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Latão e Brecht

Uma fala sobre Ópera dos vivos (2011)

O espetáculo Ópera dos Vivos foi concebido como um estudo teatral sobre o trabalho da cultura. Mais especificamente, a peça estuda a dialética entre a dimensão produtiva e formas de representação, a partir de algumas experiências modelares do teatro, do cinema e da canção, dos anos 60 até hoje.

O projeto surge no momento em que os artistas da Companhia do Latão comemoram 10 anos de sua atividade teatral. O plano de um espetáculo dessa natureza implicava, portanto, uma avaliação dos próprios rumos, um reconhecimento de acertos e limites do trabalho de um grupo, um inventário de experiências dramatúrgicas, e uma prospecção de futuro. 

Reconhece-se na montagem muito das peças anteriores do Latão, algumas cenas já feitas surgem de outro modo, mas também há ali uma consciência cênica e uma atitude dramatúrgica novas, sobre possibilidades de crítica aos padrões de imaginário dominantes.

Na fase de ensaios, quanto mais o estudo teórico e experimental se aproximou de gerar um espetáculo acabado (no sentido inacabado que a montagem tem hoje, de uma peça processo, análoga às peças ensaio do começo do Latão), mais ficava claro para a equipe que a potência crítica e sensível do trabalho se ligaria a sua capacidade de se materializar na forma. Não bastaria pôr o assunto visível, mas a própria forma teatral (em seus vários diálogos com a música, o cinema e a televisão) deveria ser crítica, no sentido de uma demonstração das configurações em crise.

Para aqueles que costumam apregoar a impossibilidade atual de uma renovação da crítica da ideologia e que fazem isso apenas em termos teórico-discursivos, é difícil enxergar o potencial da reflexão estética dialética no que se refere a uma possível historicização e ativação do olhar. Como esse debate sequer consegue ser bem feito em termos abstratos, através de argumentos, costuma ser reduzido às conhecidas fórmulas: “não há nada para ser desmascarado”, “o capital incorporou sua crítica no vórtice da forma mercadoria”, “só é possível aprofundar a negatividade, ao extremo” etc. O ponto de partida do debate costuma ser a identificação do projeto brechtiano doestranhamento a um esquema mecânico de desmascaramento progressista da ideologia burguesa. Como esse desmascaramento já não faz sentido, dizem os reprodutores do argumento, contando apenas parte da verdade, o núcleo central do teatro dialético teria perdido sua validade atual. O próprio Brecht, entretanto, em fins dos anos 40, já tinha percebido o equívoco teórico comum àqueles que não compreendem seu projeto de ultrapassagem da mediação estética. Em seu trabalho importam as atitudes produtoras de contradições: as imagens praticáveis. Uma de suas frases sobre o problema nos serviu de orientação nos ensaios de Ópera dos Vivos. Está registrada à mão no programa da peça, retirada do Diário de Trabalho: “Quando nada mais precisar ser desmascarado, porque a opressão avançará dispensando a máscara da democracia, a guerra, a máscara do pacifismo, e a exploração dispensando a máscara do consentimento do explorado”…

Nessas reticências tem início o trabalho de uma imaginação dialética não ideológica, capaz de renovar, em gestos concretos, os trânsitos críticos entre o palco e a platéia.

Um teatro de demolição ideológica deve começar por aí. Brecht assume sua distância relativa de qualquer “técnica épica” (aquele esclarecimento dualista da mola econômica) no período de exílio nos Estados Unidos, quando constata que os coros narrativos já tinham sido incorporados pela propaganda de Coca Cola, muito antes de um genial crítico brasileiro dizer o mesmo ao pensar sobre a atualidade de Brecht.

Para encurtar a história, quando Ópera dos Vivos assume a forma atual, tornava-se claro que os aspectos decisivos da encenação deveriam se materializar na relação teatral (forma e transito) entre o palco e a platéia.

Imaginamos assim, quatro relações cênicas distintas. A peça camponesa se dá na intimidade da semi-arena, em estilo elisabetano. O espectador está próximo dos atores, na montagem do Rio ele acompanhava a cena sobre o palco. Há um assumido caráter inconcluso na encenação. A cenografia simula um canteiro de obras. É um análogo do teatro em obras do CPC da Une no Flamengo, é um símbolo da construção aos pedaços de um teatro épico na nossa história recente (o que inclui a Companhia do Latão).

O tema da peça, importante para o teatro político no período pré-64, se liga ao surgimento das Ligas Camponeses. Adotamos parte da interpretação do mencionado crítico Roberto Schwarz, que observa em seu ensaio “Cultura e Política” a dimensão dialética comum às jornadas de alfabetização de Paulo Freire e ao ambiente político das Ligas.

“Sociedade Mortuária”, primeiro ato de Ópera dos Vivos, é assim uma parábola sobre a politização, com atenção às dificuldades do processo de aprendizado político e literário. Marivaldo e Aristeu, os irmãos clássicos, Dona Odete, a mãe clássica. O estilo não é naturalista, mas estilizado. O realismo surge de narrativas, canções, e da colaboração imaginária do espectador em relação à ficção. O visível importa menos do que o sugerido. Os fragmentos são épicos, episódicos. O tema enfatiza a importância do pequeno gesto de aprendizado e o vínculo entre cultura e ocupação dos meios produtivos. Mas o ângulo da peça é o do trabalho teatral. E a peça não é do CPC, mas do Latão.

Como a forma dramatúrgica é ora desdramatizada, ora francamente narrativa, sua comoção decorre da luta pelo direito ao aprendizado, do trato com o real, e não da vivência trágica. Como boa peça do Latão, enfatizamos no assunto a dimensão internacional do caso, a cultura da Guerra Fria, e a crise produtiva do velho latifúndio, para que o imaginário arcaizante que costuma envolver as representações do Brasil rural seja desdobrado numa perspectiva da economia mundial.  Está em jogo o trabalho da cultura política, o dos camponeses que se organizam, e o dos atores que participam hoje e no passado, de um processo crítico.

Num sentido extra-estético, a simples eleição do tema das Ligas Camponesas, e a tomada de posição engajada numa certa dinâmica histórica, a da construção da luta de classes no país, intensifica o atrito com as expectativas esteticistas do teatro atual.  Assunto e forma exigem do espectador uma participação simbólica num debate sobre politização. O trânsito entre palco e platéia não é cômodo na medida em que o espectador precisa historicizar debates e imagens como a da seguinte frase:  “os mortos dessa luta estão vivos”.

Não interessa aqui entrar em detalhes sobre cada ato. Importa dizer, que foram pensados por nós sempre a partir de sua relação dialética. Ainda que a divisão em atos estimule comparações entre as partes, o importante para a teatralidade processual deÓpera dos Vivos é sua interação dialética.

Dialética dos atos

O filme mostrado como Ato II é uma projeção frontal. Constrói uma outra relação representacional entre espectador e a cena. A dimensão coletiva da platéia diminui no escurecimento da sala. A câmera, em sua seleção, favorece eleições de ponto de vista. A tradição privatista do cinema moderno intensifica a expectativa do drama pessoal.  Por outro lado, adotamos na forma da imagem uma deliberada auto-exposição, comum aos experimentos modernistas do cinema político do país. Nosso filme, numa relação que não é paródica, parte do modelo de Terra em Transe. Mas é um filme do Latão, e não de Glauber.

Do modelo adotamos a forma da cena coreográfica, em que personagens se põem num quadro de desenho ostensivo. Há, como em Glauber, uma certa retórica lírica derramada (no nosso caso restrita às personagens da elite) e uma atenção à imagem alegórica como indício de uma paralisia da história. Mas tudo isso posto nos termos de nossa época, em que a dinâmica cultural não é politizada, mas extremamente mercantilizada. A narrativa aos saltos acompanha a crise ideológica de um banqueiro, em seu intervalo existencial antiburguês, uma vivência puramente sentimental e cultural, um desvio ideológico de alguém que ainda se entende, pateticamente, como um ser espiritual. Ele tentar elaborar seu idealismo individual como se fosse de classe, num momento em que o humanismo começa a sair de pauta: ele não que ser confundido com o puro predador, mas o golpe de estado se faz necessário para a elite. Todo o material temático do filme, em sua forma ora alegórica, ora documental, ora realista, mimetiza documentos de época sobre o golpe de 1964.

A autonomia do Ato II é relativa. Ele surge mediado pela oposição aos temas e formas do Ato I: um mundo urbano (não mais rural), uma narrativa individual (não uma trajetória coletiva), um mundo mais visto do que imaginado, decisões conscientes e dramáticas das personagens (não há mais a ingenuidade libertadora de quem aprende a ler). Ele é distanciado internamente pelas imagens e debate sobre a peça camponesa.

Enquanto no Ato II a arte do cinema se vê às voltas com um debate, ironicamente posto em termos dualistas, entre arte e mercantilização, no metateatro camponês o que importa é a luta de classes. O próprio papel do espectador muda: deixa de ser público, coletivo, para se torna um observador individualizado. As questões mais importantes do filme se dão, de novo, no nível da crítica da representação. O filme mostra a proximidade perigosa dos campos: Júlia, atriz de teatro político, ligada ao Partido Comunista, também participa do cinema novo, que precisa de financiamento, pois sua distribuição pede um esquema produtivo maior. Uma conciliação reformista passa a ser um motor criticável da narrativa na medida em que a esfera da circulação cultural entra em cena para organizar os raciocínios produtivos: no filme, no jornal, e até mesmo nas discussões sobre teatro. Ainda que a dimensão ideológica do debate pareça se impor, ainda que o encontro aparentemente amoroso produza o desvio antiburguês do banqueiro, é a mudança do trabalho da representação que protagoniza uma cena crítica, figuração da colisão mais geral das forças históricas.

Enquanto na peça camponesa todas personagens são atípicas (em luta com sua função social), no filme a abstração toma conta das imagens de modo mais freqüente e enevoado. Já são mostradas como excepcionais as tentativas de procura de voz subjetiva no processo cultural e o desejo de emancipação coletiva. Persistem nas cenas ambíguas de Júlia no teatro, no carnaval ou na leitura dos versos de Drummond, ainda com um real poder de agregação simbólica (coisa bem diferente da resistência ideológica de Perene no Ato IV).

Canções narrativas

O show do terceiro ato – que surge, como que por trás da tela de cinema – é aquele em que as oposições se convertem em ambiguidades. Há um nível de sátira escancarada à ideologia do “aderir criticando, criticar aderindo”, mas as questões mais decisivas, de novo, se dão na tessitura sutil das contradições entre texto e harmonias, entre as personagens no que se refere a sua conformidade ou inconformidade com a função social que lhe é dada.

A unidade dialética com os atos anteriores só é percebida de dentro do sentido gerado pelas canções. Importam em cena mais as supressões e ausências do que a presença: Júlia, a atriz que se contrapõe ao drama do banqueiro do filme, que encarna o teatro camponês, está desaparecida: foi assassinada. Aparece na evocação de Miranda, a cantora espectral. A lírica é narrativa: na imagem da militante de punhos contra o ar, da correria, do espancamento policial, sujeito e objeto narrativo se confundem: “meu corpo, teu corpo”. Mas Miranda acabou de sair do coma para atravessar o mundo dos vivos do show-business. A arte dita política agora é performática. Sua tendência é a da presença física, literal, concreta, sem segunda dimensão. Os Intactos encampam o discurso do “no crisis, baby”. O espectador admira suas presenças auratizadas, sua identificação cínica ao consumo transgressivo, apenas mediada pela historicização trazida por Bebelo, artista egresso da canção de protesto, ideólogo dos novos arranjos ambíguos. Bebelo, como se dizia em outra peça do Latão, é um intelectual da adesão Lúcia, que frui o gozo da contradição. Tem a consciência de uma mudança que considera inevitável: o salvamento pela mercantilização. Em sua verdade parcial, a da emancipação pelo acordo com a forma-mercadoria num tempo regressivo, a mentira da omissão: o estrago produzido pelo tempo morto, o esmagamento da luta de classes. Contra ele, os mobilizadores da platéia, uma militante de esquerda, que distribui panfletos (a literalidade do gesto tem sua beleza ambígua). E um ator, Perene, ex-integrante do Partido, desempregado. Sua oposição é deliberadamente insuficiente porque já são espectadores, estão à sombra. Mas ainda podem gritar, contra-argumentar. Seus gestos são apenas simbólicos. Na economia real da cena, o distanciamento vêm do sofrimento de Miranda. Sua tentativa desesperada e solitária de marcar a diferença, cresce na medida em que ela vê o mecanismo naturalizado no real protagonista do show: o produtor musical que cafetina Miranda, ironicamente chamado de Benzinho. É o agente serviçal da circulação cultural: o que importa é a reprodução. Benzinho representa o trabalho da cultura que se desencarna, produção de valor sustentada – como um doente terminal – por aparelhos, mas que ainda precisa de faxineiros.

Materialismo e idealismo

Para encerrar, um comentário muito breve sobre o ato IV, que se passa numa emissora de televisão. É o ato sintético, onde todas as energias da peça desembocam. A relação entre cena e história dos atos anteriores se torna mais aguda: não há mais tentativa de acordo (nem mesmo nas aparências) entre conteúdo e forma nesse caso televisivo sobre o amor entre o delegado e a estudante nos anos 60, produzido em escala industrial. A forma dramática é epicizada pelo acúmulo dos temas dos atos anteriores e, sobretudo, pela auto-exposição reflexiva.

A recusa do ator Perene em filmar a cena de morte motivada por um idealismo fora de lugar (ou por um mínimo de coerência dramática), perturba um aparelho produtivo exaurido e à beira de uma crise gerada pelo esfolamento da mão de obra. A abstração das relações é completa. E o estrago pessoal é enorme, ao mesmo tempo em que uma luta interna pelo não-esquecimento é travada, em bases ambíguas.  Anita é filha da atriz Júlia e Perene se formou no teatro político do passado. E até mesmo o Produtor oculto da emissora. Mas ninguém pode se juntar, pois não há mais lugar, nesta modalidade de trabalho de cultura, para o aprendizado polítco, para a história, para a relação desalienante. Resta o tiro no ouvido, quando, a rigor a peça acaba. Por rigor artístico deveria acabar ali, na imagem do suicídio. A canção ambígua do Contra a maré, apresentada como epílogo, faz lembrar o primeiro ato. Dialetiza-se ao surgir na voz da moça da cozinha, personagem à espera de um ônibus que não vem. Dialetiza-se pela imagem do fogo no veículo, supostamente queimado num protesto na favela. Renova seu sentido, ainda, ainda ao se aliar à imagem projetada do grande artista João das Neves, participante do CPC, que surge na representando o camponês Marivaldo na velhice. Mas a rigor, é uma canção ideológica. Por quê? Porque o grupo de artistas da Companhia do Latão, sabendo que Ópera dos Vivos é também uma peça sobre o futuro, assim escolheu, numa assembléia. Porque era preciso, nesse caso, em favor da verdade que se realiza fora do palco, idealizar.

Por Sérgio de Carvalho

Sérgio de Carvalho é dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, grupo teatral de São Paulo, Brasil. É professor livre-docente na Universidade de São Paulo na área de dramaturgia.

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