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Possibilidades atuais de um teatro crítico: carta de Jean-Pierre Sarrazac a Sérgio de Carvalho (2019)

Conheci o dramaturgo Jean-Pierre Sarrazac ao convidá-lo para uma participação no ciclo O Teatro e a cidade, que organizei para prefeitura de São Paulo em 2001. Sarrazac vinha ao Brasil pela primeira vez.

O tema que propus para sua conferência era A crise do drama e a encenação moderna. Após uma apresentação detalhada feita pela professora Sílvia Fernandes, ele discorreu sobre os métodos de encenação do naturalista André Antoine, que pode ser lida num livro hoje raro, que tem o título do ciclo (CARVALHO, 2004). Sua fala incomum punha abaixo todos os estereótipos sobre o “grau zero” da estética naturalista e retomava seu estudo para o volume Antoine, l´invention de la mise en scène (SARRAZAC, 1999).

Minha proposta temática, entretanto, era também um convite ao debate sobre a obra de Szondi (2001), Teoria do drama moderno, que não chegou a ser discutida na ocasião. Ela, porém, estaria presente em nossas conversas fraternas nos anos seguintes. Em 2012, quando do lançamento no Brasil do Léxico do drama moderno e contemporâneo (SARRAZAC, 2012), resultado de um longo trabalho de um grupo de pesquisadores franceses, tivemos uma ocasião pública (no Sesc Anchieta), de tratar de nossas diferenças em relação à noção de crise do drama em Szondi (op. cit.), quando procurei, em meio a uma apresentação de sua obra, apontar alguns limites da visão crítica expressa pelo grupo do Léxico e relativizar a afirmação de que Szondi praticaria uma “teleologia”, porque seu conceito de Drama não era estável. Procurei, também, mostrar a força de alguns escritos de Sarrazac, tais como O futuro do drama (2002), que dialogam muito com a reflexão de Szondi (op. cit.), e estão menos sujeitos aos enquadramentos da forma-verbete do Léxico, e por isso me parecem mais úteis porque resistentes às generalizações sobre supostas eficácias formais desta ou daquela tendência. A carta que agora publico com autorização animada de seu autor, me foi enviada para ser lida no primeiro Seminário Internacional de Teatro e Sociedade, organizado pela Companhia do Latão em setembro de 2014. Impossibilitado de comparecer pessoalmente, Sarrazac respondia a algumas das questões que levantei dois anos antes e reafirmava os vínculos entre a tradição do teatro crítico e seu projeto de teatro íntimo, além de contribuir com o tema geral do nosso encontro: o das possibilidades atuais de uma cena social. O breve comentário que faço a seguir tem o intuito de facilitar a compreensão das motivações de sua carta e ajudar a compreender a sua beleza.

Da utopia ao desencanto 

O pensamento dramatúrgico de Sarrazac se constrói em diálogo com uma longa tradição francesa de “modernismo popular”, de inspiração socialista. Ainda que tenha precedentes no Naturalismo e no trabalho de Romain Rolland, essa tradição só se consolida após a Segunda Guerra, quando um grupo de artistas se organiza em torno da atividade pública de Jean Villar, diretor que fundara o Festival de Avignon em 1947 e assumiu, em 1951, a condução do Teatro Nacional Popular francês (TNP). É o trabalho dessa geração que viabiliza um histórico processo de descentralização da cultura através da construção de polos teatrais nos bairros periféricos das grandes cidades francesas.

O surgimento, em 1953, de uma publicação bimestral chamada Théâtre Populaire, redigida por um grupo de intelectuais de alto nível, ampliou ainda mais os debates em torno do possível projeto de um teatro crítico moderno, ligado à constituição de uma cena pública e participativa de tipo nacional-popular. As apresentações do Berliner Ensemble, companhia de Brecht, ocorridas em Paris, em 1954 com Mãe Coragem, e no ano seguinte com O Círculo de Giz Caucasiano, foram recebidas por eles como um divisor de águas que confirmava o projeto em curso: o trabalho de Brecht dialogava de modo radical com as experiências intelectuais e artísticas da França “resistente” pós-ocupação e as expandia para novas frentes, convocando, inclusive, o interesse por tradições de teatro crítico de outros países, para além da Europa e da atualidade.

A pequena e incrível revista, dirigida por Robert Voisin, tinha entre seus colaboradores Jean Duvignaud, André Gisselbrecht, Roland Barthes, que produziram ensaios teatrais até hoje insuperáveis. Surge ali o trabalho do maior crítico do teatro moderno na França e principal referência intelectual de Jean-Pierre Sarrazac: Bernard Dort. Nas páginas de papel barato da Théâtre Populaire foram publicadas análises de encenações, traduções de peças, documentos históricos e sugestões práticas para um movimento cênico autocrítico e descentralizador. A dialética se realizava também na atitude do debate, no impulso de tomar partido somente com base na dinâmica das contradições, nunca pela supressão das diferenças. A influência brechtiana, mediada por esse grupo inventivo, contribuiu para a formação de artistas e pensadores incomuns, como Roger Planchon e, bem mais tarde, Bernard-Marie Koltés. O eventual brechtismo de tipo ideológico, que porventura também tenha nascido depois (a rigor totalmente contrário à posição de Brecht, que defendia um teatro de “demolição ideológica”), podia ter várias razões práticas, mas nenhuma delas ligada à qualidade das reflexões de uma publicação que compreendia o modelo épico-dialético como realização de um trabalho comum, não como um formulário técnico-estilístico. A entrada de Sarrazac nos debates do teatro crítico francês ocorreu, assim, modelada por esse legado geracional. Ela se deu, contudo, no calor revolucionário do momento pós-1968, quando um desejo de modificação das relações políticas, também em relação à esquerda anterior, tomou conta das ruas. Os teatros ocupados de Paris foram locais de importantes mobilizações.

É possível dizer, assim, que o pensamento teatral de Sarrazac se forma no momento da maior crise dos padrões do teatro crítico anterior, mas também na intensificação de um diálogo vivo com o mais ativo e consequente de seus formuladores, Bernard Dort.

Entre 1970 e 1979, Dort dirige uma revista trimestral chamada Travail Théâtral, tão influente quanto a já extinta Théâtre Populaire, ainda que menos surpreendente. Igualmente politizada e brechtiana, ela contava com colaboradores como Émile Copfermann e Jean Jourdheuil, entre muitos, e procurava dialogar com as novas referências de uma cena épica francesa que agora tinha no Théâtre du Soleil de Ariane Mnouchkine seu epicentro, assim como acolher a nova dramaturgia francesa, que retomava de modo programático uma certa cena lírico-subjetiva e iniciava a experimentação com formas não-dramáticas. Sarrazac, que participou da revista, tornou-se, assim, um dos principais pensadores do teatro a defender a politicidade daquela nova cena íntima que surgia nos palcos europeus. Àquela altura, o próprio Dort já refletia sobre o “fim do sonho” de um “teatro como serviço público”, engajado num verdadeiro diálogo com a coletividade, “o sonho de um teatro que significaria para todos o acesso tanto à arte quanto à cultura.” (DORT, 1977, p. 362). Sarrazac examinará mais tarde o conjunto dos movimentos dessa crise, em aspectos históricos e estéticos, num livro notável chamado Critique du théâtre: de l´utopie au désenchantement, publicado em 2000, em que avalia e homenageia o sentido vivo e contraditório da “utopia brecht-barthes-dortiana de um teatro crítico.” (SARRAZAC, 2000, p. 136, tradução minha)

Quando nos conhecemos em 2001, sua alegre surpresa em se deparar com um dramaturgo brasileiro interessado em teatro dialético foi proporcional ao interesse mútuo que tínhamos pelas possibilidades do drama como forma aberta: ambos, com ênfases poéticas diferentes, estávamos distantes da desconfiança generalizada em relação à ideia de “representação dramática”, ao entendermos que tal recusa em abstrato não significa nada além do que uma idealização de seus supostos avessos, sejam eles a cena épico-política ou a cena performativa da “presencialidade” poética, cujos valores, positivos ou negativos, não podem ser medidos de modo geral, mas sim pela fatura e consistência estética de cada obra em relação a seu contexto produtivo e sistema de expectativas. Quando Sarrazac me ofereceu seu livro sobre a geração de Dort e Barthes, escreveu na dedicatória: “com a idéia de que mesmo o desencanto pode ser ativo”.

Hoje não tenho muita dúvida de que o disparador teórico que animou o pensamento teatral de Sarrazac desde seus primeiros passos artísticos e intelectuais provém de uma conferência famosa que Sartre fez na Sorbonne em 29 de março de 1960. Naquela ocasião, o filósofo afirmou: “Brecht não resolveu, no quadro do marxismo, o problema da subjetividade e da objetividade, e em consequência, nunca deu um lugar real à subjetividade em sua obra, tal como ela deve ser.” (SARTRE, 1973, p. 149, tradução minha)

Sartre, entretanto, quando lançou a discutível idéia de um déficit de subjetividade em Brecht, era colaborador do grupo da Théâtre Populaire. Apesar de sua observação não valer para a maioria das peças do poeta alemão, ela soava como contraponto antiformalista à adesão do TNP às técnicas épicas, bem como anteparo às críticas que o próprio Sartre, dramaturgo, sofria pela forma convencional de seus dramas de confinamento, suas peças filosóficas. A retomada da questão no fim dos anos 1970, entretanto, vinha sem o mesmo contracampo: aludia agora à afirmação de um programa poético para uma nova dramaturgia. Não é por acaso que o tema foi tratado na entrevista dada por Sartre a Bernard Dort, no número 32-33 da Travail Théâtral., de dezembro de 1979. Àquele tempo, Sartre já não estava interessado em polemizar com o brechtismo, talvez nem sequer em defender um “teatro dramático bem próximo do épico e que não seja burguês” (SARRAZAC, 2012, p. 31). Ele usa sua resposta para refletir sobre formas de manifestação subjetiva no teatro para além das palavras, tecidas no além ou aquém da linguagem. Seu interesse está longe de ser puramente formal. Também significativamente, aquela mesma edição contém textos ficcionais de três dos melhores dramaturgos europeus do tempo: Handke, Heiner Muller e Sarrazac.

O projeto de um teatro íntimo de sentido social já se organizava: toda a teoria que vai animar as belas peças de Sarrazac nos anos seguintes, depois reunida em livros, estará atravessada por esse ideal sartreano (mas que também contém algo da visão teatral de Althusser sobre Brecht) de uma dramaticidade feita de formas sutis na instauração da dialética subjetividade-objetividade. Havia nesse movimento, uma militância crítica que procurava reconhecer a força de autores emergentes como Benedetto e Deutsch, ou de dramaturgos mais antigos como Armand Gatti e Vinaver (que não se alinharam com o teatro “do absurdo” nem com o épico). Mas também havia em curso a constituição de um programa cênico-literário (SARRAZAC, 2011). Ele se inspirava na forma da “autópsia” de um Woyzeck, de Büchner, peça que contém uma personagem-título “possuída” pela ideologia de um modo não-dramaticamente consciente [é exata e bonita a análise de Sarrazac sobre a personagem Zé Ninguém, feita em O futuro do drama (2001)]. E também se valia da estrutura de estações de um Strindberg, forma aberta a epicizações de vários tipos. O projeto de uma teatralidade permeada por “pulsões rapsódicas”, feita da desindividualização relativa da tessitura dramática, foi depois chamado por ele de cena do “drama-da-vida”: uma configuração espectral, retrospectiva, montada com as partes expostas, e que pode abranger o todo de uma vida pessoal (contrária à linearidade progressiva da forma convencional, chamada por ele de “drama-na-vida”).

A linda carta que divulgo a seguir me foi enviada por um amigo. Contém uma reafirmação da politicidade da cena íntima, feita no intuito de dialogar com um grupo de artistas de outro país e geração. É uma apresentação de seu ideal poético. Há nela também uma advertência em relação às tribunas fáceis de certo estereótipo brechtista, tendência que ele sabe ser frequente entre jovens artistas de esquerda e que poderiam estar presentes no nosso seminário. Há nela uma atenção à necessidade de um trabalho atual de produção de novos vínculos à partir das divisões dadas. E há, enfim, a compreensão de que os vários modos do teatro crítico pedem sempre, em alguma medida, ativações que nascem de alguma forma de desencanto.

Carta de sarrazac 

Carlucet, 30 de julho de 2014.

Querido Sérgio,

Ao te escrever esta carta espero não somente demonstrar minha identificação com o teu trabalho e com nosso diálogo, mas também contribuir o quanto possível para o encontro de setembro, em torno da questão essencial – “Em que o mundo atual pode ser representado pelo teatro?” –,ao qual não poderei, infelizmente, comparecer fisicamente.

Anexo a esta carta a tradução em português de minha última peça, O fim das possibilidades, que será montada por Nuno Carinhas no Teatro Nacional São João, do Porto, em março próximo. Eu considero, com efeito, que esta peça constitui uma resposta – minha resposta, um tanto quanto parcial! – à questão que você coloca e que diz respeito à crise profunda que vivemos atualmente na Europa – talvez até além dela.

Em meu livro Critique du théatre: de l’utopie ao désenchantement (2001), publicado há uns quinze anos, não se tratava simplesmente, para mim, de exumar a ideia de um teatro críticoademais, ela está realmente morta? –, mas de fazer a genealogia, de tentar compreender como, a partir de uma posição muito minoritária, ela pôde conduzir, a partir dos anos 1950, um movimento teatral importante e de longa duração. Além disso, eu pretendia interrogar essa ideia – assim como as práticas diferenciadas que ela suscitou, por exemplo, em Villar e em Brecht – a partir da situação atual, de forma retrospectiva, a fim de ver como elas se perderam ou se transformaram. Enfim, fazer a palinódia. Em que ponto estamos hoje com essa idéia de um teatro crítico, que sem dúvida permanece presente nos fundamentos de nossa prática, ainda que em estado inerte?

É durante uma reflexão, a priori puramente técnica, sobre a arte da atuação, que Brecht dá início a sua ideia de um teatro crítico: “A arte dramática não tem nenhuma necessidade de renunciar totalmente à identificação; entretanto, ainda é necessário – e ela pode fazer isso sem perder sua característica de arte – que ela permita ao espectador a adoção de uma atitude crítica. Esta atitude não é, em nada, inimiga da arte como costumamos frequentemente acreditar […] Um dos princípios essenciais da teoria do teatro épico é que a atitude crítica pode ser uma atitude artística.” (BRECHT, 1972, p. 77).

Tal “atitude” não tem outro objetivo senão o de manter o espectador ativo, isto é, crítico. Já em seus primeiros textos sobre Brecht, Barthes empenha-se em ressaltar o alcance “político” dessa atitude: “A obra tem toda a densidade de uma criação, mas essa criação é fundamentada em uma forte crítica social; sua arte se confunde, sem qualquer concessão, com a mais alta consciência política” (BARTHES, 2002, p. 482).

De fato, Barthes se comporta, antes de ver Mãe coragem em Paris em 1954, como o Cristóvão Colombo de Claudel antes de descobrir a América: ele já a conhecia, seu espírito já a tinha abraçado. Uma prova disso é o editorial – não assinado mas, ao menos em parte, resultado da caneta de Barthes – do primeiro número da Théâtre populaire: “O teatro deixou de ser o espelho da vida e dos acontecimentos, o grande Comentário que era nos tempos de Ésquilo ou de Shakespeare para se limitar […] a não ser mais que um pretexto para recreações menores”(AUTOR, ANO). E essa presciência, cheia de nostalgia, da ideia de um teatro crítico não é, evidentemente, estranha ao trato de Barthes com a tragédia antiga, feito no antigo Teatro da Sorbonne antes da Guerra, e com os espetáculos de Vilar em Avignon posteriores ao Teatro Nacional Popular.

Mas de que trata essa crítica do espectador solicitada, privilegiada, estimulada pelas técnicas específicas do teatro épico?… Ela tem um objeto duplo: “A crítica do espectador é dupla”, define Brecht, “ela se refere à interpretação dada pelo ator (seria ela justa?) e ao mundo que ele representa (deveria ele permanecer como está?)” (BRECHT, op. cit., p. 94). É aí que se realiza a desmistificação prévia da ilusão teatral – ilusão de plenitude, ilusão de se estar em frente à própria “natureza” – e o combate contra seus efeitos hipnóticos. E é aí que se põe em evidência a teatralidade do teatro – o revirar ao exterior o vazio interior do teatro. Processo já iniciado por Pirandello, onde a estratégia “humorística” e irônica participa de uma crítica do teatro, e pela encenação muito refinada de Vilar, mas que o teatro de Brecht leva ao mais alto grau no referente à sensualidade e intelectualidade. Também vai por aí o posicionamento de Barthes a favor de uma “exteriorização dos signos”. É o que o leva a elogiar tanto o simulacro dos shows de luta livre, como o trabalho teatral próprio ao Bunraku (para além disso, sua pesquisa cada vez mais radical de uma teatralidade fundada na exterioridade dos signos acabará por conduzir o “último Barthes” a perder o interesse por todo o teatro ocidental, o que inclui a representação brechtiana).

Nessa concepção de teatro crítico está muito claro que o sentido não pode ser contido, envolvido pelo texto ou pela representação. Ele é, ao contrário, oferecido à construção, à produção do espectador crítico. A cena expõe, relata: mas só o espectador detém o poder de deliberar. Por que então, hoje, mesmo entre excelentes espíritos, surge essa tendência de confundir o movimento crítico processual com um julgamento a priori, e de assim reduzir Brecht a um teatro de mensagem, a um teatro de tese? Adotar um ponto de vista crítico que engaja um trabalho do espectador – “esse ator que começa quando termina o espetáculo, que só começa”, como muito bem escreveu Althusser, “para completá-lo, mas na vida”. Algo que é muito contrário ao que pensa Vinaver: “ilustrar e demonstrar uma tese.” (VINAVER, 1993, p. 147)

Para o Barthes de 1954, no momento da “iluminação” brechtiana, a ideia de um teatro crítico é – de modo evidente – a modalidade prático-teórica de um teatro autenticamente político. É por isso que o exame do legado e da possível falta de herdeiros do teatro crítico deveriam nos engajar hoje num exame crítico das consequências da própria ideia de um teatro político.

Não estando particularmente armado para conduzir tal análise, me contentaria em liberar um sentimento, aquele de um cidadão e autor de teatro que se esforça em não perder seus pés nas areias movediças onde se situam hoje o pensamento e a intervenção política. Meu sentimento, portanto, é que se “tudo é político” ainda constitui uma fórmula aceitável, até útil, para se compreender e relatar os comportamento humanos (nossa tarefa como escritores de teatro), por outro lado, o político não pode não mais ser considerado como “o Todo”.

Da crítica do político na medida em que ele pretenda englobar, no teatro, toda a crítica do humano, eu encontro uma expressão forte e convincente nos escritos de Nicole Loraux (1999) sobre a tragédia antiga. Para a autora de La voix endeuillée, a tragédia grega, que ela nos convida a considerar como “um oratório e, ao mesmo tempo, peça engajada”, não se restringe a “uma representação controlada que a cidade quer dar dela mesma” (Ibid., p. 35). O fato de que o teatro possa se encarregar também de parte do sofrimento coletivo, de parte do humano que escapa à política, ou seja, que escapa ao consenso entre os cidadãos, não significa que o teatro negue o político, mas que ele toma a frente da política. Ou – expresso de outra maneira – que ele se permite o tempo de um desvio, de uma excursão por aquilo que Nicole Loraux designa como “o outro da política”, ou seja, uma política outra, que não seria mais baseada no consenso e na convivência, mas sobre algo (que ela) chama de “o vínculo da divisão”.

Dessa emancipação de um teatro crítico em relação a uma estrita tutela do político – do “Tudo político” –, a primeira consequência é que o modelo jurídico do Processo, fundado pela assimilação do teatro ao tribunal, não deveria mais ser suficiente para dar conta do processo teatral. Em outros termos, é a própria “publicidade” da representação trágica, como paradigma de todo teatro público, que somos convidados a revisitar e a diferenciar, com força, daquela da ágora. Que se pense como Jean-Christophe Bailly: “Toda a história do teatro ocidental não pode ser inteiramente tributária desta origem, dessa conexão transparente entre cena e cidade” (BAILLY, 1996). Assim como considero inapropriada a crítica que Vinaver (1993) faz a Brecht por promover supostamente um teatro “de tese”, um teatro “ilustrativo”, também considero que o mesmo Vinaver tem razão ao pedir a suspensão do julgamento – da “tentação de denunciar e acusar” – que decorre, forçosamente, da submissão exclusiva do processo teatral ao modelo “cívico” do Processo.

Se nós queremos que o teatro se encarregue dessa dimensão de sofrimento individual e coletivo, do protesto contra a injustiça que nenhum processo imediato saberia aliviar, dessa queixa da humanidade que abrange até a parte não humana do humano [Nicole Loraux (op. cit.) dá como exemplo a voz feminina, ou seja, a voz não cidadã da tragédia grega], se nós queremos que seja levado em conta o “vínculo da divisão”, então me parece que o teatro não deveria se contentar em ser Processo, ele deve ser também Paixão, no sentido de que falava Mallarmé e, depois dele, Claudel.

Paixão e Processo tudo junto, crítico até atingir o ponto crítico do humano onde o político não procura fazer prevalecer sua lei a todo preço: eis a dinâmica contraditória, a condição heterogênea de um teatro onde a escuta – da voz que grita, porque nós a rejeitamos no inumano –, onde o “trabalho do espectador” volta a ser produtivo e necessário. O teatro – o drama, a ação dramática –, que é Paixão, não pára de transbordar o político enquanto Processo. Como o rio que transborda na enchente e sai, provisoriamente, de seu leito.

Logo que tentei, já faz bem uns vinte anos, articular em torno da noção de íntimo uma reflexão sobre o teatro do século XX, de Strindberg a Duras (SARRAZAC, 1989), deparei-me com alguns “leitores” (refiro-me àqueles que do livro leram somente o título!), que associaram íntimo a intimista, ou seja, “privado”, quando não se tratava de “doméstico” ou “enclausurado”… Entretanto, para mim, assim como para a maioria dos autores que estudei nessa obra, o íntimo era justamente o contrário do intimismo: não uma retirada para a esfera do privado, mas um deslocamento mútuo e um tensionamento, característicos das dramaturgias da subjetividade, do privado e do público. A constituição, precisamente, do que Nicole Loraux (op. cit.) chama de “vínculo da divisão” entre o íntimo e o político. Tal como trabalhei nesta obra, o íntimo – esse superlativo, esse interior do interiordeve ser entendido como a nossa conexão mais estreita com o que nos é exterior, com o Outro, com o que nos é estrangeiro. O íntimo, aqui, é, de certa forma, o extimo.

Com minha amizade, e minhas saudações fraternais aos participantes do encontro de setembro,

Jean-Pierre Sarrazac

(Tradução de Marina Coelho dos Santos e Sérgio de Carvalho.)

Referências Bibliográficas

BAILLY, J.-C. Théâtre et démocratie : un art ancré dans l’histoire. Le Monde diplomatique, Paris, p. 15, juil. 1996.

BARTHES, R. Pourquoi Brecht ? In: BARTHES, R. Œuvres complètes I. Paris: Seuil, 2002. 

BRECHT, B. Nouvelles techiniques d’art dramatique. In: BRECHT, B. Écrits sur le théâtre I. Paris: L’Arche, 1972. 

CARVALHO, S. (org.). O teatro e a cidade: lições de história do teatro. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 2004.

DORT, B. O fim de um sonho. In: O Teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977. 

LORAUX, N. La Voix endeuillée: Essai sur la tragédie grecque. Paris: NFR Gallimard, 1999.

SARRAZAC, J.-P. Théâtres intimes. Arles: Actes Sud, 1989.

SARRAZAC, J.-P. Antoine, l´invention de la mise en scène. Paris: Actes Sud-Papiers, 1999.

SARRAZAC, J.-P. Critique du théâtre: de l´utopie ao désenchantement. Paris: Circé, 2000.

SARRAZAC, J.-P. O futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002.

SARRAZAC, J.-P. O outro diálogo: elementos para uma poética do drama moderno e contemporâneo. Lisboa: Licorne, 2011.

SARRAZAC, J.-P. Poética do drama moderno: de Ibse a Koltés. São Paulo: Perspectiva, 2017.

SARTRE, J.-P. Au théâtre, l´imaginaire doit être pur dan sa manière même de se donner au réel. [Entrevista cedida a] Bernard Dort. Théâtre Populaire, Paris, n. 1, maio-jun. 1953.

SARTE, J.-P. Théâtre épique et théâtre dramatique. In: SARTRE, J.-P. Un théâtre de situations, textes choisies et présentés. Paris: Gallimard, 1973. 

SZONDI, P. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosacnaify, 2001.

VINAVER, M. Étais-je sous influence? In: VINAVER, M. Brecht après la chute. Paris: L’Arche, 1993. 

(Publicado em SALA PRETA, 2019, volume 2, http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/166520/159842)

Por Sérgio de Carvalho

Sérgio de Carvalho é dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, grupo teatral de São Paulo, Brasil. É professor livre-docente na Universidade de São Paulo na área de dramaturgia.

3 respostas em “Possibilidades atuais de um teatro crítico: carta de Jean-Pierre Sarrazac a Sérgio de Carvalho (2019)”

Essa dialética de paixão e processo aí muito me interessa. To precisando revisitar o Léxico e o Futuro, ficar menos implicante. Saquei por que você trouxe o Woyzeck pra discussão da crise do drama (em outro texto, achei foda!), e então Sarrazac merece mesmo a atenção que o Berilo já vinha me estimulando a dar ao cabra. Mas por enquanto já ando bem satisfeito com essa sua mediação. Valeu!

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