A primeira menção documentada ao Auto da pregação universal indica esse objetivo. A peça foi escrita a pedido de Manoel da Nóbrega para substituir uma comédia popular mais grosseira, certamente feita a partir de um folheto de cordel, que costumava ser representada pelos colonos na igreja em épocas festivas. É o próprio Anchieta (1945) quem relata sua motivação: “E por impedir alguns abusos que se faziam em autos nas igrejas, fez um ano com os principais da terra que deixassem de representar um que tinham, e mandou-lhes fazer outro, por um Irmão, a que ele chamava Pregação Universal […]. E a gente movida com muita devoção ganhou o jubileu, que era o principal intento da obra. (p. 18)”
A frase sobre o principal intento do escritor – “ganhar o jubileu” da natividade – indica a conexão da peça com o conjunto cultural. Os jubileus eram as festas cristãs mais importantes organizadas em torno dos dias dos santos padroeiros ou de outras datas autorizadas pelo papa. Tinham ares de grandes celebrações medievais e eram ocasiões de romaria. Permitiam batismos feitos em série, o que ocorreu sobretudo nos primeiros anos da presença jesuítica, a partir de 1549. Anos depois, em 1563, o papa Pio IV autoriza num breve que os jesuítas aumentem o número desses “jubileus da conversão”. Quando da encenação do Auto de São Lourenço, em 1587, a prática estava instituída e disseminada. Os jubileus tornaram-se celebrações voltadas para que a comunidade cristã pudesse confessar e comungar, confirmando seu pertencimento à cristandade. O simples batismo dos índios já não era indício confiável da cristianização. A essas festas organizadas pelas aldeias concorriam gente da cidade e das fazendas, bem como os índios e padres das demais aldeias da região, sendo que todos participavam da procissão, com tambores, bandeiras e demais aparatos, após serem recebidos pelos índios principais que se vestiam à portuguesa. As representações teatrais, corridas de cavalos com argolinhas e eventuais touradas seriam complementares ao congraçamento religioso. O jubileu pressupunha uma comunidade já predominantemente cristã, acompanhando, nesse sentido, o desenvolvimento dos aldeamentos jesuíticos que os sediavam. Foram a principal justificativa para as encenações jesuíticas feitas sobre os tablados dos adros, pátios externos das igrejas, na segunda metade do século xvi. A teatralidade religiosa da colônia procurava intensificar uma relação entre pedagogia jesuítica e comunidade, tendência também dominante na Europa. Nos vários centros educacionais criados desde a fundação da ordem em 1540, recorria-se ao teatro como atividade estudantil dos cursos de retórica ou gramática, em festas de fim de ano ou de abertura das turmas de latim.
Não por acaso, os professores dessas matérias se tornaram os principais dramaturgos da Companhia. Em pouco tempo, entretanto, esse teatro se expandiu, extrapolou o espaço do colégio e as datas do calendário educacional, e se tornou uma atividade oferecida à comunidade em geral. As representações passaram a se ligar às festas dos santos padroeiros das cidades, ocupando as praças, num estreitamento de vínculos e de favores com as autoridades políticas e o clero secular. No Brasil, o teatro escrito por Anchieta surgiu fundamentalmente como atividade pública ligada à elite colonial, sempre em ocasiões em que o colégio ou os missionários das aldeias procuravam dialogar com o conjunto daquela sociedade – não apenas com os índios. A compreensão desse fenômeno, ainda que através de uma perspectiva apenas estético-cultural, nos afasta cada vez mais do estereótipo de um teatro catequético em que os dois termos da relação são os missionários cristãos e a plateia indígena selvagem. Como parte do jubileu de um santo padroeiro do aldeamento – e foi esse o caso do Auto de São Lourenço –, o teatro fazia parte de um evento social em que, durante o tempo da festa, ocorria um deslocamento simbólico: a comunidade de índios cristianizados, situada nas periferias ou adjacência das vilas, centralizava momentaneamente as atenções do conjunto da colônia. Portanto, o teatro dos jesuítas só ocorria mediado por uma história anterior de formação do aldeamento, sem qualquer espécie de virgindade no contato cultural. Não estavam em jogo interações originais, mas confirmações simbólicas de vários tipos sendo que a religiosa (materializada, a rigor, na comunhão) era apenas uma delas.
(LEIA O ARTIGO NA ÍNTEGRA EM http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/97454/98281)
Revista sala preta| Vol. 15 | n. 1 | 2015 21Teatro e sociedade no Brasil colôniaNão por acaso, os professores dessas matérias se tornaram os principais dra-maturgos da Companhia. Em pouco tempo, entretanto, esse teatro se expan-diu, extrapolou o espaço do colégio e as datas do calendário educacional, e se tornou uma atividade oferecida à comunidade em geral. As representações passaram a se ligar às festas dos santos padroeiros das cidades, ocupando as praças, num estreitamento de vínculos e de favores com as autoridades políticas e o clero secular6.No Brasil, o teatro escrito por Anchieta surgiu fundamentalmente como atividade pública ligada à elite colonial, sempre em ocasiões em que o colégio ou os missionários das aldeias procuravam dialogar com o conjunto daquela sociedade – não apenas com os índios. A compreensão desse fenômeno, ain-da que através de uma perspectiva apenas estético-cultural, nos afasta cada vez mais do estereótipo de um teatro catequético em que os dois termos da relação são os missionários cristãos e a plateia indígena selvagem. Como parte do jubileu de um santo padroeiro do aldeamento – e foi esse o caso do Auto de São Lourenço –, o teatro fazia parte de um evento social em que, durante o tempo da festa, ocorria um deslocamento simbólico: a co-munidade de índios cristianizados, situada nas periferias ou adjacência das vilas, centralizava momentaneamente as atenções do conjunto da colônia. Portanto, o teatro dos jesuítas só ocorria mediado por uma história anterior de formação do aldeamento, sem qualquer espécie de virgindade no contato cultural. Não estavam em jogo interações originais, mas confirmações simbó-licas de vários tipos, sendo que a religiosa (materializada, a rigor, na comu-nhão) era apenas uma delas.