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Atitude modernista no teatro brasileiro (palestra de 2003 sobre politização da cena em São Paulo)

A história do teatro brasileiro do século XX registra pelo menos três ciclos de politização da prática teatral.

São momentos em que a produção artística mais experimental assume uma orientação crítica de sentido extra-estético, em que predomina o interesse na participação em debates públicos, em que várias experiências isoladas passam a se conjugar em torno da tomada de posições coletivas diante de processos históricos. Nesses momentos em que o teatro brasileiro refletiu com mais intensidade sobre sua própria historicidade muitas obras apresentaram conteúdos sociais manifestos. Mas não foi apenas através da temática nova – interessada na representação de forças sociais em luta – que esses momentos teatrais politizados foram produzidos. Eles exigiram a pesquisa de novas formas, para além do repertório dramático dominante, e uma reflexão sobre relações de trabalho em arte que envolve uma crítica da inserção dos artistas no aparelho produtivo. Não por acaso, foram momentos em que o teatro desejou dialogar com outro espectador, algo mais críticos do que aquela platéia de consumidores letrados que Alcântara Machado chamou com ironia de “burguezmente sensíveis”.

De um modo geral, todos os ciclos de politização do teatro brasileiro no século passado aconteceram sob o signo de uma recusa modernista ao esteticismo burguês. E é justamente a radicalidade dessa atitude modernista que está sendo em parte neutralizada, neste que é o terceiro ciclo de politização do teatro brasileiro, que ocorre no momento presente.

Desejo de interlocução

O primeiro ciclo de politização do nosso teatro foi virtual. Pouco chegou às salas de espetáculos. Aconteceu no final dos anos 20 e durante toda a década de 30. Dele tomaram parte até artistas que atuavam dentro das estruturas do teatro comercial, como Álvaro Moreyra, Joracy Camargo e Jaime Costa, que misturavam discursos comunistas com comédia de costumes. No entanto, as mais importantes experiências de politização daqueles anos não chegaram aos palcos. Foram produzidas por escritores modernistas que debatiam sobre a “arte interessada” e nunca viram suas peças encenadas, dentre os quais se destacam Oswald de Andrade e Mário de Andrade. As três peças escritas por Oswald (O Rei da VelaO Homem e o CavaloA morta) e o esboço de uma ópera coletivista escrita por Mário (batizada de Café) compõem um dos mais avançados projetos de pesquisa de forma antiburguesa já tentado no país.

Mesmo distanciados da prática teatral da época – e até por causa disso – os modernistas brasileiros tomaram conhecimento dos problemas que o melhor teatro europeu politizado vivia desde o final do século 19, quando o projeto do Naturalismo exigiu de gente como o encenador André Antoine uma transformação dos modos de se produzir e circular teatro.

Ficava claro para a geração modernista que os conteúdos sociais novos eram filhos da Primeira Guerra e da crise da Era Liberal, com sua promessa falida de um sujeito autônomo, livre, autoconsciente, idêntico a si mesmo. António de Alcântara Machado, que praticou no campo da crítica jornalística o que Oswald e Mário de Andrade buscaram na dramaturgia, foi o primeiro deles a verificar a impossibilidade de se continuar a dramas realistas, segundo os padrões convencionais da estruturação em atos e dinâmica da intriga. A exigência de realismo entrava em contradição com a dialética idealista do drama quando se tratava da representação de relações coisificadas e mutilados do espírito. A crise da visão burguesa do mundo pedia dos autores a crítica das formas burguesas de representação, e o drama era a mais avançada delas a ser superada.

Era inédito o que acontecia no teatro brasileiro: uma geração intuía que os conteúdos sociais novos só poderiam ser representados por formas que não estavam disponíveis na tradição dramática. Perceberam que a vida atual não cabia no fechamento absoluto do diálogo inter-subjetivo, que não tinha mais sentido mostrar em cena heróis positivos, agentes de seu destino, soberanos da vontade individual, em luta contra uma opressão genérica na medida em que a história é apenas pano de fundo da ação.

Ao trazer para sua pesquisa estética uma orientação política (e portanto extra-estética) os modernistas se vêem obrigados a refletir de modo inaugural sobre possibilidades épicas de representação teatral no Brasil. Só não puderam ir mais longe porque seu projeto os distanciava ainda mais da prática do teatro profissional da época (que não tinha condições de encenar um autor como Oswald de Andrade) e por uma espécie de maldição que ronda os artistas de países periféricos, e como que os obriga a perseguir essa categoria ideal: o drama.

Num país de burguesia indefinida como o Brasil, com uma sociabilidade presa às relações arcaicas do favor, em que as revoluções democrática, nacional e industrial foram tantas vezes adiadas, as expectativas individualizantes de uma possível democratização burguesa parecem persistir no imaginário coletivo. Talvez isso ajude a explicar o fato de que os modernistas paulistas não abandonaram por completo o desejo de dar desfecho dramático a suas peças ou mesmo de criar um Teatro Nacional. Seu repertório técnico ainda estava preso aos modelos conservadores do teatro de tese europeu, contra os quais tanto lutaram para chegar a novas formulações. Sua crítica antiburguesa convivia com a íntima esperança de que alguma afirmação burguesa da identidade dramática nacional seria útil diante da miséria pós-colonial. Entretanto, chegaram mais longe em seus sonhos modernistas politizados do que foram capazes aqueles que efetivamente modernizaram a cena brasileira na década de 40.

Uma prática nova

 A dificuldade de se livrar da expectativa dramática esteve presente também no segundo ciclo de politização do teatro brasileiro, que se inicia como dissidência da modernização conservadora do TBC, já no final dos anos 50. Seu centro irradiador é o Teatro de Arena de São Paulo. Em torno de um projeto de esquerda de orientação nacional-popular, e contando com escritores notáveis como Vianinha,  Boal, Chico de Assis e Guarnieri, esse grupo realizou alguns dos mais importes trabalhos cênicos do teatro politizado brasileiro.

No campo da encenação, seus avanços foram inquestionáveis. Pesquisaram uma atuação brasileira popular, não ignorando as conquistas do realismo stanislavskiano, incorporado através de uma prática laboratorial. Praticaram um sistema de ensaio coletivizado, em que o trabalho dos atores não eram alienado do processo de estruturação do espetáculo. E, acima de tudo, procuraram uma nova relação com o público, vindo a se tornar uma referência de politização da arte brasileira. Na forma mais avançada do CPC, esse ciclo de politização, que dura até o golpe militar de 1964, chega a produzir uma nova relação de trabalho em torno de interlocuções reais com espectadores interessados no debate sobre as transformações políticas do país, estivessem eles nas periferias, praças ou universidades. A crítica da mercantilização da arte nunca foi tão radical.

A contradição do projeto estético do Arena, que ao certo teria sido superada caso o país não tivesse sofrido o golpe do militarismo local e do anticomunismo norte-americano, era de ordem formal, decorrente de um embate entre modelos dramatúrgicos. A nova política da cena praticada naquele pequeno palco fez com que o grupo se afastasse da escola de realismo dramático que predominava entre eles. Formados pela boa técnica dos nós e desenlaces do playwriting,  essa geração era levada pelo contato com o público a explodir seus heróis positivos, a fragmentar os atos, a introduzir coros e canções, a historicizar os acontecimentos, a incorporar, em suma, muitas reflexões formais que Piscator e Bertolt Brecht sistematizaram ao pensar no vínculo entre a pesquisa épica e dialética e a necessidade de modificação da função do teatro.

A hesitação histórica do Arena em romper de vez com a forma dramática burguesa foi análoga à da liderança do Partido Comunista que antes do Golpe militar acreditava ser possível um acordo com a burguesia progressista. Sua prática, entretanto, era mais avançada do que a ideologia, o que se comprova na fundamentação que ela oferece para o experimentalismo de agitprop do CPC. A rigor, foi essa geração quem mais perto chegou da possibilidade de constituir uma nova relação produtiva em artes. E por meio de sua politização, tornou-se realidade grande parte do projeto crítico do modernismo brasileiro. A ela devemos o que de mais importante houve na história da arte teatral do país.

Contradições atuais

Sobre o terceiro ciclo de politização do teatro brasileiro, é difícil falar no tempo restrito de um breve comentário, porque ele está em curso. Teve início há poucos anos, como uma espécie de reação improvisada aos excessos de mercantilização da cultura ocorridos na década de 80. Seu antimodelo era, de um lado o comercialismo teatral pós-televisivo. De outro, o encenador-virtuose esteticista, figura emblemática do teatro experimental da época. De qualquer modo, sua história se liga a uma renovação do ideal de “pesquisa em arte” através da difusão local das escolas e universidades de teatro.  

Esse movimento se produz a partir do fortalecimento da idéia de trabalho teatral em grupo. Por uma série de razões ligadas a ausência de condições produtivas estáveis, surgem nas grandes cidades brasileiras (e sobretudo em São Paulo) vários jovens coletivos de artistas que procuram coletivizar a escrita cênica. Por força dessa coletivização do trabalho teatral, aliada a uma gradativa retomada do interesse por temática histórica, surgem muitos espetáculos baseados em formalizações épicas, narrativas, com ampliação de um interesse há muito abandonado: o de representações de temática social manifesta. De fato, desde os anos 70 o teatro brasileiro não conhecia um movimento de teatro reflexivo e politizado tão significativo como este.

O paradoxo desse terceiro ciclo de politização é que ele está condicionado historicamente por um violento totalitarismo da forma-mercadoria e pelo enfraquecimento dos projetos socializantes que, não obstante seu caráter muitas vezes ideológico, tinham poder de agregação e de confronto com a tendência esteticista da formação dos jovens artistas oriundos de universidades.

De um modo geral, esse novo ciclo ainda é reativo. Muitos desses novos grupos politizados parecem acreditar que a radicalização estética é um antídoto suficiente contra a hegemonia das mercadorias culturais. Ao comprar o lugar-comum de que qualquer perspectiva revolucionária hoje corresponde a um saudosismo sem pé no real, contentam-se com um teatro que seja uma alternativa cultural mais humanizadora diante das indústrias culturais.

De outro lado, nenhum esquerdismo acrítico, puramente ideológico ou temático, sem vínculo com práticas e atitudes transformadoras das relações de trabalho, pode fazer frente a essa tendência estetizante que freia o avanço político dos jovens grupos de pesquisa coletivizada. A encenação de temática social na base do monologismo pós-dramático não oferece ferramentas formais para um compreensão das contradições de uma luta de classes que continua a ocorrer, a despeito da confusão teórica nesse campo.

Sem que a crítica extra-estética interaja com uma reflexão prática sobre as condições do trabalho artístico, estamos aquém da atitude modernista da busca de uma mudança da função do teatro. Ontem e hoje, para o artista politizado, importa que o teatro seja mais do que teatro. E para isso se fazem necessários novos confrontos, em perspectiva mais radicalmente anticapitalista, dentro e fora da sala de ensaio, no diálogo com os outros produtores e com um público que deixa de ser, assim, espectador.  

Nas últimas eleições para Presidente, os artistas brasileiros tiveram vários sinais de que o momento histórico do país permitiria a retomada da atitude modernista em bases mais críticas, sem falsificação do estágio do capitalismo mundial. Alguns desses sinais vieram da própria direita. Um jornalista do maior semanário brasileiro, afinado com sua medíocre publicação, escreveu, em tom metafórico, que o pior efeito da vitória de um partido popular seria ver o teatro tomando conta das ruas.

 O nosso trabalho atual deve vir no sentido de confirmar esse temor da participação popular. Se o governo atual ainda hesita em se opor aos interesses especulativos de uma burguesia que historicamente continua amorfa, no campo da representação devemos estar livres para dar imagens e nomes às forças em luta.

(Texto de palestra realizada em 2003 e publicado no livro recentemente lançado Próximo Ato: teatro de grupo, organização A. Araújo, J.F.P. de Azevedo e M. Tendlau, São Paulo, Itaú Cultural, 2011.)

Por Sérgio de Carvalho

Sérgio de Carvalho é dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, grupo teatral de São Paulo, Brasil. É professor livre-docente na Universidade de São Paulo na área de dramaturgia.

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