Marcos Steuernagel – Uma das questões interessantes do trabalho do Latão é essa idéia de usar o Brecht como um modelo, mas tentar construir uma espécie de teoria brasileira do Brecht, de entender como a teoria dele chega no Brasil. Você poderia falar sobre isso?
Sérgio de Carvalho – O mais importante da obra de Brecht não são apenas seus resultados formais e de estilo, mas o quanto eles traduzem um trabalho, que está além da obra. Esse trabalho teatral não acontece dentro do palco. Ele se dá na passagem do palco para a platéia. O importante no modelo brechtiano é uma atitude, que se realiza no trânsito entre artistas e público, e desloca a função convencional da arte. Como a dialética não incide apenas sobre o campo artístico, mas sobre a dimensão extra-estética, ela exige uma reflexão atual sobre o sentido desse trânsito simbólico, sobre as feições contemporâneas da ideologia e sobre a função do teatro. Essa atualização não pode se dar apenas em níveis epidérmicos. Não adianta pegar uma peça antiga de Brecht e fazer um aggiornamento, transpor as personagens para o tempo presente ou coisas do tipo. Não basta introduzir nela assuntos atuais. É preciso pensar: que tipo de trânsito essa peça podia gerar no passado e que tipo de trânsito ela pode ter hoje? Por isso é uma obra modelar. Ela se oferece como uma pedagogia para que possamos construir ações teatrais contemporâneas capazes de modificar a função do teatro. Uma das bases do projeto brechtiano era a demolição ideológica. Era um teatro feito para desmontar ideologia, e para isso gerava um choque entre a base material das personagens e suas imagens do mundo. Ele atritava visões e idéias com relações concretas de trabalho, procurando, não exatamente desmascarar as idéias dominantes, mas gerar no público um trabalho de indagação histórica sobre o acontecimento representado. E Brecht percebeu que falar em crítica da ideologia só fazia sentido se a crítica da representação teatral fizesse parte do problema. Assim, para você se utilizar do modelo Brecht, você precisa pensar no modo como as idéias e imagens dominantes se impõem hoje (muitas vezes sem disfarces), nas formas dramáticas da indústria cultural, nos automatismos técnicos do mundo do trabalho que naturalizam de outro modo as dinâmicas culturais. Trabalhar com o teatro dialético hoje pede uma reflexão não apenas sobre modos de historicizar o olhar, mas uma experimentação sobre novas atitudes coletivas. E isso pressupõe um estudo das modalidades do fetichismo hoje. Então, o ato de você criar uma versão brasileira do teatro dialético é um desenvolvimento da própria coordenada de base da teoria brechtiana – o marxismo. É um desenvolvimento que se aponta na própria dinâmica interna da obra do Brecht.
Marcos Steuernagel – Você teria algum exemplo de algo que a própria teoria do Brecht propunha, mas que vocês tiveram que reinventar, que reavaliar por causa da diferença de contexto?
Sérgio de Carvalho – Em algumas peças, como por exemplo, Santa Joana dos matadouros, Brecht trabalha com configurações iluministas da ideologia. Morgan, o grande capitalista do mercado de carnes, cita Goethe e Schiller quando negocia salsicha em Chicago. Ele lamenta os horrores do negócio de carne no tom da poesia humanista alemã, no mesmo movimento em que trava uma luta de morte com os seus concorrentes e que pisa na cabeça dos operários dos matadouros. Você tem ali um tipo de modelo: o da interação entre a prática desumanizadora e o discurso humanista. Em Brecht já não se trata de uma oposição simples, mas de uma interação. Mas quando se examina a história da burguesia brasileira, percebemos que o idealismo clássico nunca apareceu aqui para encobrir nada. Mesmo quando usado para justificar a barbárie, o discurso de defesa da liberdade e justiça nem era levado a sério, era um adorno letrado justaposto à prática crua. A indefinição cultural da elite brasileira é maior. O histórico aburguesamento oscilante da elite no Brasil contribuiu para que a representação dos conflitos sociais sempre fosse enfumaçada, pouco nítida. A opressão e sua justificativa têm feições diferentes aqui. Então, você precisa examinar isso e criar personagens diferentes. Numa burguesia que não trabalhou pelo ideal da autonomia, que não chegou a fazer revolução industrial, revolução nacional e revolução democrática – a cultura da exploração tem aspectos diferentes. Por outro lado, o Brasil sempre reflete o avanço mundial: aquilo que o capitalismo global está se tornando. Aqui a desregulamentação é a regra, o trabalhador não tem autonomia para negociar sua força de trabalho, a noção de direito é confusa, a herança escravista não desapareceu do imaginário social. E você tem que levar essas coisas em consideração. Você tem que criar personagens mais ambíguas, dominações mais íntimas, violências mais cordiais, difusas, internalizadas. Ao mesmo tempo, você tem que avaliar o estágio atual da luta de classe, para não representar apenas um teatro da derrota ou do estrago social. É preciso indicar a existência, mas sem ilusões, das tentativas de oposição que passam por organização política.
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Marcos Steuernagel – A relação política do Latão com o MST, tem o objetivo de melhorar, interferir, ou se relacionar de alguma maneira com o próprio MST, ou o objetivo é dar visualidade a eles? Qual é a intervenção política que está acontecendo ao trabalhar especificamente com o MST, e não só com o tema do MST?
Sérgio de Carvalho – O MST não precisa de visibilidade que não venha dele mesmo. Como todo movimento anticapitalista, tende a ser criminalizado pela mídia convencional. Associa-se ao MST a imagem da violência, da desordem, e não a de um processo organizado de luta pela reforma agrária. O nosso esforço, nas colaborações com o movimento, é contribuir para uma reflexão sobre a crítica dessas representações convencionais, que muitas vezes surgem dentro da própria esquerda. Mas a verdade é que sempre aprendemos mais do que ensinamos. A nossa história de colaborações com o MST começou em 1998. E já experimentamos vários tipos de relação de trabalho: oficinas, ajudamos indiretamente a criar um grupo de teatro dentro do MST, escrevemos textos para jovens artistas, apresentamos espetáculos dentro de cursos ou comemorações etc. Até programa de TV fizemos juntos. Mas é uma colaboração menos frequente do que gostaríamos. Ela não pôde ser mais intensa porque isso depende de você ter tempo livre para poder se dedicar a essa militância. Um dos projetos atuais do Latão é ampliar essa parceria, na medida em que temos agora condições materiais de fazer isso. E tem outro ponto: para você intensificar a relação com qualquer movimento social, você precisa atuar dentro dele.
Marcos Steuernagel – E você vê esse trabalho como uma contribuição ao MST, ou como uma contribuição social mais ampla?
Sérgio de Carvalho – Eu acho que o trabalho com o MST é um exemplo da necessidade de uma atuação para além do teatro comercial, além do espetáculo. Mas o nosso trabalho é artístico. E a nossa contribuição social maior vem de nosso aprendizado crítico, da nossa capacidade desenvolvida de oferecer modelos dramatúrgicos para a renovação das relações entre arte e sociedade no Brasil. O Latão libertou o desejo de uma geração de teatro de reaproximar arte da política. Fez isso se opondo a uma certa tendência formalista que predominava no teatro de pesquisa, ao resgatar o gosto por assuntos públicos e históricos. E isso sem nenhum conteudismo, sem abrir mão de uma pesquisa estética radical. O grupo ofereceu modelos para que os jovens artistas de teatro de São Paulo criassem caminhos para um teatro politizado e mostrou modos de diálogos abertos com a tradição marxista, considerada por muitos como superada. Ao conjugarmos radicalidade estética com pensamento politizado, numa síntese artisticamente sofisticada, estimulamos a retomada – em novas bases – de um trabalho teatral que tinha sido deixado de lado no período da ditadura militar. O Latão contribui, ainda, para a formação de vários jovens grupos das cidade de São Paulo (surgidos em suas oficinas ou estimulados por seus espetáculos) e para a politização do teatro de grupo da cidade, participando ativamente de um movimento chamado Arte contra a Barbárie, que teve conquistas públicas, organizando um jornal e estimulando diversas manifestações por melhorias das condições de trabalho dos artistas.
Marcos Steuernagel – E como você analisa o contexto em que o Latão surge, a dificuldade de falar sobre questões políticas no teatro…
Sérgio de Carvalho – É um momento de fim do socialismo dito real e da hegemonia do projeto neoliberal. No início da década de 90, o avanço da economia e do ideário neoliberal coincide na América Latina com o momento pós-ditadura militar, com a abertura dita democrática de muitos países. Era um momento em que o trabalho politizado mais avançado e importante estava sem lugar. Os artistas politizados do teatro brasileiro ou tinham morrido ou tinham voltado do exílio com dificuldade de lidar com a nova conjuntura, em que a cultura de esquerda tinha sido esmagada e todo o debate público surgia atravessado pelas formas mercantis e midiáticas. Em meados da década ainda se levava a sério o discurso sobre o fim da história e toda aquela bobagem mais ou menos filosófica que tomou conta do pensamento artístico interessado na grande circulação internacional. Mas isso se esgota muito rapidamente. No fim da década o imaginário neoliberal já estava despedaçado, já havia uma ressaca, e as crises asiáticas confirmavam os novos termos do debate, marcados por um novo ciclo de contestação ao capital e a eleição de governos menos conservadores na América Latina.
Marcos Steuernagel – A imagem da ressaca é bastante interessante, porque a ditadura realmente esmagou todo o movimento teatral que tinha muita força nos anos 60 e começo dos 70. Mas depois, mesmo com o processo da abertura e com o fim da ditadura, alguns desses grupos ou pessoas que tentam voltar não conseguem. Tem um momento, mesmo com o fim da ditadura, em que é difícil o teatro político acontecer
Sérgio de Carvalho – Em quase toda a América Latina houve ditadura militar. Essa conseqüência da Guerra Fria estancou um processo de construção e desorganizou gerações de artistas. Ao mesmo tempo, os modelos centrais dos países de cultura de exportação (Estados Unidos, França, Inglaterra) aderiram a um viés contracultural que canalizava parte das energias políticas. Se já não era possível fazer a revolução social e econômica, que se fizesse a revolução comportamental antiburguesa – foi o que passaram a dizer muito artistas talentosos. Houve, na América Latina, um deslocamento da luta anti-imperialista e anticapitalista para a luta cultural antiburguesa. A mudança de conjuntura ideológica mundial e a realidade de massacre local andam juntas e ninguém mais podia fazer teatro político, senão ia para cadeia e podia, de fato, morrer. Quem veio depois da onda dos anos 1960, já estava isolado. Muitos artistas de esquerda, para sobreviver, tiveram que trabalhar na indústria cultural que cresceu muito nesse período. A maior emissora de televisão, a TV Globo, deve muito à criatividade desses artistas. Foi uma televisão que apoiou a ditadura e paradoxalmente, acolheu os desgarrados da cultura no momento seguinte, o de fechamento das instituições democráticas. É famosa a frase do proprietário da TV, Roberto Marinho: “Dos meus comunistas cuido eu”, deixando claro que a repressão devia servir à modernização capitalista e não o contrário. É um quadro bem complexo. O teatro político não acabou, ele foi exterminado. Sobreviveu escondido nas periferias das grandes cidades e na vontade dos exilados. Quando ele ressurge como movimento nos anos 90, aparece com gerações que tiveram pouco contato com as realizações anteriores. O contato entre as gerações se perdeu. E na a arte é muito importante você ter modelos.
Marcos Steuernagel – Mas parece que há um certo período, depois do processo de abertura e do fim da ditadura, na década de 80 e começo da década de 90, em que não havia mais repressão, mas mesmo assim parece ser difícil falar sobre temas políticos, por uma conjuntura econômica, de política neoliberal…
Sérgio de Carvalho – É que a repressão existe quando é necessária. O que era forte nos anos 80? O modelo da nova encenação internacional, estetizante, plástica, operística. Era um modelo não-verbal exportado pelos festivais de teatro que começaram a crescer. Elas incorporavam o discurso pós-estrutalista do fim das narrativas. É um tipo de poética teatral muito sensorial, muito ligada a deslocamentos perspectivos, trabalhando com paisagens abstratas, ruínas da civilização, numa relativa liquidação da história. Então é isso que os encenadores do Brasil começam a imitar: o trabalho dos grandes encenadores das paisagens oníricas. E começam a rejeitar um teatro inscrito na realidade, que passa a ser associado às velhas formas de politização que supostamente tinham fracassado. O passo seguinte é rejeitar a própria idéia de imitação, o próprio teatro representacional, em nome de uma cena mais performática, da pura presença, que disfarça nesse culto à linguagem o seu subjetivismo extremado. São os modelos disponíveis. Junta-se a isso o preconceito com o antigo projeto nacional-popular: “Ah, não vamos fazer mais teatro sobre Brasil, esse idealismo acabou, para o bem e para o mal”. Um outro aspecto é que crescem nos anos 1980 os cursos universitários. O teatro passa cada vez mais pelas escolas, e a universidade brasileira também consome modelos teóricos pós-modernos. Ela passa a discutir a mesma teoria que a universidade de Nova Iorque ou de Paris, com questões que não necessariamente nos dizem respeito. Um estudante de teatro brasileiro conhece tão bem a obra de Bob Wilson quanto um estudante de fora, talvez até melhor do que um estudante norte-americano. No entanto, ele não conhece a obra de Augusto Boal, que foi praticamente proscrita da universidade brasileira.
Marcos Steuernagel – O Boal é um bom exemplo. Ele é conhecido no mundo todo, mas no Brasil ainda é difícil… Principalmente no momento em que ele tenta voltar para o Brasil e não tem muita aceitação, que tem a ver com…
Sérgio de Carvalho – É esse quadro de absurdo que eu procuro descrever: você estuda teoria do teatro pós-dramático no Brasil, estuda teoria da performance, e não estuda a obra de gente como o colombiano Enrique Buenaventura ou de brasileiros como Vianinha e Augusto Boal. Então, quem faz teatro politizado aqui hoje está na contramão de uma cultura que não produz teoria própria. Foi isso que obrigou os próprios grupos a se organizarem como coletivos de trabalho em torno de um aprendizado em aberto. O retorno à criação coletiva dos anos 90 foi uma necessidade de trabalho do ponto de vista econômico – era preciso produzir teatro de um jeito ou de outro. Mas foi também uma consciência dos limites conceituais que nos foram impostos. Não é por acaso que o passo seguinte dado pela maioria dos jovens grupos é a crítica da mercantilização do trabalho cultural. Assim, a politização do teatro de grupo em São Paulo ocorre como decorrência e como vontade de superação de uma miséria que é prática e teórica. E vão ser justamente esses grupos que dão um avanço. O teatro brasileiro mais importante da atualidade, eu não tenho dúvida, vem dos grupos capazes de fazer a crítica de sua própria situação produtiva.
Marcos Steuernagel – Você percebe essa politização como um movimento dentro do teatro brasileiro hoje, ou você acha que ainda é uma exceção?
Sérgio de Carvalho – Esse quadro a que me refiro é de São Paulo. Eu costumo dizer que essa cidade é um laboratório avançado do capitalismo mundial, onde todo tipo de experimento acontece. Aqui o capitalismo anuncia sua imagem futura: explosão demográfica no limite do infernal, relações de trabalho violentíssimas, degradação humana extrema, em que os mortos-vivos das ruas convivem com a elite oculta em carros blindados ou em helicópteros. O movimento de teatro de grupo tem prestado atenção nesses processos, que incluem uma supressão da dimensão histórica. Por isso os grupos começaram a se organizar, mas sempre às voltas com o risco de uma institucionalização, e conseqüente recuo político, que se torna mais iminente numa era de crescimento capitalista e de incorporação dos protestos pelo programa social-democrata do governo Lula.