que se negar – no sentido hegeliano de aprofundar para superar – a dimensão estética. 

O ator se transforma em personagem. O palco real instaura mundos irreais. É comum que essa qualidade contraditória do teatro seja cultuada em termos idealistas: a essência do teatro estaria nesse constante ser-no-outro. Mas a obra brilhante de Boal é um testemunho de que a dialética deve incidir sobre si própria. Daí seu movimento de recusa do teatro. Não basta saber que o teatro aproxima os contrários, é preciso algo mais do que a conciliação abstrata. Como artista da ficção mimética, ele procurava algo que não se representa, mas se pressente. Uma vitalidade indefinível que nasce de uma concretização singular mas não absoluta, de uma capacidade de trânsito livre e ativador entre palco e platéia. 

Sua diferença em relação ao projeto de Brecht se deve também a uma interpretação sobre a situação histórica do Brasil na década de 1960. A crítica dos principais artistas da época ao populismo do pré-1964 partia de uma verificação dolorosamente palpável: houve ilusões em relação ao projeto de uma arte socialmente integradora no luminoso período entre 1960 e 1963, comparável ao engano de acreditar que a burguesia progressista so país combateria do lado das reformas socializantes pretendidas pela equipe de João Goulart. 

Mas os equívocos populistas do teatro experimental de conscientização política – cujo mais avançado exemplo é o CPC da UNE, liderado por Vianinha – são insignificantes diante dos enormes avanços artísticos surgidos da nova relação de trabalho surgida. Ao se aproximarem dos despossuídos da cultura, essa geração de artistas mudou. Aprendeu a expor a fragilidade de uma produção cultural que precisa reinventar suas formas e sentidos. Por mais que em algumas ocasiões Boal partilhe da depreciação injusta lançada sobre os CPC da UNE, o Teatro do Oprimido não existiria sem esse passado, assim como o CPC não existiria sem Boal. 

Com o fechamento político do pós-64, ele se vê em uma nova situação imposta pela conjuntura, o que modifica a fase de sua invenção laboratorial. Nos espetáculos da série Arena Conta sobre figuras históricas brasileiras (Zumbi de Palmares e Tiradentes) Boal põe em prática uma forma de atuação em que o elenco assume o espetáculo como evento narrativo. Criava, assim, o sistema do Coringa, em que a personagem era transmitida de um ator para outro. Como convenção da troca, um dedilhar musical forte no violão e a repetição de um gesto marcante pelo intérprete seguinte. Vários atores conduzem a mesma personagem, ajudados por um mestre de cerimônias, o Coringa, que comenta a ficção. A idéia de um gesto social citável e de um teatro narrativo e musical são heranças brechtianas. Servem agora como suporte para uma alegoria lírica sobre o país diante de seu passado imediato. Massacre imposto e equívoco dos intelectuais. Sempre que voltava a esse assunto, Boal costumava comentar a frase de Brecht segundo a qual é “triste um país que necessita de heróis”. E lembrava que o nosso é triste porque precisa dos atos individuais libertadores. Em que pese aí uma insistência discutível na importância de uma dramaturgia capaz de criar mitos (ao contrário do que argumentava a crítica de Anatol Rosenfeld na época), o idealismo dramático expõe suas franjas e mangas no avesso: era dialetizado pela prática coletiva dos ensaios. Boal escrevia Zumbi com Guarnieri, ao mesmo tempo em que Edu Lobo musicava as letras. No ensaio da noite, o texto se corrigia pela interação com os atores. Trabalho coletivizado e não especializado. O senso agudo de individualidade de Boal precisava do grupo. E para ele o teatro de grupo só existe quando o projeto se torna transmissível, citável, como os gestos dos atores no sistema coringa. 

Luta no exílio

As mais interessantes e modelares experiências artísticas de Boal durante a existência do Teatro de Arena estiveram ligadas ao desejo de interferir no tempo histórico. Mas quando o governo militar decide fechar o cerco sobre o movimento estudantil, e por tabela sobre a vida cultural, cuja contestação ainda era admitida nos anos anteriores, ficou nítido quem conduzia o processo. Enquanto foi possível atuar coletivamente no campo do teatro, a imaginação laboratorial de Boal produziu novos experimentos: o Núcleo 2 do Teatro de Arena difundia exercícios de Teatro Jornal, em que o noticiário do dia era encenado em perspectiva crítica à noite. Mais uma vez Boal sublinhava a perspectiva metodológica do exercício. Não era só o assunto jornalístico que o público via, mas uma técnica transmissível que ele próprio poderia reproduzir para ter acesso a outras imagens da realidade. Boal procurava retomar o agitprop (o teatro jornal foi muito usado por Vianinha no CPC) aliado ao conceito da multiplicação de células. A ferramenta deveria ser capaz de se adequar à mão de quem usa. 

Com sua prisão no início da década de 1970 e subseqüente exílio, no período mais violento dos assassinatos da ditadura, essa disposição científica, ligada a uma prática artística comunitária, sofreu um grande abalo. 

Isolado, restou a Boal, no fracionamento imposto pelo exílio, a tarefa de produzir sentido em relação à experiência passada. Assim como Brecht escreveu a parte mais famosa de sua obra nos anos de fuga da guerra e do nazismo, foi no deslocamento entre Argentina, Peru, Portugal e França, que Boal constitui as bases de seu trabalho mais conhecido, o Teatro do Oprimido

Todo grande artista ligado a uma prática coletiva sentirá como trágica a experiência de ter que atuar à distância, em abstrato, através de textos que não passam pela prova do confronto com o público. Brecht considerava certas peças da maturidade como uma “regressão técnica”, necessária diante do novo contexto de sua produção. Alguns dos primeiros trabalhos de Boal no exílio indicam a modificação de curso: da experimentação teatral dialética ele passa a procurar fórmulas que superem as contradições do projeto de uma arte popular crítica e radical que parecia ter fracassado. “É preciso cunhar fórmulas”, já disse Brecht, mas a redução que facilita a circulação é a mesma que traz a perda da complexidade. 

Talvez haja um deliberado recuo necessário nas reflexões de Boal contidas no mais famoso de seus livros, Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas, publicado pela Civilização Brasileira, de Enio da Silveira, em 1974. É uma compilação de trabalhos críticos ligados aos anos anteriores do Teatro de Arena, reorientados por uma idéia que seria decisiva para ele a partir de então: a tradição do drama ocidental se baseia na intimidação poética e política do espectador. Seria, portanto, preciso ir além e ativar literalmente o público: “O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude.” Em outros termos, é preciso que alguém diga stop e o próprio espectador suba ao palco e conte sua versão da história, como ocorre na técnica que Boal batizou depois de Teatro Fórum.

A simplificação teórica está em dizer que o ato de espectação é necessariamente passivo. E que o público, por estar sentado, é desde sempre vítima do consumo das imagens. Como bom dialético, Boal sabe que exercer a imaginação, o senso crítico e a sensibilidade são atividades produtivas. Depende do modo como a relação teatral se configura. Mas como em outras ocasiões, esse limite idealista da teoria é autonegado pelas demonstrações práticas que surgem nos livros posteriores, todos manuais de prática teatral: Técnicas latino-americanas de teatro popular, 200 exercícios e jogos para o ator e o nõa-ator com vontade de dizer algo através do teatro, Stop: c´est magique! Nenhum artista brasileiro até então produziu uma síntese tão inventiva de procedimentos de trabalho teatral com vistas a sua utilização deslocada.

Em Stop: c´est magique! Boal revela o principal motor das várias técnicas abarcadas sob o título Teatro do Oprimido (a do Forum, da Imagem, do Teatro Invisível etc.): transmitir a qualquer um os meios de produção teatral como ferramentas para uma consciência pedagógica. E essa pesquisa não cessou até sua morte, como testemunham os tantos trabalhos em movimento que Boal publicou ao longo da produtiva vida. 

Enio Silveira estava certo quando batizou o livro famoso de Boal nos termos de Paulo Freire. A ênfase saía de vez do campo estético e passava ao aprendizado teatral através do jogo anti-ideológico, em que não há mais a palavra autorizada, mas a experiência comum. 

Uma leitura do conjunto de seus escritos revela o cuidado com que o dialético Boal procurava extrapolar o esquema dualista em que se funda a oposição opressor-oprimido. Libertar-se é transgredir, ele dizia. Mas ao mesmo tempo em que a fórmula parece fazer abstração da luta de classes e das categorias políticas do conflito social, Boal exigia que os casos de opressão pessoal discutidos por seus grupos fossem exemplares segundo pontos de vista políticos e sociais. A ferramenta do teatro a serviço da mudança, em todos os níveis da existência. Como hegeliano, Boal trabalhou por um sistema. Como artista, manteve-o inconcluso, à espera da modificação prática.

No simbolismo de que todos nós podemos ser atores se encontra o desejo radical de que os oprimidos pelas dinâmicas da exploração se tornem sujeitos da história. Daí sua inversão revolucionária do sentido do teatro, daí a constatação de que esse trabalho depende sempre do outro, de continuados intercâmbios com agentes da luta social, o que inclui sua experiência como vereador e o belo trabalho com o MST nos últimos anos. 

Pouca gente amou tanto o teatro como Augusto Boal. Ele, que nos ensinou a desmontar a teatralidade opressiva entranhada nas formalizações culturais e nos mostrou que o teatro deve ser praticado com risco, pois o que está em jogo é o combate pela vida.

Publicado em Vintém n.7, 2009, pp-61-66. É uma versão diversa do texto Um idealista prático, publicado em Carta na Escola, edição 37, São Paulo, Editora Confiança, Junho-Julho 2009, pp.52-55. Foi depois incorporado ao posfácio publicado no livro Jogos para atores e não atores, de Boal. São Paulo: Sesc, Cosacnaify, 2015. Relançado recentemente pela editora 34.

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Apontamento sobre o teatro gestual em Diderot (2020)

O pensamento teatral do filósofo-dramaturgo Diderot está atravessado pela percepção de que a beleza, a força e a verdade da experiência teatral se ligam a uma dramaticidade de tipo gestual. O desenvolvimento dessa visão constitui a base de sua proposta de uma poética feita de quadros, que devem ser estruturados por pantomimas, algo que ele apreciava, desde cedo, na poética de Shakespeare.Em 1751, quando não imaginava qualquer projeto teatral, Diderot observa, na Carta sobre os Surdos e Mudos, que quase sempre é possível substituir as palavras pelos gestos. E que existem, na vida e na arte, alguns “gestos sublimes” que toda a eloquência oratória jamais conseguirá expressar:

“Tal é o de Macbeth na tragédia de Shakespeare. A sonâmbula Lady Macbeth avança em silêncio e com os olhos fechados sobre a cena, imitando a ação de uma pessoa que lava as mãos, como se as suas ainda estivessem tintas do sangue do rei que ela degolara havia mais de vinte anos. Não sei de nada tão patético em discurso do que o silêncio e o movimento das mãos dessa mulher. Que imagem do remorso!” (1)

No romance satírico Joias Indiscretas, escrito pouco antes, em 1749, quando era apenas um espectador da cena parisiense, ele estava interessado no teatro como termômetro das dinâmicas sociais. Não era um interesse de ordem poética, mas sim relativo ao funcionamento social do teatro. No capítulo sobre a comédia, ele esboça uma crítica ao sentido ornamental de todo convencionalismo em arte que dificulta o reconhecimento do novo (2). O teatro, para Diderot, estava tomado por fórmulas artificiais de emotividade, por reproduções orientadas para um público que, a rigor, era indiferente ao palco porque se teatralizava e se emocionava consigo mesmo, como sugerem as “joias falantes” do romance.

Sua aproximação, nos anos seguintes, do mundo da escrita e da reflexão teatral, tem como interlocutores, portanto, um sistema de convenções com valores contraditórios: de um lado, persistia, nos meios letrados, o sistema poético aristocrático do neoclassicismo francês, com suas regras de composição literária e suas definições normativas sobre gêneros: a tragicidade era extraída das crises da individuação dos nobres, e a comicidade da sátira da vida burguesa, sendo que ambas exigiam modos de organização formal reconhecíveis; de outro, um aparelho teatral que, a despeito de sua modernização relativa, se autonomizara, se tornava autorreferente, efeitista, um espelho da dissimulação social maior, incapaz de emoções e virtudes “verdadeiras”.

É preciso dizer que o projeto de Diderot de um teatro feito de quadros verdadeiros nunca se libertou totalmente das dimensões conservadoras da cena literária neoclássica à qual se opunha, nem do confinamento individualizante do palco fechado. Só após a escrita do Paradoxo sobre o Comediante, de 1769, e do contato com Lessing, ele foi capaz de declarar de modo mais aberto seu fascínio pela energia do modelo shakespeariano, poeta da palavra concreta e gestual. Antes disso, procurava dialogar com as posições de Voltaire e seguidores, autor-filósofo que sempre considerou “monstruosas” a falta de decoro, a ausência de regularidade e a bufonaria híbrida expostas nas peças de Shakespeare.

Em sua primeira tentativa como autor dramático, O Filho Natural, de 1757, vemos o esforço crítico de Diderot em dialogar com o teatro realmente existente. É ali que a importância da gestualidade é descrita pela primeira vez como uma possível ferramenta poética de acesso a uma Natureza inquieta, feita de dores e gritos reais, que já pouco encontrava lugar num teatro feito de modelagem retórica aristocratizante e personalismo interpretativo. Não é o caso de analisar o notável material, composto por uma apresentação da suposta “história verdadeira”, pela própria peça, e pelas Conversas teóricas com seu “autor”, Dorval, nesta nota tão breve. Quero registrar apenas a estrutura de camadas sobrepostas que contém, em si mesma, uma concepção híbrida – e gestual – de teatro, à partir da tensão entre a teoria aberta e a prática insuficiente da peça. O leitor entra no volume seguindo uma personagem “cansada”, o próprio Diderot, após o trabalho em torno do sexto volume da Enciclopédia, em sua visita à família de Dorval. Ali ele toma contato com a história emocionante de uma família. O acontecimento foi registrado por escrito numa peça que é reencenada pelos próprios agentes todos os anos, no salão da casa, como se fosse um rito comemorativo. A comédia lacrimosa sobre as “provações da virtude” em meio a angústias e confusões amorosas, é seguida de um diálogo entre Diderot e Dorval. Eles conversam sobre as dificuldades de representação de “quadros reais” da vida familiar quando o artista pretende que o critério de verdade venha das condições da vida mesma e não dos valores estéticos de uma cena convencional ou de uma caracteriologia interpretativa fácil. A procura da verdade do quadro, tal como fazem os pintores, contra os truques e os golpes teatrais, deve vir, entretanto, acompanhada de uma consciência sobre o sentido paradoxal de toda representação, que sempre envolve elaboração, enquadramento, organização da matéria, procura de consistência formal. Assim, entre a orientação para uma nova atitude realista, e a percepção de uma estilização sempre necessária (que corre o risco de ainda se aparentar aos padrões poéticos do passado), ganha destaque a mediação possível dada pela pantomima, essa “arte perdida” que “os antigos conheciam bem”. Era através da composição gestual, segundo Dorval, que o pantomimo representava outrora todas as condições sociais: “os reis, os heróis, os tiranos, os ricos, os pobres, os habitantes das cidades, os do campo, escolhendo de cada categoria o que lhe é característico; em cada ação o que ela tem de tocante.” (3). A pantomima surge, assim, para Diderot, não como descrição do particular, mas como síntese de elementos característicos, como via de acesso à condição social. Nas Conversas, Dorval afirma que não sabe ainda “até onde a pantomima pode influir na composição de uma obra dramática e na representação”, mas é certo que sua utilização pode ajudar a estruturar “gêneros novos” (4).

Mesmo hesitando em romper com o decoro do tempo e ainda incapaz de dar forma prosaica e material à luta de classes em curso (a França estava na iminência da revolução), seu anseio por um grito de dor real em cena o aproxima da “fala” muda dos gestos, com seu potencial de instaurar atritos inconscientes na cena e expressar as pressões abstratas da condição social. No momento em que tentava valorizar positivamente a vida familiar da pequena família patriarcal, ele propõe o uso do recurso pantomímico. Strindberg, décadas depois, talvez conhecendo os escritos de Diderot, propõe o mesmo procedimento para representar de modo mais “naturalista” o inferno da família burguesa, em sua Senhorita Júlia. A pantomima ressurge como possiblidade de abertura extra-dramática, como elemento narrativo, com potencial de abertura ou de distanciamento do drama dialógico com suas vozes da consciência.

No conjunto composto por O Pai de Família e o Discurso sobre a Poesia Dramática, publicado um ano depois, ainda que haja menos camadas metalinguísticas, a forma ensaística e experimental também se oferece ao leitor como uma “cena composta” em que os escritos têm algo de um gesto teatral. Diderot não teoriza mais por meio de diálogos, mas na forma de um tratado. Descreve em termos didáticos seu ideal de uma poética baseada em quadros, em que os gêneros se deslocam, em que uma comédia deve mostrar seu avesso e indicar o sentido trágico da condição burguesa, mesmo que apresente aristocratas decadentes como são os de sua peça: tragédia doméstica e comédia séria são os nomes pelos quais o drama vem a se estabilizar como gênero. Um dos motores da reflexão parece ser a acusação feita por Fréron de que O Filho Natural não era mais do que um plágio da peça O Amigo Sincero de Goldoni (5). Não por acaso, o capítulo final do Discurso é aquele famoso texto sobre autores e críticos que circula até hoje de modo autônomo. Por outro lado, é no penúltimo capítulo, para onde o texto converge em termos poéticos, que Diderot trata com detalhes da pantomima. Contra aqueles que diminuíram o valor de sua peça anterior com base em preceitos gerais extraídos de um amálgama de casos particulares, ele volta a propor a necessidade de uma maior verdade dos materiais, daí sua menção inaugural à “quarta parede” imaginária que separa atores da plateia. Mas esse novo teatro da era burguesa, numa zona intermediária entre tragédia e comédia, fechando-se no palco real e nos cômodos da casa de família, deveria também ser aparentado ao romance doméstico, e se tornar, portanto, épico: “Uma das principais diferenças entre o romance doméstico e o drama é que o romance segue o gesto e a pantomima em todos os detalhes: o autor se dedica a pintar movimentos e impressões” (6). Sendo a pintura dos movimentos o que encanta nesses romances, sua capacidade de registrar estados de alma na relação com a condição das personagens, também o teatro, diz ele, ganhará vida se o poeta aprender a contrapor os gestos aos discursos dialogados, quando conseguir fazer uso de cenas compostas, aquelas feitas de vários níveis de ações simultâneas, em que os diálogos são acompanhados de subcenas pantomímicas, tal como ocorre na cena de Macbeth citada há pouco, em que a loucura da senhora do castelo é observada e comentada pelo médico e pela ama que a contemplam de longe. O princípio episódico e desviante que caracteriza a tradição épica se infiltra, assim, em sua visão dramática, em outro aspecto de sua mutante perspectiva teatral que desconfia da exigência de uma continuidade absoluta, ideal que migrava do estilo neoclássico para o drama burguês em formação. É nesse sentido que Peter Szondi, sem fazer uso da palavra épico, observa que “nos dramas burgueses de Diderot parece que o tempo quer sempre parar” (7).

Em O Pai de Família, em meio ao sentimentalismo excessivo do conjunto, existe uma longa rubrica na abertura do segundo ato que descreve uma cena de diversas camadas gestuais: numa espécie de desfile, entram na casa representantantes de diversas classes sociais. Estão ali porque dependem do pagamento ou dos favores da família de nobres decadentes. Junto com os empregados, entram um lavrador, um homem miserá-vel, uma vendedora de tecidos. O autor nos informa que a cena é composta de duas cenas simultâneas, uma delas feita à meia voz. Não por acaso, foi uma das cenas amputadas quando a peça chegou ao palco pela primeira vez (8). É o momento em que o pai de família, ciente de que sua casa está de fato “pouco endinheirada”, ordena que, mesmo assim, as dívidas sejam pagas: “Não quero que ninguém padeça. Nem por amor da minha comodidade devo reter o suor alheio.” Em seguida, sem que as outras personagens o vejam, o pai dá uma esmola ao homem pobre e o acompanha até a porta. A cena parece confirmar a observação feita por Szondi de que Diderot imaginou um “drama burguês” sem conflitos sociais, incapaz da luta de classes, antes como um movimento de fuga para uma intimidade abstrata, para uma interioridade doméstica, para um ideal de humanidade virtuosa e capaz de afetividades justas e idealizadas. Por outro lado, apenas por almejar o retrato da condição à frente do caráter das personagens, por meio de ações gestuais (ainda compreendidas como condições dadas pela situação familiar, e não como categorias ligada aos mundos do trabalho) introduz na cena uma inesperada dimensão concreta que tem o potencial cênico de inverter a relação entre figura e fundo, e criticar o núcleo dramático. Talvez por isso a cena tenha sido cortada. E ele precisava de uma teoria que chamasse a atenção para algo que sua obra era ainda incapaz de realizar. Entretanto, no atrito entre a peça e as reflexões, um campo de pesquisas se abria.

Em diversas ocasiões, Brecht se referiu à importância do trabalho teatral de Diderot, autor que considerava fundamental para os estudos de arte e dramaturgia, em especial para aqueles que pretendem a junção entre teoria e prática, a aproximação entre teatro e filosofia. Em 1937, Brecht tentou mobilizar um coletivo de artistas e e intelectuais antifascistas, visando colaborações e ações conjuntas. Batizou o projeto de Sociedade Diderot. Nas cartas que escreveu aos parceiros possíveis (gente como Piscator, Eisler, Eisenstein, Tretiakov, Auden, Isherwood, Jean Renoir) ele prestou uma bela homenagem ao escritor francês. Dizia, em seus convites, que a pequena sociedade deveria ser composta, exclusivamente, por “pessoas produtivas”. Assim como Diderot mobilizou uma geração em torno de uma síntese enciclopédica dos saberes praticáveis de seu tempo, Brecht entendia que, na luta contra a desordem capitalista, não era hora para grupos meramente representativos. Era preciso viabilizar encontros pessoais, feitos do “olho no olho”, em torno de uma “sociedade produtiva” animada por pessoas que fossem capazes de pensamento, imaginação e práticas coletivas novas.

(Publicado originalmente no livro organizado por mim O Pai de Família de Diderot: uma versão portuguesa do século XVIII, pp. 159-166. Disponível em https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/533/470/1818)

NOTAS

1 Diderot, D. Obras II: Estética, Poética e Contos. Org. trad. e notas Jacó Guinsburg. São Paulo, Perspectiva, 2000, p. 99.2

2 Diderot, D. Joias Indiscretas. Trad. Eduardo Brandão.São Paulo, Global Editora, 1986, p. 195

3 Diderot, D. Obras V: O Filho Natural ou as Provações da Virtude: Conversas sobre o Filho Natural. Trad. e notas: Fátima Saadi. São Paulo, Pers-pectiva, 2008, p. 118.4

4 Idem, p. 128.

5 Diderot, D. Discurso sobre a Poesia Dramática. Trad., apresentação e no-tas: L. F. Franklin de Matos. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 69.

6 Idem, p. 124.

7 Szondi, Peter. Teoria do Drama Burguês: Século XVIII. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p.114.

8 Veja-se o comentário de Fátima Saadi sobre a mesma cena, no ensaio publicado neste volume. O corte do trecho muito irritou Diderot, conforme se mostra na carta escrita a Voltaire sobre o retalhamento e a “castração” de sua peça.

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A ópera Café de Mário de Andrade: diário do encenador

A estreia da ópera Café no Theatro Municipal, a partir do libreto de Mário de Andrade, com música de Felipe Senna, pode ser considerada um acontecimento de relevância histórica para a cultura de São Paulo. Pela primeira vez, o texto escrito em 1942 como libreto para uma ópera engajada, sobre uma revolta popular desencadeada pela crise da economia cafeeira, encontrou o palco para o qual foi escrito, na cidade para a qual foi imaginado. Os ensaios dos conjuntos artísticos que realizaram o espetáculo – Orquestra Sinfônica Municipal, Coral Paulistano, Balé da Cidade, além de solistas e artistas populares convidados – aconteceram de maneira acelerada, como é padrão nas produções desse tipo de espetáculo, durante o mês de abril de 2022, com alguns encontros em março, até a estreia em 03 de maio de 2022. Um longo processo, contudo, antecedeu a sala de ensaios.

Meu contato com o texto de Mário de Andrade vinha de mais de vinte anos antes. Conheci o Café durante estudos para doutoramento, iniciados em 1998 e concluídos em 2003, sob a orientação de José Antonio Pasta. De lá para cá realizei vários experimentos cênicos com o libreto: o roteiro de um espetáculo no curso de Artes Cênicas da Unicamp em 2001, onde era professor na época, com direção de Márcio Marciano e música de Walter Garcia; uma performance cantada com Ana Luiza e Luis Felipe Gama, à frente de um quadro de Portinari com o mesmo tema; e uma oficina pedagógica, com integrantes do MST, no Estúdio da Companhia do Latão, com música de Martin Eikmeier, registrada pela equipe da TV Brasil e apresentada no documentário Ensaio sobre a Crise, de 2008. Nos três casos adaptei o material literário do Poema, sem maior utilização de seu projeto cênico, a Concepção Melodramática.

A primeira vez em que vi a possibilidade de uma encenação na forma de uma ópera se deu em 2015, a partir de um convite feito pelo Theatro Municipal, que soube de meu estudo sobre a cena modernista e me pediu um plano a ser desenvolvido com a Orquestra Experimental de Repertório, de Jamil Maluf. Esbocei a proposta de um espetáculo no estilo das cenas públicas do teatro soviético, a ser apresentado ao ar livre no Vale do Anhangabaú. Deixei de ter notícias do projeto após duas reuniões, e logo soube que escapei de boa: o então diretor da Fundação, que me fez o convite, era acusado de participar de um esquema de corrupção e submetido a investigação criminal.

Quatro anos depois, no segundo semestre de 2019, durante a gestão do ator e palhaço Hugo Possolo, o grupo teatral dirigido por mim – a Companhia do Latão – foi convidado a apresentar-se num projeto alternativo da casa, de sessões populares de teatro. Num encontro com a equipe do Municipal, contei a história do Café interrompido, e Possolo, de imediato, se interessou em realizar a ópera inédita, programada para o ano seguinte. O período pandêmico paralisou o trabalho, que dependeria da concordância da nova gestão – que assumiu o Municipal no começo de 2021. O empenho da nova diretora, a pesquisadora Andrea Caruso, e de Alessandra Costa, responsável pela empresa gestora, garantiu a continuidade do projeto Café.

Transcrevo abaixo parte das anotações sobre o processo do espetáculo. Elas registram dificuldades e belezas da encenação do texto “mítico” – em mais de um sentido – de Mário de Andrade.

Apontamentos do trabalho no Café

20.06.2021. A nova equipe do Theatro Municipal confirma o interesse em incluir o Café na programação de 2022. Deve ser feito no palco, e não mais ao ar livre. É possível o uso de algum espaço alternativo para apresentação adicional, como a Central Técnica do Theatro, no Canindé. O plano é de 5 ou 6 sessões no palco, com estreia em março de 2022. Hugo Possolo segue na Fundação Theatro Municipal, tem o apoio do secretário Youssef. As comemorações do Modernismo garantem a verba adicional para a produção, que não estava nos planos da nova empresa gestora.

25.06.2021. Consulta aos antigos materiais de estudo. Releio anotações feitas no Arquivo do IEB em 2015, quando passei um bom tempo consultando os originais e os desenhos de Mário de Andrade. Comparo as versões publicadas. No tempo da minha tese, eu desconhecia a última redação do texto, a do Natal de 1942. A publicada por Diléa Zanotto Manfio, nas Poesias Completas, de capa cinza, é do começo do mês de dezembro. A versão das Poesias Completas I, organizada por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopes e publicada em 2013, contém diferenças pequenas em relação à anterior. Há belas soluções no material bruto do arquivo, ainda inédito. Releio a preciosa introdução feita por Mário de Andrade.

01.07.2021. Consulto a tese de livre-docência de Flávia Toni, em que divulga o Plano de Marcações de Mário de Andrade para o espetáculo imaginado na Composição Melodramática. Separo as muitas cartas. Há potencial de uso no espetáculo daquelas escritas a Fernando Sabino, em torno da participação política do artista. Coletivos de criação para a composição do Café. Será impossível manter a equipe musical sonhada, dos quatro compositores com quem trabalhei no passado sobre o material: Lincoln Antonio, Walter Garcia, Martin Eikmeier, Luís Felipe Gama. Também preciso de alguém que conheça a arte da orquestração. O espetáculo deve nascer de coletivos em diálogo. Será importante um artista plástico: Marcius Galan. E diretores associados ao meu lado, para que haja invenção antes dos ensaios, para que consigamos resistir à lógica da “marcação”.

19.07.2021. Reuniões com o Municipal sobre orçamento. Pedem-me a compactação das equipes. Meu projeto de coletivização esbarra no limite do dinheiro: para cada função querem um só nome. O respeito artístico demonstrado ao meu trabalho, por Alessandra Costa e Andrea Caruso, vai permitir exceções. A composição é o grande problema. No Municipal tudo se organiza em torno do deus Música e de seu representante terreno, o Maestro. Está claro que poderei contar apenas com um único compositor popular na equipe – e o nome do Lincoln Antônio, músico brilhante, meu parceiro mais antigo da Companhia do Latão, se impõe pelo conhecimento da obra de Mário de Andrade, em especial do Turista Aprendiz.

23. 07.2021. O Theatro me autoriza a assistir ao ensaio do Balé da Cidade de São Paulo para que eu avalie a necessidade de bailarinos em cena. Primeira visita a um espaço cênico, o lindo salão da cúpula, depois de meses de pandemia, longe da cena. A beleza dos gestos e do salão de onde se avista o vale do Anhangabaú, que oculta as águas do Anhangá. Uma das coreografias é da bailarina Marisa Bucoff. Ela dança em outra, a que assisto em seguida no Paço. Tem a força da base, do “aterramento do corpo”, que permite a leveza.

28. 07.2021. Convites para formação das equipes. João Malatian, que conheci ao lado de Hugo Possolo em 2020, e não trabalha mais no Municipal, será meu assistente de direção. Foi inexplicavelmente afastado pela nova gestão. Conheci-o quando discutimos o projeto no passado. Um guia no mundo da ópera. Estará ao lado de Maria Lívia Góes, parceira que comigo carrega o piano da Companhia do Latão, vai assinar como co-diretora. Sayonara Pereira, companheira da USP, fará a direção coreográfica do Balé da Cidade. E a maior das atrizes, Helena Albergaria, cuidará da preparação dos elencos, em especial dos artistas convidados. Hesito na definição do papel da Mãe: ou alguém com experiência de militância na vida real, como Alana Pereira, do Assentamento Santana do Ceará, para declamar o poema, ou Juçara Marçal, que imprimirá ao canto uma qualidade nova, de que só ela é capaz. O Theatro parece não ver problemas na minha vontade de incluir no espetáculo o coletivo cultural do MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, com quem já colaborei.

03.08.2021. Em reunião comigo e com Lincoln Antonio, o Maestro Minczuk, da Sinfônica Municipal me pergunta por que não faço uso da versão de Koellreutter, encenada por Fernando Peixoto em 1996. Falo da importância de uma música que corresponda ao projeto híbrido de Mário de Andrade, e digo, blefando, que nossa equipe de composição também fará uso dos fragmentos compostos por Francisco Mignone, que suponho localizáveis. “Vá atrás do Mignone!”, ele me sugere enfaticamente.

04. 08. 2021. Por indicação de Alessandra Costa, convidei o compositor Felipe Senna para a equipe de composição musical, ao lado de Lincoln Antonio. É um artista jovem, com formação erudita e conhecimento de vanguarda brasileira. Gostei do pouco que ouvi de sua música e ele se mostrou animadíssimo com o convite. Sigo na tentativa de um roteiro preliminar que permita uma noção mais exata do número de pessoas em cada cena. Uma dramaturgia de grupos de trabalhadores, com poucas figuras individualizadas, multidão que sofre com a crise econômica e se revolta com o desemprego, até se encaminhar para a luta revolucionária: a quantidade de pessoas no palco depende de uma relação mais ou menos épica da cena. Reafirmo ao Theatro a importância de contarmos com pessoas do canto popular e do circo, além dos corpos estáveis. Quero a presença de um rapper-compositor, talvez Mano Brown – para que possamos gerar estranhamento na narrativa de Mário de Andrade, no sentido brechtiano de estabelecer a imagem histórica, “estrangeirizada”, que se descola do drama musical. Penso em criar uma ruptura no ato final, quebra metateatral do fluxo melodramático na cena da Revolução.

05.08.21. Felipe Senna não se preocupa com o prazo curto. Me diz que pode assumir a orquestração, área onde tem experiência. Não esconde que preferia compor sozinho, mas ao que parece vão cooperar bem: Lincoln pode assumir as partes cantadas e Felipe as demais, e o plano geral. João Malatian, funcionário de tantos anos do Theatro e cantor, pode nos ajudar como mediador. Quanto ao possível material adicional de Mignone, Felipe prefere não usar, pois teriam que gastar tempo para torná-lo trabalhável. Sigo, de qualquer modo, na “investigação Mignone”. Maria Lívia consulta a Biblioteca Nacional. A direção do Municipal manifesta alívio ao saber da presença de um compositor erudito em nossa equipe, informação que apazigua a desconfiança dos corpos musicais em relação ao projeto incomum de uma ópera sem solistas.

10.08.21. Há na correspondência de Mário de Andrade indícios inequívocos de que ele e Mignone trabalharam no Café. A ideia do Quinteto de Serventes na Câmara Balé foi do músico, incorporada por Mário ao texto. É por isso que suponho a existência de rascunhos melódicos, esboçados na fase de conversas. A pesquisa, entretanto, aponta o contrário. A filha de Mignone, Anete Rubin, responde à minha carta de modo amável. Sugere que eu fale com Alessandro Moraes, da Academia Brasileira de Música. Ele informa que não tem nenhum material da ópera. E que no catálogo do Mignone, organizado pelo musicólogo Flávio Silva e republicado pela Academia em 2016, consta na página 133, a seguinte observação: “O café, que Mário de Andrade idealizou para ele, e que foi composta, mais tarde, por “um tal de Koellreutter” (de acordo com artigo publicado pelo compositor no Jornal do Brasil de 6/4/1968)”. Ainda que Mignone possa ter feito algum esboço, não o deixou nomeado. Flávia Toni, a quem escrevo, também crê “que o Mignone não escreveu nada para o Café”. Me conta que, certa vez assistiu a um documentário sobre o maestro, chamado Lição de piano, onde ele contava que – quando os dois amigos se encontravam –, Mignone tocava, ao piano, certos “trechos da embolada Andorinha preta, que o Mário de Andrade sugerira como paródia para a Embolada da Ferrugem.” Informa-me que “a viúva Mignone nos doou” (ao IEB) “apenas um exemplar bem antigo de um manuscrito, se não me engano, da Festa das Igrejas.” E lembra que, em certa ocasião, “o Egberto Gismonti se interessou bastante em musicar o Café”. E que ela o considera “a pessoa ideal para musicar o poema”: “Conversamos um pouco a respeito. Me parece até que ele chegou a discutir alguns aspectos com o Sérgio Barbato, falecido de forma trágica.”

26.08.21. Inicio o estudo de primeiro roteiro com a equipe de músicos. Eu, Felipe Senna, Lincoln Antonio e João Malatian nos reunimos na casa de Felipe. Maria Lívia nos acompanha pelo celular, de Santa Catarina. Orientações minhas para o trabalho de composição: atenção à dimensão trágica do Café; procura de um pathos de excessos, de “intensidade coral”; necessidade de elevação do estilo acima do realismo e do drama social; atenção à interação contraditória entre o elemento trágico e o farsesco, na medida em que a dor da fome dos estivadores interage com o jogo do “truco disfarçador”. É muito importante a mudança e combinatória de atmosferas, como na sequência em que a coreografia ridícula dos deputados da Câmara grotesca prepara a beleza trágica e profética do canto solo da Mãe, num ato pensado, em termos cênicos, no estilo expressionista-social do balé Mesa Verde, de Kurt Joss. O grito pungente da mãe emerge, abruptamente, da farsa. A dança dos estilos às vezes se funde em ironia, ou se resolve no “transe” coletivo. A musicalidade popular brasileira ronda a obra, e aparece vez ou outra de modo explícito. Contribui para a dicção em “êxtase” extraída por Mário de Andrade da poesia dos bardos celtas. O elemento popular não aparece de modo fácil, ainda que o poeta imagine seus cantos do povo como “assobiáveis”. Qualquer exibição de erudição musical é tolerável apenas onde o tecnicismo soa ridículo ao público, como na Câmara Balé. Vejo que essa última sugestão, a de uma luta contra o “eruditismo”, gera certo desconforto em minha equipe, que sabe da importância de atendermos às expectativas “elevadas” da orquestra. Escuto o argumento de que “a música brasileira de vanguarda no tempo de Mário é diferente da nossa”. Acho divertido o esforço de enquadramento do texto num gênero: será um oratório bailado?

27.08.21. A notícia da saída de Alê Youssef da secretaria de Cultura, acompanhada da demissão voluntária de Hugo Possolo da Fundação Theatro Municipal, ameaça a continuidade do Café e o ciclo de comemorações do Modernismo. Todos da equipe me ligam para comentar o caso. Escrevo à direção do Theatro que responde: “Seguimos com o Café”.

15. 09. 21. Meu ideal algo ingênuo de uma parceria fraterna entre o popular e o erudito naufraga na incompatibilidade das visões musicais e na pressão do curtíssimo tempo de composição. Não há condições de um processo de vai e vém, necessário à criação conjunta. A isso se junta o desejo de autoria de Felipe Senna – que vai de encontro às expectativas do Theatro. Todos os tempos da máquina produtiva me impõem a lógica dos resultados e a definição das especialidades. Do ponto de vista deles, o processo se funda na responsabilização individual dos agentes – algo a ser registrado contratualmente. Cada um deve entregar seu produto autônomo num prazo exato, como partes do meu grande produto. O Theatro questiona a necessidade de dois assistentes de direção, mesmo quando não usamos esse nome para as parcerias de Maria Lívia e João Malatian; e dos dois cenógrafos, Marcius Galan e Cássio Brasil, quando bastava um só. A pressão para a escolha de um único compositor se torna cotidiana: “Em relação à composição, é importante termos o esclarecimento de como será o processo. Pois estamos percebendo que será muito complicado a composição ser feita de modo conjunto e corremos um grande risco, pois os prazos são, de todo modo, curtos. Por mais que seja possível ganhar alguns dias, não é isso que irá fazer com que as coisas fluam entre dois compositores de universo tão distinto e que nunca trabalharam juntos.” As mensagens contém ainda a informação velada de que a partitura é a prioridade atual, para a qual há recursos garantidos, e que não há certeza absoluta de que farão o espetáculo. Nunca tive tantas pressões num projeto artístico.

20.09.21. Estudo alternativas antes da decisão de conferir a Felipe Senna o controle da composição. Escrevo ao maestro Sérgio Alberto de Oliveira, da USP de Ribeirão Preto, à procura de uma partitura do Café encenada por ele, anos atrás, feita com base na música de José Gustavo J. de Camargo. Ele me envia a gravação do espetáculo e me adverte de que existe um certo imbroglio sobre os direitos autorais. Apesar de bons momentos musicais no material, descarto sua utilização.

23.09.21. A continuidade do projeto de Café depende da centralização da composição. Após conversas dificílimas entre mim e os músicos, chegamos ao acordo de que Lincoln seguirá compondo trechos específicos e vai assinar a “música popular adicional e consultoria musical”. A decisão trai meu projeto de hibridismos deliberados e me causa muito sofrimento. Por outro lado, observo que Felipe Senna compreendeu a importância de uma forma contraditória, sonhada por Mário de Andrade, ainda que possa eventualmente discordar dela. É o único com o conhecimento da máquina e energia para a tarefa, quase impossível, de compor uma ópera em três meses. Promete entregar metade do “vocal score” até o fim de dezembro e o restante em fevereiro, para que se cumpram os tempos necessários à impressão das partituras e para que o Coral possa estudá-la antes de março. Sacrifico um ideal que estava na origem do projeto, para que o Café se realize.

24.09.21. Iniciamos o trabalho com a equipe cenográfica. Aqui, a parceria proposta por mim, entre Marcius Galan e Cássio Brasil, é alegre e entusiasmada. Cássio, com quem colaboro há anos, tem o conhecimento específico da ópera e é admirador de Galan, artista plástico que deve trazer uma nova visão à maneira como costumo conceber a cena. Sua tendência à visualidade abstrata vai gerar um atrito interessante com meu gosto por uma “cena da imaginação”, feita de detalhes concretos. O Theatro, que se opunha também a essa duplicação de função, parou de questioná-la no momento em que eu confirmei o nome de Felipe Senna como o compositor do Café. Terei tranquilidade por algum tempo.

01.10.21. Reunião com o coletivo de Cultura do MST. Animam-se com a importância histórica dessa participação na ópera de Mário de Andrade, de tema agrário. A parceria de muitos anos garante a confiança na relação. Eu e Maria Lívia apresentamos a ideia, dada por Felipe, de que eles toquem a percussão em enxadas e outros instrumentos de trabalho, após a entrada pela plateia, em parceria sonora com a orquestra. Seu texto coral será escrito por eles próprios.

13.10.21. Tem início o trabalho de composição musical. Felipe já escreveu uma versão da Discussão entre os camponeses e os patrões fazendeiros. É das cenas mais difíceis pela irregularidade dos versos. Eu sugiro que os camponeses batam os facões uns nos outros durante o diálogo cantado, de modo a aumentar a ameaça da violência. Mário de Andrade intuía que poderia ser das cenas mais interessantes como teatro. Nas conversas sobre a cenografia, imaginamos deslocar o tempo do original: o cafezal estaria em processo de desativação, de amputação das árvores. Alguns atores poderiam usar pernas-de-pau para a poda. Maria Lívia localizou uma fotografia em que isso é feito numa fazenda dos anos 1940. Marcius me aponta o detalhe do toco de árvore no quadro de Portinari, próximo ao trabalhador, com o cor-de-rosa vibrante. Pelo que pude entender, Felipe e Lincoln ainda colaboram em alguns temas, como a cena dos solteiros na Estação de Trem, em que há a pantomima com a banana. O mais importante é que a música começa a existir. Todo o dia alguém da equipe me pede ajuda no processo de contratação. Ninguém gosta de trabalhar sem garantia, diante de um compromisso desse tamanho. Felipe está especialmente preocupado. Quer a confirmação por escrito de que terá os copistas assistentes de sua confiança, que permitam as transcrições e a orquestração em alta velocidade.

14.10.21. A direção me garante, agora oficialmente, que Café está na programação do ano que vem, com estreia em maio.

26.10.21. Quase três meses depois do convite, nenhum contrato. A equipe segue me perguntando sobre a realidade da montagem. Felipe Senna decide paralisar a composição até que a situação se resolva.

16.11.21. Reunião com o Municipal, em que novas garantias são dadas. A direção parece empenhada mas trava combates internos. Na conversa com Maestro M., eu e Felipe Senna explicamos novamente que não se trata de um “teatro cantado” e sim de uma ópera. O problema maior, como sempre, é a definição do gênero, e as expectativas de uma “qualidade operística” com critérios institucionais para lá de discutíveis. Eu já não me abalo mais com a desconfiança. Ela vem do projeto incomum de Mário de Andrade, que ao certo se divertiria com esse debate. João Malatian, conhecedor da língua antiga do mundo da ópera, oferece a segurança técnica que permite a Felipe Senna vestir a máscara do enfant-terrible da cena lírica experimental. Ao fim da conversa ele exige ter seu nome à frente do de Mário de Andrade, conforme a tradição da ópera. A atitude autoral, aurática, e a ostentação do estrelismo técnico, são partes dos códigos do ambiente e geram um respeito patético. O maestro pede ao compositor que inclua na partitura, se possível, as duas harpistas que têm em seu conjunto.

17.11.21. Ajustes na equipe devido ao orçamento. Redução do número de artistas de circo. Imagino a presença de palhaços narradores para os papéis na Câmara dos Deputados. Eles podem atuar também em outras cenas, ao lado de números aéreos. Consultamos a equipe do circo Zanni. Diante da dificuldade de falar com Mano Brown, aceito a sugestão de Felipe Senna, reforçada por Juçara Marçal, para que chamemos Negro Léo no papel inventado por mim – o de um motoqueiro rapsodo que canta a atualidade das ruas de São Paulo em meio à cena da revolução. O trabalho de Leo me parece excelente, intuo que é a escolha certa. A personagem é inspirada no modo como os motoqueiros ajudaram Chávez a resistir a um golpe de estado na Venezuela, levando ao povo informações omitidas pelas rádios e jornais, ajudando a que as ruas fossem ocupadas. Entre o mito e a história, entre a imagem social e a mística, o Café constrói seus tempos e contratempos polifônicos.

30.11.2021. Conversas quase diárias sobre a composição. Felipe me consulta sobre supressões de versos, acréscimos de artigos, possibilidades de pequenas variantes nas palavras. Trabalho com a equipe de cenografia formada por Cássio Brasil: estudamos as muitas fotos selecionadas por Maria Lívia e pela equipe de arte. Procuramos a interação entre o antigo e o novo: na Companhia Cafeeira do Oeste Paulista pode haver um trator, um teodolito, um caminhão inglês. Nas ruas da cidade grande, os latões de fogueiras arcaicas.

07.12.21. O último ato tem pouco canto coral e muita ação coreográfica. Felipe entende minha intenção de trabalhar com luzes móveis, com faróis de bicicletas e lanternas para criar a noite. A luta será feita em estilo kabuki: dois “sombras” iluminam os gestos dos combatentes. Ele me pede a definição do texto do rapper, mas ainda não falei com Negro Léo. Quero que ele escreva sua própria intervenção poética, em diálogo com a do MST e a de Juçara Marçal, no papel de Mãe. Uma alegria ter Juçara, de novo, por perto, entre o riso e a melancolia, uma artista maior. Pressionamos o Theatro para que confirme a contratação dos solistas adicionais, que ajudarão em pequenos papéis de patrões e deputados. São vozes de tenores e contralto que faltam ao Paulistano, e que poderiam ser emprestadas pelo Coral Lírico, que recusa-se a colaborar, sabe-se lá a razão.

18.12.21. Visita técnica, dias atrás. Pergunto sobre a chance de fazermos uma passarela que comunique a plateia ao palco, para que o MST possa atravessar o fosso da orquestra e chegar ao proscênio, pela frente. “Impossível! Para que isso?” Descrevemos outras ideias da cenografia, entendemos a estrutura dos elevadores, que propiciam variações nas alturas do palco. “Não dá, para que isso?” Arrastam-nos para uma conversa sobre produção. A tensão entre os funcionários e a nova gestão é escancarada para nós. Temos que discutir cifras para provar que a nossa ópera é possível. Hoje faço uma reunião com Melissa Guimarães, a iluminadora com quem trabalho há anos, e com Sayonara Pereira, coreógrafa de formação artística entre o Brasil e a Alemanha. Que os sonhos não se percam em planejamentos difíceis. Insisto com Felipe para que o caráter coletivista da música não se esvazie em certas adaptações, como a do “cantador” proposto por ele para a cena da Estação. Ele já resolveu a cena do Porto, e grande parte da cena dois. Discutimos os tempos musicais mínimos para as transições de cenários.

24.12.2021. Véspera de Natal, 39 anos depois da redação final do Café, de Mário de Andrade. Felipe me escreve: “Tentando ser fiel ao M.A. em tudo que é possível, mas com uma dose de realismo em função de nosso prazo surreal.” Compôs a Canção da Vida.

13.01.22. A direção do Theatro me dá a boa notícia da contratação do Maestro Luís Gustavo Petri para a regência musical do Café, pois os da casa não estarão disponíveis. Descubro a incrível coincidência: ele foi o regente da encenação de Fernando Peixoto, em 1996, em Santos, feita com a música de Koellreutter.

02.02.22. Reuniões amoráveis em torno da “quebra rapsódica”, com Negro Léo e Juçara Marçal. Em pouco tempo chegaremos à intervenção poética no Ato Final. O MST precisa participar logo da conversa e oferecer sua proposta. Convidei o ator Carlos Francisco, parceiro dos tempos do Arte contra a Barbárie, movimento politizado do teatro de grupo de São Paulo, como o único ator da ópera, com participações gestuais e narrações. Carlão será Mário de Andrade, sem que isso se evidencie. O barco segue em curso menos tempestuoso e a marujada pode contemplar a beleza do dois de fevereiro.

09.02.22. Trabalho diário da equipe de cenografia. Uma maquete do nosso cenário no palco é construída e apresentada por Annick Matalon e Octávio Zazzera, assistentes de Cássio Brasil. Reuniões no estúdio de Marcius Galan em Santa Cecília. O projeto deles faz uso de grandes andaimes que vão ser deslocados para compor os diversos espaços, como se fossem módulos construtivistas. Experimentamos com a maquete e chegamos a algumas configurações interessantes: no Porto Parado, as sacas de café se amontoam como na descrição de Mário e ao fundo haverá um portão de ferro e cordas sustentado no andaime. Proponho que ao abrir, ela possa revelar uma imagem marítima: os mastros de uma nau antiga, colonial. Marcius fará um esboço. No Cafezal, um tecido enorme deve vir do fundo para cobrir as sacas de café deixadas da cena anterior, de modo a criar um terreno ondulado. Os andaimes, em outra posição, se tornam as galerias ocupadas pelo povo, na cena da Câmara dos Deputados. Ainda debatemos a utilidade deles na Estação de Trem. Na cena final, a imagem será a da uma rua de cidade grande, e os andaimes serão revestidos de madeira e plástico para criarem as paredes das casas pobres. Ao fundo, um enorme pedestal com um resto de estátua. A animadíssima equipe se pergunta sobre a estátua. Um Borba Gato? Apenas seu chapéu? Ou uma escultura “clássica” pichada?

18.02.22. Visita à Central Técnica do Canindé à procura de sobras utilizáveis de óperas antigas, que sirvam à nossa cenografia. Também Fábio Namatame, figurinista com quem trabalho há anos – outro de nossos guias no mundo da ópera – acompanha à distância as decisões da cenografia. Se o conheço bem, deve “entrar em cena” na última hora. Não há quem não o conheça e respeite no Theatro. Na Central Técnica, encontramos outra lenda do Theatro, o cenotécnico Pelé. Tudo para ele é possibilidade. Dança ao falar conosco, enxerga em tudo o lado fácil. Maria Lívia organiza a listagem de adereços e checa os tempos de música em cada transição, para que avaliemos a quantidade de materiais. João Malatian organiza os cronogramas.

26.02.22. Felipe está perto de terminar as partes corais, me diz que o Coral do Abandono ficou emocionante. Os ensaios vão começar. Tempos atrás mexemos na letra que ele expandiu do provérbio “Laranja no café é azeda ou tem vespeira”. No telefone, ele me disse: “Fiz uma canção popular, escuta.” EU – “Está bacana, me dê até amanhã para que eu possa mexer na letra.” ELE – “Só tenho hoje para compor, tem que ser agora.” EU (rindo) – “Então vamos lá.” Em outra ligação me disse: “Tenho uma questão. No texto: Esta boca aberta a que ninguém responde /Boca aberta que o sol dos verões seca logo /A que a poeira apaga a voz…Esse “a que a” não soa bem no contorno melódico de que preciso…não poderia ser apenas “que a poeira apaga a voz”?

01.03.22. Gravamos os parlatos radiofônicos, da cena da Revolução, no estúdio na casa de Felipe Senna. Negro Leo, além de poeta é excelente ator. Fazemos uso das gravações de Marighella, por sugestão de Maria Lívia. Leo chega à melhor versão de seu poema rapsódico: “Boa noite, gostaria de lembrar a todos nesse teatro, que somos coniventes com o assassinato, em geral, a fórmula típica do telejornalismo, a mecânica do moedor colonial.” Em nossa conversa, propus a ele um moto a ser, simbolicamente, glosado: “Como foi difícil chegar até aqui!” Percebo que somente Carlos Francisco, com seu passado de militância de esquerda, tem interesse em dizer as palavras de Mário de Andrade que proponho para o fim: “Ou você não conformisticamente se inclui na coletividade ou conformisticamente se vende à chefia. Escolha porque num desses lados há de estar.”

03.03.22. Entrega do projeto cenográfico, pela equipe de arte, lindíssimo.

19.03.22. Desde o dia 10 de março fiz duas apresentações para as equipes do Theatro, sessões narrativas, ilustradas com a maquete. Apresento o conteúdo das cenas e indico as mutações do espaço. Marcius, Cássio, Maria Livia e Annick me acompanham na primeira “prova”. Elisa Americano, a coordenadora de programação, que está à frente da produção desde o início, se empolga com nosso “espetáculo relatado”. A regente do Paulistano, Maíra Ferreira, me pede que vá conversar com o Coral nos próximos dias. Sentem-se muito pressionados com o pouco tempo, e ela acredita no efeito motivacional de minha visita. No Canindé, Maria Lívia participa da seleção de adereços de cena, e Melissa entra de vez no nosso grupo, trazendo as primeiras ideias para a luz.

24.03.22 Têm início os ensaios. O Coral Paulistano ainda estuda a música e nos pede mais tempo. Começamos, então, o trabalho pelo cômico, os improvisos com os palhaços Heraldo Firmino e Erickson Almeida, na Galeria Olido, na Avenida São João. Experimentamos situações da Câmara Balé e da cena do Porto Parado. Por outra coincidência incrível, nossa sala de ensaio se chama Café, com o nome na porta. Tem janelas abertas para o Largo do Paissandu, onde se erguia o circo Alcebíades, de Piolim. Acompanham nossa equipe o coordenador de palco, Gabriel Barone e três cenotécnicos, à disposição para nos trazerem os objetos necessários. Peço a eles que façam sugestões artísticas. Acham curioso o pedido. Os improvisos são muito bons, provocam a risada de quem assiste. Chega a mim, no terceiro dia, a polêmica da seleção de solistas. Ao que parece, os corpos musicais muito se desgostaram com o fato de nossa equipe ter tomado a frente no processo de convocatória dos cantores, apesar do monitoramento da regente do Paulistano. São questões de autoridade que geram mais atrasos no processo. As emoções estão à flor da pele, como em tudo o que diz respeito ao Café. A direção do Theatro, de novo pressionada, tenta mediar conflitos gerados pela aceleração dos ritmos produtivos. Minhas exposições em frente à maquete tiveram um bom efeito, e me pedem outras mais.

28.03.22. Primeiros dias de trabalho com o grupo do Balé da Cidade. Explico-lhes que não são coadjuvantes em cena, que o protagonismo é coletivo, pois tudo gira em torno da história mítico-social de Mário de Andrade sobre essa Revolução necessária, numa ópera que, toda ela, “dança”. O trabalho de improviso começa muito bem. Sayonara dá aulas a eles antes dos ensaios. A precisão gestual e a beleza corporal são espantosas. Surpreendem-me, no terceiro dia, com o pedido de uma DR, “discussão da relação”. Estranham, segundo pude entender, o nosso método, o fato de não apresentarmos um plano coreográfico. Estão habituados a seguir comandos, baseados em contagens de oito tempos e, a partir daí, encontrar sua marca pessoal na execução. Há um desconforto em criarem a própria coreografia, e vejo que isso envolve um debate sobre autoria. Sayonara se entristece com a tendência – que não é, felizmente, de todo o grupo – de se protegerem no formalismo. Diz que vai assinar “direção coreográfica” e não coreografia. Um deles fala sobre os problemas dos horários das saídas e folgas, o que me parece justo e compreensível, mas não deveria ser tratado conosco. Há no ar uma ostentação da atitude “somos profissionais, apenas nos digam o que fazer”. Ela contém desrespeito à nossa concepção participativa, e expressa uma perda da capacidade de se divertir no trabalho. Nada, evidentemente, que eu não conheça de outros carnavais do mundo da especialização e da arte-mercadoria. Alguns poucos, silenciosos, indicam que estão abertos à experimentação. Numa improvisação, a da chegada dos retirantes à Estação de Trem, um bailarino, Manuel Gomes, ironiza a proposta de dançarem uma ação realista, “como se fossem atores de teatro”. No intuito de depreciar o exercício, ele exagera e faz toda tolice que lhe vem à cabeça. Paradoxalmente, é quem alcança as formas mais notáveis, pois estava entregue à própria piada. Finjo ingenuidade e lhe cumprimento pelo caráter inventivo do improviso. Ele me olha em dúvida, sem saber se falo a sério. A presença genial de Helena Albergaria, na sala de ensaio, ajuda a traduzir em linguagem compreensível nossa procura da forma mais concreta e viva.

31.03.22. Mais questionamentos da equipe técnica do Municipal sobre a necessidade do tecido na cena do Cafezal. “Não se deve usar, o balé escorrega etc.”. Decidi comprar amostras de pano na 25 de março. Trouxe pedaços de padrões diversos, pus no chão da sala de ensaios, pedi aos bailarinos experimentassem. “É possível dançar aí? Sim”. O argumento da cenotécnica não será mais usado contra nós.

02.04.22. Sábado. Ainda sem o Coral, conseguimos esboçar as cenas com os cantores solistas contratados. Os solos cômicos da Câmara Balé são particularmente divertidos. Fernando de Castro, tem o vozeirão perfeito para o discurso da Ferrugem. As cenas ajudam a mostrar ao Balé a importância de sua participação. E permitem fazer uso do repertório de gestos estereotipados, os bracinhos para o alto e os olhos apertados da tradição. Já não escondo minha opinião sobre essa gestualidade de emoções fingidas, e digo, imprudente: “Aqui, podemos usar todo o repertório de cafonice da ópera, à vontade”, o que desperta ódios silenciosos, ainda que os cantores se divirtam em usá-los criticamente. Ninguém, entretanto, parece discordar da minha observação sobre a tendência a que o artista se “desligue” quando não canta, e só se “ligue” quando usa a voz. Temos o apoio de dois pianistas, um deles animadíssimo, Anderson Brenner, interessado pela história. Insisto na procura de ritmos gestuais contraditórios em relação aos da música, algo que soa estranho aos acomodamentos convencionais. Depois de dias sofrendo com a dificuldade técnica de sua sprechgesang, Juçara, no papel de Mãe, mostra que será o coração do espetáculo. Sua presença de beleza absurda, sua sensibilidade ao significado de cada palavra, a inteireza e precisão da enunciação, atitude impecável no ensaio, calam todas as opiniões, até ali ainda sussurradas, de que seria bom ter na cena alguma estrela do mundo lírico. A Mãe de Juçara Marçal é o Café de Mário de Andrade.

04.04.22. Os ensaios se deslocam para a maravilhosa cúpula do Theatro. Esboçamos, hoje e amanhã, a cena coreográfica da Revolução, com o Balé e o querido Carlão nos papéis centrais, ainda sem o Coral.

06.04.22 Primeiro ensaio com o Coral Paulistano, depois de adiamentos. Conheço, enfim, a música nas vozes do coro. É mais religiosa, doida, bonita e trágica do que eu imaginava, coisas, aliás, que eu mesmo pedi a Felipe Senna. Maíra Ferreira e sua assistente, Isabela Siscari, à frente do Coral Paulistano, são jovens e estreiam como líderes após a morte da antiga regente, na pandemia. A preocupação maior, ainda, é a dificuldade técnica. Alguns cantores demonstram arrogância defensiva, gerada pelo fato de não chegarem ao ensaio com a música decorada. A presença agregadora do Maestro Guga Petri nos ajuda muito.

07.04.22. Fiz tempos atrás uma palestra ao Coral Paulistano, em que procurei explicar o libreto, o projeto teatral, e lembrar da importância simbólica da estreia da obra mais politizada do fundador do Coral Paulistano. Ali intuí que haveria resistências variadas. A mais óbvia é o desinteresse por qualquer coisa que não seja a emissão vocal. Notei, o que não esperava, desaprovações sutis em face do tema comunista da ópera, vindas de alguns poucos mas ostensivos reacionários. No primeiro dia fizemos improvisos para criar figuras individualizadas, os estivadores do Porto Parado. Hoje já demos a primeira forma à cena. Mesmo um coletivo cênico deve ser composto de figuras concretas, o grupo coral deve se formar pela interação dos diferentes. Alguns cantores demonstram muita dificuldade em atuar. Ao contrário do Balé, o improviso não produz nenhum talento inesperado. Apesar dos vários avisos, não dimensionei a dificuldade em relação à cena, fruto de um despreparo no que se refere à atuação. Seria preciso um estudo de longo prazo, sem a pressão da estreia, para que pudessem mudar de postura e interessar-se por algo mais do que o canto. Proíbo as expressões hiper-desenhadas, os clichês explicativos, comuns quando querem mostrar que reagem teatralmente a algo importante. “Só atuem para outra pessoa, nunca para explicar uma ideia ao público”. Procuramos, eu e minha equipe, gerar algum interesse pela história narrada, mostrar que o fato de não começarmos pela “marcação” dos deslocamentos não é um descuido amador, e sim uma opção mais sofisticada. Fiz alguma pregação contra a hierarquia convencional da atuação na ópera, em que a técnica vocal está em primeiro lugar, à frente do sentimento da própria música, e muito à frente da narrativa cênica, como já observou Stanislavski. Insisto todos os dias na importância dos gestos relacionais, contrários à ilustração caricata e sentimental. Alguns compreendem, espantados, os vícios que têm, e já controlam os bracinhos balouçantes, relacionam-se com a ficção, mas uma minoria segue com os resmungos e piadas pelos cantos, torcendo para que chegue logo a hora do almoço. Vejo-me obrigado a repreender o menos preparado dos cantores, que girava uma pasta de partituras no dedo, como se fosse uma bola de basquete, para ostentar desinteresse diante do comentário feito por Helena Albergaria sobre a falta de uma atitude cênica mais concentrada do coro. Há uma certa infantilização coletiva, nascida do medo. Medo da arte. Como sempre, as mulheres são artisticamente superiores. Elas garantem que a beleza do trabalho logo vai se impor, que basta superar a fase de aprendizado musical. Os novatos, contratados apenas para o Café, mostram o maior entusiasmo pela dimensão anticapitalista do texto.

08.04.22. Ontem uma cantora do Paulistano se aproximou de mim, ao fim do ensaio: “Diretor, quero te cumprimentar, a sua equipe é muito educada.” No mesmo dia outra me disse no intervalo: “Pelo que entendi, você não vai nos marcar agora…quer nos dar um estímulo para que nós mesmas façamos as sugestões de ações, é isso?” – “É.” E uma terceira cantora me pediu uma explicação: “Você quer que as mulheres entrem no armazém do Porto agressivas com os estivadores…mas você sabe que a música que nós cantamos é de lamento, de dor, não sabe?” Respondo: “Sei”. – “E é isso mesmo?” – “É”. – “Mas isso é contraditório.” – “É”. – “Então é isso que você quer: o contraditório?” – “É”. Hoje pela manhã, antes de iniciarmos os ensaios da Câmara, eu tomei o microfone e reproduzi o nosso diálogo, agradecendo a ela pela oportunidade do esclarecimento didático. “O que procuramos aqui é o contraditório.”

11.04.22. Nosso coletivo de direção atua em muitas frentes: Helena Albergaria, Sayô, Maria Lívia e João Malatian me auxiliam com orientações complementares ao grupo. Helena, com sua energia, é o impulso da rebelião, exemplo de uma energia artística incomum, que sacode o grupo da pasmaceira. A assistente do Balé da Cidade, Carolina Franco, nos acompanhou desde o início dos trabalhos. Ela se tornou uma espécie de tradutora, a mediadora fundamental entre o nosso gosto pela “indeterminação” artística e a necessidade dos corpos estáveis de terem padrões compreensíveis. Ajuda-nos muito na organização dos movimentos corais, com excelentes sugestões. Com três palavras se faz compreender e obedecer, e é exemplarmente estudiosa. Considero-a integrante do coletivo de direção. Ela libera Sayonara e Helena para a instauração dos detalhes vivos, os desajustes da ordem coral. Trabalhamos hoje a difícil cena do Cafezal, que exige maior empenho de atuação. A presença de Carlos Francisco traz uma enorme contribuição ao meu desejo de que as pessoas trabalhem com autodeterminação: sua seriedade, talento e consciência artística são modelos de autonomia artística.

14.04.22. Somos obrigados a cumprir um plano de metas. Até amanhã, fim da segunda semana com equipe completa, necessitamos de um esboço geral do espetáculo. Na semana que vem deixamos a Cúpula e chegamos ao palco com cenário pronto, para novas dificuldades. Assim, cada cena é esboçada num dia e definida no outro. O pouco tempo é absurdo, as pausas nos ensaios são obrigatórias e rígidas. Decidi fazer o Porto Parado de modo mais “operístico”, um quadro lamentoso e mais estático de estivadores, porque conto com os desvios promovidos pelas bailarinas e pelos palhaços-guardas, invenção minha em relação a Mário, que não imaginou um mundo do trabalho tão vigiado. Conseguimos criticar algo que me incomoda no texto: uma certa saudade da riqueza civilizatória do café, como se não fosse fundada no escravismo. A cena do Cafezal ainda está confusa demais. A parte resolvida é a da Discussão. Na Câmara, a dança à la Joss, a graça musical, os palhaços, e a maravilhosa entrada de Juçara garantem a beleza, a ser complementada pelos números aéreos. A cena da Revolução tem o Balé com armas na mão como protagonista, antes da ruptura de Léo e do MST. A gestualidade mais difícil é a da Estação de Trem. O solo do cantador é longo demais. O talento de Max Costa, o solista, terá que se combinar ao de Marisa Bucoff, com seu “contra-solo” dançado, antes da passagem mortuária dos “desistidos” que guincham. A imagem da banana jogada ao chão foi trocada pela da calcinha da moça atirada aos rapazes, mais grotesca. É feita por Fernanda Bueno. Manuel, do Balé, tornou-se um grande colaborador. Ele propôs pegar a calcinha do chão e vesti-la. Mantenho a sugestão ilógica, esse desvio nonsense, como lembrança de seu aprendizado de atuação. Torno-me um entusiasta da dança. O balé é responsável por alguns dos mais comoventes momentos do espetáculo que surge, como na Câmara Balé e agora na Estação. A equipe cenográfica, acompanhada por Maria Lívia, e eu, aposta no palco vazio da Estação. Proponho um prólogo a essa cena, com a caminhada lenta de Carolina Martinelli e Erika Ishimaru, ao lado de Carlos Francisco. O modo como executam com precisão essa travessia coreográfica me parece lindo, é o palco em zero, antes da Estação Progresso.

15.04.22. Sexta-feira. Chegamos ao primeiro rascunho do espetáculo. Faltam alguns trechos, sobretudo transições e fins de cena. Felipe me questiona sobre a inexistência da corda bamba, que deveria abrir a Câmara Balé. Diz que a música composta foi um “tema equilibrista”, “simboliza o povo andando na corda-bamba que os governantes criam.” Mesmo sem a corda, construímos transições mais e mais estranhas. Numa delas pedi ao responsável técnico, Gabriel, para falar no microfone do teatro as ordens que só a equipe de palco costuma escutar nos fones de ouvido, de entradas e saídas de cenários. Ele concordou em expor o trabalho. Saí do Theatro há pouco com uma pequena mala. Vou a Portugal para uma palestra na segunda-feira, numa viagem relâmpago à Europa para uma palestra no Teatro São Luiz de Lisboa. Volto na terça cedo, diretamente para a sala de ensaio.

21.04.21. O ensaio num feriado contribui para o mau-humor da equipe do Municipal. Parte do grupo disfarça a indisposição quando sabe que um jornalista da Folha de São Paulo, Paulo Bio, nos acompanha. Estranham sua intimidade comigo, ignoram que fui seu orientador na USP, no passado. Já consideram que a ópera é mais importante do que supunham. A orquestra ensaiou com Guga Petri nos últimos dias, num outro horário, enquanto seguimos com piano e a gravação eletrônica, o midi. Os músicos da orquestra se recusaram a trabalhar no feriado, apesar de isso estar combinado há muito tempo, o que gerou a raiva indignada de Petri. Ouvi dias atrás, pela primeira vez, a música de Felipe Senna tocada por eles, uma experiência impressionante. Não teríamos metade das dificuldades de marcação se a conhecêssemos antes. Eu e o maestro, a quem trato por Guga, nos cumprimentamos com um gesto que se “viralizou” na internet, o do menininho chinês, numa escola, que aproxima as duas mãos sobre as páginas de um livro aberto, e faz a mímica de recolher a água, como se trouxesse o conhecimento impresso à própria cabeça. Nosso cenário é montado no palco por Cássio, Annick e Pedro Levorin, que se juntou à equipe. Está muito mais bonito do que eu podia imaginar. Há uma frase no roteiro que causa desconforto no coral, é quando Juçara diz “vejam, a prima-dona da vida, os comedores de ópera…com a mão no peitinho, que cai, que cai”. Digo que são palavras de Mário de Andrade, mentira que me protege de maiores explicações.

24.04.22. Fizemos ontem, no sábado, e hoje domingo, os dois ensaios chamados palco-piano, ainda sem a orquestra, onde organizamos a entrada do MST e ajustamos os movimentos ensaiados à caixa cúbica do Municipal. Tive que mexer em marcações para que o Coral fosse escutado melhor, a pedido do Maestro e das regentes. Com a chegada da orquestra ao palco acaba o nosso período de invenção. Mesmo assim, surgem mais novidades dos circenses, das aerealistas Natália Presser, Geisa Helena e Marina Soveral, mas também dos sempre inventivos Heraldo Firmino e Erickson Almeida. Procuro aproveitar ao máximo os últimos instantes de geração do novo. A cena da Estação de Trem foi novamente modificada hoje. O balé protagoniza a cena, toda ela coreográfica, e a realizam admiravelmente. Devido à covid de Gabriel, a ensaiadora do Balé, Carolina Franco, assume outra função, a de coordenadora do palco nos dias de espetáculo. Ela é a única pessoa com conhecimento do nosso trabalho e capacidade para isso. Ela me pergunta se pode vestir a roupa que quiser naquela cena da transição em que vai expor o trabalho dos bastidores, está contente e tensa com o desafio.

28.04.22. Dois dias atrás houve o chamado ensaio à italiana, com o elenco sentado, sem qualquer movimentação cênica, em que o Maestro ajusta as vozes à orquestra. A música está cada dia mais bela. As regentes trabalham muito, com atenção, estão empenhadas na execução perfeita, para daí chegarem ao ponto da interpretação da música complexa de Felipe, que esteve conosco esses dias. Ontem e hoje passamos o espetáculo todo com a orquestra. A ópera acontece. Amanhã faremos um pré-geral apenas com piano, nossa última chance de correção de detalhes cênicos.

29.04.22. Dia do pré-geral. Porque não havia jeito institucional de resolver o caso, comprei na Santa Ifigênia as lanternas de alta potência para a luta em estilo kabuki, única maneira de tê-las a tempo. O figurino de Fábio Namatame, que enfim conhecemos, foi feito com adaptações do acervo do Municipal. É simples, lindo e tem grande compreensão narrativa. E a iluminação de Melissa Guimarães, mais “atmosférica” e lírica do que costuma fazer na Companhia do Latão, ajuda a instaurar uma beleza por vezes sombria, mas muito delicada em relação ao espetáculo. Ainda acertamos detalhes das projeções no fundo do cenário, os fogos dos combates no céu da cidade, no ato da revolução, criados por Natalia Belasalma, cineasta, parceira de anos da Companhia do Latão. Tivemos algum trabalho para deixar a participação do MST exata, pois as vozes foram divididas devido à entrada pelas três portas da platéia, o que dificultava a precisão jogral. Os percussionistas tocam em meio à plateia e se empolgam com o momento politizado do espetáculo. O Coral não só canta bonito, mas agora atua. Conseguimos, por obra de Helena, mais detalhes gestuais, como o do livro camponês. Ainda assim, o Coral segue tenso, mas alguns dos cantores nos procuram para mostrar sua emoção diante da beleza do texto de Mário de Andrade. O conjunto cênico do Café está o melhor possível, politicamente posicionado e muito comovente. Conseguimos as desejadas desorientações relativas em meio aos arranjos da “estética do quadro”. Amanhã, sábado, é o dia do primeiro ensaio geral, o completo. Juçara me observa a importância de que os batuques sejam feitos com mais qualidade rítmica, em respeito à tradição da grande arte popular dos antepassados. Converso com Natália Presser, uma das “aerealistas”, sobre o enquadramento dos números circenses, para que também essa tradição popular não seja vista como desimportante, e sim como elemento central do espetáculo. Convido, para uma participação de última hora, Kléber Pagu, casado com Fernanda Bueno, do Balé. Ambos coordenam um grupo de intervenções urbanas e ele vai pintar em cena a bota do Borba Gato, que fica acima do grande pedestal. Ensaiamos a ordem de agradecimentos, de modo a valorizar os coletivos. Heraldo Firmino saúda a “coalizão” de artistas negros que ocupa a frente do espetáculo em seu momento final. Carlos Francisco segue atento a cada detalhe de sua participação. Sua atitude “sócio-estourante” orienta os movimentos das cenas, como faria Mário de Andrade se estivesse conosco.

01.05.22. Ontem, após o impacto do ensaio corrido, mudamos de ideia e decidimos abrir o Geral a alguns convidados. Houve um grande susto com o tombo de Heraldo. Numa entrada de cena ele machucou o pé, mas estará em condições de estreia. Geisa, que também é palhaça, ensaiou com Erickson a substituição de hoje, que também contou com a participação de Helena. O que aconteceu neste domingo foi, assim, uma pré-estréia, com a plateia de baixo quase lotada. Toda a equipe, ao final, estava muito emocionada. Helena foi confundida, por uma das camareiras do Theatro, com uma “chefona do MST”. Muitos de nós estavam em lágrimas. Cenografia, figurinos, iluminação, tudo perto do “mais-que-perfeito”. Nas coxias, mal saído dos aplausos, tenho que escutar um comentário crítico sobre o salto alto usado por Carol, nossa coordenadora de palco. Viro as costas ao palavrório, para abraçar a equipe incrível, inclusive a do Theatro, que nos permitiu chegar até aqui. A opção de vestimenta de Carol apenas nos lembra que ela não quer ser reduzida a uma função no mundo do capital, como todos nós. Quer ser vista em cena como uma pessoa. Não tenho dúvidas que Mário de Andrade amaria nosso Café. Quando Negro Léo fez sua entrada inspirada, de motocicleta, conduzido por uma atriz convidada, junto do mais vibrante dos grupos do espetáculo, o do MST, que portava facas e foices históricas, um músico da orquestra, segundo me contaram, abriu uma bandeira do Brasil sobre o colo, num protesto conservador contra a esquerdização do Theatro Municipal. Houve no mesmo momento, o da entrada do movimento social, gritos da plateia, daqueles que atuam “inconformisticamente” contra os donos da vida. O último ensaio do Café aconteceu no dia do trabalho, primeiro de maio.

(Publicado na Revista do IEB N.82, 2022. https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/201366. Esta versão contém pequenas correções em relação à da revista do IEB, e incluem outras observações extraídas do caderno. Desenhos de cenário de Marcius Galan, fotos de ensaio de Stig.)

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Programa de O Círculo de Giz Caucasiano da Companhia do Latão (2006)

Gravuras originais de Fernando Vilela. Textos de Brecht, de José Antonio Pasta Jr. (sobre a tradução de Manuel Bandeira), de Danieli Ricieri (sobre o processo de ensaios) e entrevista com José Renato. Diagramação de Pedro Penafiel. Para quem quiser baixar: https://sergiodecarvalho.com/wp-content/uploads/2020/10/programa-cicc81rculo-de-giz-do-latacc83o-1.pdf

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Dialética do drama nas lições estéticas de Hegel (apontamento inédito, 2017)

            É comum nos ambientes teatrais a leitura subjetivista da poética dramática de Hegel. Sua obra, segundo essa interpretação, confirmaria a ideia moderna de que o drama é essencialmente uma forma de representação dialogada baseada no conflito das vontades individuais. As personagens dramáticas seriam assim sempre pensadas como sujeitos dotados de responsabilidade sobre seus atos e que têm consciência moral sobre suas vivências passionais.