A beleza de O Mundo Composto vem do sentimento de injustiça que atravessa o pequeno ato: dois homens em cena, a percepção das vidas gastas no trabalho, a elaboração simbólica da própria experiência, no ponto em que a religiosidade camponesa se aproxima da consciência de classe.
O dramaturgo Jorge Andrade aparece ali, ao lado de suas personagens: vê o movimento dos camponeses João Leite e Cícero, entre a esperança metafísica e a rebelião mais terrena, anunciar a possibilidade simbólica de que esses contrários se juntem como força política. Uma dramaturgia que se aproxima dessa forma do ponto de vista dos pobres é coisa rara não só em seu teatro, mas no conjunto da dramaturgia brasileira. É possível enxergar aí mesmo uma ruptura, como o fez Carlos Guilherme Mota, que ocorre quando um escritor supera sua própria concepção de história, antes organizada a partir da existência das elites. Ou notar um amadurecimento de consciência social, em um artista que, na expressão de Antonio Candido, agora pratica uma “solidariedade franca” com os marginalizados e despossuídos.
Acredito ser igualmente notável o fato de que esse olhar interessado em aprender com os “heróis humildes” tenha gerado uma dissolução da estrutura dramática inédita em relação às grandes peças de Jorge Andrade. Se não há em O Mundo Composto qualquer resquício de populismo dramatúrgico é porque o escritor ousou calar a forma do drama, aquela que obriga o autor a converter suas personagens em sujeitos da ação cênica. Ao desdramatizar seu material, Jorge Andrade se recusa também a solucionar na forma emotiva os impasses de uma situação de paralisia social.
Essa opção pela suspensão do drama não é de pouco valor se considerarmos que Jorge Andrade é talvez o melhor dramaturgo da geração que “descobriu o drama brasileiro”. Correndo por fora de um movimento histórico, ele é parte de um grupo que, no fim dos anos 50, tendo à frente as orientações do Teatro de Arena, escreveu pela primeira vez dramas com temática nacional dignos da grande tradição européia do gênero: peças com personagens conscientes de seu sofrimento, que vivem conflitos na condição de indivíduos social e psicologicamente dotados, que hesitam antes de tomar decisões existenciais, sem que isso soasse — como sempre aconteceu antes — uma piada ideológica. Não foi apenas o modo de escrita que mudou, mas sim o processo de aburguesamento no país, que tornava a representação de questões da individualidade menos disparatadas.
Essa geração encontrou um meio-termo entre a abstração da forma e os assuntos da vida real, diluindo, por meio da vitalidade dos assuntos, o caráter postiço da ideologia dramática. Paradoxalmente, foi na variante do “drama social moderno” (já fazendo uso de recursos épicos, como a divisão de planos temporais de A Moratória) que essa forma se difundiu pelo nosso teatro. A tentativa de representação da sociedade brasileira, com aquela que é a mais individualizante das maneiras de representação teatral, nascia paradoxalmente aplicada a personagens que pertenciam a uma elite antiga (culturalmente antiburguesa) ou a uma nova classe baixa urbana proletarizada (como em Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri). Nos dois casos, uma recusa apenas temática ao oscilante processo burguês em curso, cujas crises sucessivas gerariam a explosão de 1964.
A tarefa de viabilizar um Drama Moderno Brasileiro foi talvez a questão mais importante do teatro dos anos 60. Vinha acompanhada da impressão generalizada que nascia enfim uma dramaturgia nacional moderna, mas expunha contradições conforme o desenvolvimento técnico entrava em choque com os interesses de assunto. Cada vez mais pressionado pela politização da cultura do país, que exigia participação dos artistas nos processos mais amplos, formas de representações coletivizantes e compromisso com o projeto nacional-popular, o sonho do Drama durou enquanto houve condições experimentais de expandir seus limites com práticas de encenação mais abertas. Logo migraria para a televisão, em formas menos politizadas. Foi, de qualquer modo, uma novidade histórica, alimentada pela ilusão de que o país enfim tinha indivíduos dotados de autonomia social. Talvez esse fascínio por uma subjetividade possível (também construída na canção popular e no cinema) tenha contribuído para que se tornasse a forma dominante do teatro da década de 1960, mesmo quando desautorizada pela história. A despeito de sua psicologização, sentimentalização e moralismo constitutivos, o Drama seguiu década afora sendo tratado como uma forma literária neutra, ou como um mal necessário, na medida em que parecia importante nomear vítimas e algozes, porque afinal, como disse Boal, o Brasil ainda “precisava de heróis”, de sujeitos — mesmo que simbólicos —, de uma transformação histórica que já não estava ao alcance das mãos. Seu risco, era o risco de uma ilusão que, naquele momento, também sinalizava interesse pela ação humana.
É quando o drama não olha apenas para os indivíduos, mas para suas pressões sociais (sempre algo abstratas) que ele se depara com sua impossibilidade. Quanto mais concretiza seus temas, mais precisa romper com seu caráter fechado, absoluto. Essa percepção, no trabalho de Jorge Andrade, já surge em Vereda da Salvação, quando o escritor escolhe suspender a compressão dramática e desembocar em uma imagem alegórica. Será, contudo, em O Mundo Composto — essa peça esboço, em que ele enraíza o misticismo camponês no mundo do trabalho — que a incompletude dramática se torna mais deliberada, ditada pela necessidade de olhar de verdade para os camponeses: o diálogo, ao mesmo tempo cru e estilizado, serve menos à caracterização dos tipos do que para criar os movimentos de uma ação necessária fora da peça. Se oferecer de modo explícito a dimensão épica, é como se o próprio autor se tornasse personagem oculta e participante do problema da cena.
A motivação íntima de O Mundo Composto fica mais clara quando lemos o texto poético ao lado das reportagens que o geraram. A peça foi publicada originalmente na revista Realidade, combinada
a dois artigos: “Deus é leite, e o cão arado quebrado” e “Caridade para os Mortos”. No primeiro deles, estão indicadas as razões da transformação da reportagem em peça: “Teatro, no meu conceito,
deve ser a crônica do homem no tempo e no espaço, portanto jornalismo dramatizado. O cenário, as personagens, o diálogo são absolutamente autênticos. Anotei tudo, sentado à sombra de um juazeiro, enquanto Cícero e João Leite batiam o pouco feijão que colheram.” O embate entre as visões de mundo dos dois camponeses não é, contudo, uma simples transposição discursiva. Para aprofundar a diferença entre a religiosidade perturbada de João Leite e o materialismo místico de Cícero, Jorge Andrade constrói, por baixo dos diálogos — todo feito de sínteses poéticas — uma evolução gestual que serve para aumentar as conexões com o que está fora de cena: a luta árida contra a natureza, os desejos do corpo, as possibilidades técnicas e metálicas do mundo moderno, a presença dos agentes da fé, a expectativa de uma ação redentora. Para João Leite, Deus é a Vontade que dá e tira, aquele que ajuda e pune, o sujeito fundamental das coisas do mundo. Para Cícero, Deus é as próprias coisas e atos quando são bons: a chuva, o leite, os esforços dos homens em cuidar dos seus. Para ambos, o Cão é o contrário disso, é privação do Bem. E é Deus quem cria o Contrário. O Inferno é sempre assim uma relação tangível: está logo ali, na Lage Vermelha ou nos danos da colheita. Nesse mundo de imaginário concreto, uma cultura de resistência conduz sempre ao enfrentamento das contradições, porque o mundo “é composto,
compadre João”.
Ainda que a peça pareça dar razão maior a Cícero, ela encaminha a personagem para a percepção de que as crenças do místico João Leite não são abstrações irracionais, mas sim formas do real (porque se realizam nos seus atos, inclusive o de ajudar o amigo). A superação da miséria é questão não só deles, e não pode ser resolvida pela fé individual, “de dentro”, mas só se for conectada a um mundo maior. Ao lado dessas personagens, presença invisível, está Jorge Andrade, que também, a seu modo, desceu ao Inferno para escrever esse conjunto de textos tão perturbadoramente inconformista. Na reportagem sobre o caixão da caridade de Águas Belas (publicação da revista Realidade da qual a peça fazia parte), caixão usado pelas famílias pobres para o cortejo fúnebre, ele descreve sua perambulação pela cidade atrás do coveiro, seu estado de impotência diante dos corpos das crianças sem vida, seu encontro com pessoas que já parecem estar em outro tempo. Há um momento impressionante no artigo: quando, sem preâmbulos, ele narra sua compra de um depoimento, seu oferecimento de dinheiro em troca de uma história, para ser usada na reportagem. Envergonha-se do gesto, que ao mesmo tempo é o pagamento de um óbolo ao barqueiro para uma descida ao reino dos mortos. “Um homem conhece o Inferno.” Já distante de Águas Belas, no Sítio Saco, ele conhece esses estranhos camponeses justiçadores, Cícero e João Leite, em sua luta diária com a terra e o feijão. Ouve seus relatos, recria seus esforços físicos, vê o tempo se abrir com suas escadas. É ali que que compreende sua situação: a miséria daqueles homens é também a dele, artista, também a nossa.
(Publicado originalmente em Jorge Andrade: O Mundo Composto.
São Paulo, Editora Cintra, 2013, pp. 68-71)