Categorias
sem categoria teatro e literatura

Notas sobre a prática dialética de Boal (2009)

Augusto Boal mudou o lugar do teatro. E realizou o gesto através de uma reflexão teórica única, capaz de inaugurar uma prática de ativação popular trans-estética. O paradoxo é que seu seu projeto contém, ao mesmo tempo, uma negação da arte e a geração de campos de autonomia estética, com vistas a uma práxis igualitária. Assim, em cada afirmação esperançosa sobre as possibilidades de ação humana transformadora, Boal inscreveu também um não fundamental, porque desde cedo foi um dialético. Não conheci mais interessado na mobilidade, na incerteza, na ambigüidade.

Em suas “memórias imaginadas” que têm o título curioso de Hamlet e o filho do padeiro (Record, 2000), as evocações da trajetória familiar e profissional deflagram mais do que a luta entre o ser e o não ser, a verificação de uma unidade relativa ao tempo. “A tragédia de Hamlet não é ser ou não ser: é ser e não ser. Hamlet é os dois (…) e só não sabe ser ele próprio. Sou especialista nessa dicotomia.”, diz Boal. 

A arte, segundo essa visão, é uma produção humana que tem sentido ao produzir o desconhecido, ao inventar um lugar sempre mais além, chamado “outro”. Boal criou, nessa perspectiva, condições estéticas (e extra-estéticas) que permitem exercícios de autonomia crítica e política. 

Talvez tenha sido essa tendência de espírito que o fez, ainda muito moço, trocar a carreira de químico pela de fazedor de teatro, expressão vaga que não abarca sua múltipla atuação. De tudo Boal fez um pouco: foi dramaturgo, diretor, professor, ensaísta. Sempre excessiva e brilhantemente. E sua visão dialética enfatizava a temporalidade das coisas: tinha uma atenção toda especial à vida em fluxo. Enxergava nas partes as dinâmicas do todo. Sabia que toda afirmação é uma supressão. 

Laboratórios e seminários

Boal se decide pelo teatro nos anos 1950, quando se matricula no curso de Dramaturgia de John Gassner, na Universidade de Columbia, Estados Unidos, em paralelo à especialização em Química. Nas horas vagas acompanhava também oficinas no Actor´s Studio. Em dois anos, perdeu o interesse pelas metamorfoses de substâncias, cada vez mais pautadas pela pesquisa industrial, submetidas aos interesses das trocas mercantis. Preferiu a imprecisão do teatro, sua construção precária, também sujeita às imposições da mercadoria, mas sempre algo anacrônica e artesanal quando comparada à serialização cultural. 

Em todos os trabalhos importantes que realizou, Boal imprimiu a herança científica que o levou ao estudo de química. Não é à toa que usou a forma dos laboratórios para transmitir seus conhecimentos ao elenco do Teatro de Arena, grupo dirigido por José Renato, onde ingressou em 1956. 

Mal se iniciava como diretor de cena, Boal valorizava o processo para desautomatizar o produto. Criou um sistema de ensaios feito de exercícios preparatórios de aproximação psicofísica ao papel, com base em Stanislavski, distendendo o tempo de ensaio e coletivizando os procedimentos para além da simples marcação do texto decorado. 

Na área da dramaturgia, depois de um curso interno oferecido ao grupo para compartilhar a chamada carpintaria aprendida nos Estados Unidos, ele funda o famoso Seminário de Dramaturgia, aberto a escritores e estudantes, com a tarefa de estimular a escrita de textos nacionais. Naquele tempo, ele acreditava em estruturas dramáticas clássicas: a peça teatral nasce do entrechoque de vontades individuais rumo a sua reviravolta. Mas essa técnica se relativizava na prática experimental de intercâmbio com os jovens integrantes politizados do Arena (Vianinha e Guarnieri eram filhos de artistas ligados ao Partido Comunista e discípulos de Ruggero Jacobbi, o mais culto dos encenadores italianos que passou pelo TBC de São Paulo). 

Mesmo sendo difícil avaliar o período em função da escassez de documentos, não há dúvida que o trabalho de Boal foi o catalisador de uma revolução estética a partir de sua ação no Seminário de Dramaturgia. O que parece ter ocorrido ali é uma superação do modelo aprendido em Nova Iorque em função de outros fatores, entre os quais o sucesso temático de Eles não usam black-tie, de Guarnieri, que punha em cena embates da vida operária e trazia um modelo em que o conteúdo social pressiona o moralismo da forma dramática. Refuncionalizava-se, assim, a forma do conflito psicológico em nome de um projeto crítico de arte popular e brasileira. A técnica estrutural aprendida com Gassner, de base hegeliana, se convertia na procura sistemática de uma dialética do drama, ampliada com a leitura do próprio autor da Fenomenologia do Espírito. Instaurava-se a prática do debate político sobre uma cena em que o risco do patrulhamento era um mal menor diante da impressionante mobilização dos sentidos cênicos para o momento histórico agudo em que o país entrava. Tudo isso se imagina por depoimentos da época, e pelos resultados no trabalho de tanta gente que começou a escrever do dia para a noite. Muitos dos melhores dramaturgos do país que depois migraram à televisão – penso em Lauro César Muniz e Benedito Ruy Barbosa – devem seu conhecimento técnico a Boal. 

Mas a lógicadialética que Boal transmitia em seus cursos, impunha a ele próprio uma atitude de negação. A melhor peça escrita por ele no período, Revolução na América do Sul, de 1960, se afasta do padrão do conflito inter-subjetivo, a ponto de se converter em outra coisa. A saga cômica do famélico Zé da Silva rumo a uma incompreensão cada vez maior sobre o funcionamento do sistema econômico está mais próxima da palhaçada do circo, em sua estrutura despedaçada. São episódios de uma ingenuidade, na forma de números irônicos. Não se vê ali o realismo autoconsciente com desenlace positivo que anima peças sociais do período. Boal dialoga, mais do que nunca, com a técnica do teatro épico de Brecht, autor que admirava e conhecia bem, mas que não lhe falava ao coração luso-brasileiro, talvez por seu materialismo por demais cortante e distanciado. 

Mas ambos são dialéticos. E mesmo que Boal tenha sido, do ponto de vista filosófico, um idealista, sabia transmudar essa tendência numa prática artística cambiante, feita de atitudes gestuais críticas e reflexivas. Como muitos artistas modernos, Brecht e Boal quiseram que o teatro fosse outra coisa além de “teatro”. Que fosse capaz de desmontar o imaginário social dominante, ao preço de ter que se negar – no sentido hegeliano de aprofundar para superar – a dimensão estética. 

O ator se transforma em personagem. O palco real instaura mundos irreais. É comum que essa qualidade contraditória do teatro seja cultuada em termos idealistas: a essência do teatro estaria nesse constante ser-no-outro. Mas a obra brilhante de Boal é um testemunho de que a dialética deve incidir sobre si própria. Daí seu movimento de recusa do teatro. Não basta saber que o teatro aproxima os contrários, é preciso algo mais do que a conciliação abstrata. Como artista da ficção mimética, ele procurava algo que não se representa, mas se pressente. Uma vitalidade indefinível que nasce de uma concretização singular mas não absoluta, de uma capacidade de trânsito livre e ativador entre palco e platéia. 

Sua diferença em relação ao projeto de Brecht se deve também a uma interpretação sobre a situação histórica do Brasil na década de 1960. A crítica dos principais artistas da época ao populismo do pré-1964 partia de uma verificação dolorosamente palpável: houve ilusões em relação ao projeto de uma arte socialmente integradora no luminoso período entre 1960 e 1963, comparável ao engano de acreditar que a burguesia progressista so país combateria do lado das reformas socializantes pretendidas pela equipe de João Goulart. 

Mas os equívocos populistas do teatro experimental de conscientização política – cujo mais avançado exemplo é o CPC da UNE, liderado por Vianinha – são insignificantes diante dos enormes avanços artísticos surgidos da nova relação de trabalho surgida. Ao se aproximarem dos despossuídos da cultura, essa geração de artistas mudou. Aprendeu a expor a fragilidade de uma produção cultural que precisa reinventar suas formas e sentidos. Por mais que em algumas ocasiões Boal partilhe da depreciação injusta lançada sobre os CPC da UNE, o Teatro do Oprimido não existiria sem esse passado, assim como o CPC não existiria sem Boal. 

Com o fechamento político do pós-64, ele se vê em uma nova situação imposta pela conjuntura, o que modifica a fase de sua invenção laboratorial. Nos espetáculos da série Arena Conta sobre figuras históricas brasileiras (Zumbi de Palmares e Tiradentes) Boal põe em prática uma forma de atuação em que o elenco assume o espetáculo como evento narrativo. Criava, assim, o sistema do Coringa, em que a personagem era transmitida de um ator para outro. Como convenção da troca, um dedilhar musical forte no violão e a repetição de um gesto marcante pelo intérprete seguinte. Vários atores conduzem a mesma personagem, ajudados por um mestre de cerimônias, o Coringa, que comenta a ficção. A idéia de um gesto social citável e de um teatro narrativo e musical são heranças brechtianas. Servem agora como suporte para uma alegoria lírica sobre o país diante de seu passado imediato. Massacre imposto e equívoco dos intelectuais. Sempre que voltava a esse assunto, Boal costumava comentar a frase de Brecht segundo a qual é “triste um país que necessita de heróis”. E lembrava que o nosso é triste porque precisa dos atos individuais libertadores. Em que pese aí uma insistência discutível na importância de uma dramaturgia capaz de criar mitos (ao contrário do que argumentava a crítica de Anatol Rosenfeld na época), o idealismo dramático expõe suas franjas e mangas no avesso: era dialetizado pela prática coletiva dos ensaios. Boal escrevia Zumbi com Guarnieri, ao mesmo tempo em que Edu Lobo musicava as letras. No ensaio da noite, o texto se corrigia pela interação com os atores. Trabalho coletivizado e não especializado. O senso agudo de individualidade de Boal precisava do grupo. E para ele o teatro de grupo só existe quando o projeto se torna transmissível, citável, como os gestos dos atores no sistema coringa. 

Luta no exílio

As mais interessantes e modelares experiências artísticas de Boal durante a existência do Teatro de Arena estiveram ligadas ao desejo de interferir no tempo histórico. Mas quando o governo militar decide fechar o cerco sobre o movimento estudantil, e por tabela sobre a vida cultural, cuja contestação ainda era admitida nos anos anteriores, ficou nítido quem conduzia o processo. Enquanto foi possível atuar coletivamente no campo do teatro, a imaginação laboratorial de Boal produziu novos experimentos: o Núcleo 2 do Teatro de Arena difundia exercícios de Teatro Jornal, em que o noticiário do dia era encenado em perspectiva crítica à noite. Mais uma vez Boal sublinhava a perspectiva metodológica do exercício. Não era só o assunto jornalístico que o público via, mas uma técnica transmissível que ele próprio poderia reproduzir para ter acesso a outras imagens da realidade. Boal procurava retomar o agitprop (o teatro jornal foi muito usado por Vianinha no CPC) aliado ao conceito da multiplicação de células. A ferramenta deveria ser capaz de se adequar à mão de quem usa. 

Com sua prisão no início da década de 1970 e subseqüente exílio, no período mais violento dos assassinatos da ditadura, essa disposição científica, ligada a uma prática artística comunitária, sofreu um grande abalo. 

Isolado, restou a Boal, no fracionamento imposto pelo exílio, a tarefa de produzir sentido em relação à experiência passada. Assim como Brecht escreveu a parte mais famosa de sua obra nos anos de fuga da guerra e do nazismo, foi no deslocamento entre Argentina, Peru, Portugal e França, que Boal constitui as bases de seu trabalho mais conhecido, o Teatro do Oprimido

Todo grande artista ligado a uma prática coletiva sentirá como trágica a experiência de ter que atuar à distância, em abstrato, através de textos que não passam pela prova do confronto com o público. Brecht considerava certas peças da maturidade como uma “regressão técnica”, necessária diante do novo contexto de sua produção. Alguns dos primeiros trabalhos de Boal no exílio indicam a modificação de curso: da experimentação teatral dialética ele passa a procurar fórmulas que superem as contradições do projeto de uma arte popular crítica e radical que parecia ter fracassado. “É preciso cunhar fórmulas”, já disse Brecht, mas a redução que facilita a circulação é a mesma que traz a perda da complexidade. 

Talvez haja um deliberado recuo necessário nas reflexões de Boal contidas no mais famoso de seus livros, Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas, publicado pela Civilização Brasileira, de Enio da Silveira, em 1974. É uma compilação de trabalhos críticos ligados aos anos anteriores do Teatro de Arena, reorientados por uma idéia que seria decisiva para ele a partir de então: a tradição do drama ocidental se baseia na intimidação poética e política do espectador. Seria, portanto, preciso ir além e ativar literalmente o público: “O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude.” Em outros termos, é preciso que alguém diga stop e o próprio espectador suba ao palco e conte sua versão da história, como ocorre na técnica que Boal batizou depois de Teatro Fórum.

A simplificação teórica está em dizer que o ato de espectação é necessariamente passivo. E que o público, por estar sentado, é desde sempre vítima do consumo das imagens. Como bom dialético, Boal sabe que exercer a imaginação, o senso crítico e a sensibilidade são atividades produtivas. Depende do modo como a relação teatral se configura. Mas como em outras ocasiões, esse limite idealista da teoria é autonegado pelas demonstrações práticas que surgem nos livros posteriores, todos manuais de prática teatral: Técnicas latino-americanas de teatro popular, 200 exercícios e jogos para o ator e o nõa-ator com vontade de dizer algo através do teatro, Stop: c´est magique! Nenhum artista brasileiro até então produziu uma síntese tão inventiva de procedimentos de trabalho teatral com vistas a sua utilização deslocada.

Em Stop: c´est magique! Boal revela o principal motor das várias técnicas abarcadas sob o título Teatro do Oprimido (a do Forum, da Imagem, do Teatro Invisível etc.): transmitir a qualquer um os meios de produção teatral como ferramentas para uma consciência pedagógica. E essa pesquisa não cessou até sua morte, como testemunham os tantos trabalhos em movimento que Boal publicou ao longo da produtiva vida. 

Enio Silveira estava certo quando batizou o livro famoso de Boal nos termos de Paulo Freire. A ênfase saía de vez do campo estético e passava ao aprendizado teatral através do jogo anti-ideológico, em que não há mais a palavra autorizada, mas a experiência comum. 

Uma leitura do conjunto de seus escritos revela o cuidado com que o dialético Boal procurava extrapolar o esquema dualista em que se funda a oposição opressor-oprimido. Libertar-se é transgredir, ele dizia. Mas ao mesmo tempo em que a fórmula parece fazer abstração da luta de classes e das categorias políticas do conflito social, Boal exigia que os casos de opressão pessoal discutidos por seus grupos fossem exemplares segundo pontos de vista políticos e sociais. A ferramenta do teatro a serviço da mudança, em todos os níveis da existência. Como hegeliano, Boal trabalhou por um sistema. Como artista, manteve-o inconcluso, à espera da modificação prática.

No simbolismo de que todos nós podemos ser atores se encontra o desejo radical de que os oprimidos pelas dinâmicas da exploração se tornem sujeitos da história. Daí sua inversão revolucionária do sentido do teatro, daí a constatação de que esse trabalho depende sempre do outro, de continuados intercâmbios com agentes da luta social, o que inclui sua experiência como vereador e o belo trabalho com o MST nos últimos anos. 

Pouca gente amou tanto o teatro como Augusto Boal. Ele, que nos ensinou a desmontar a teatralidade opressiva entranhada nas formalizações culturais e nos mostrou que o teatro deve ser praticado com risco, pois o que está em jogo é o combate pela vida.

Publicado em Vintém n.7, 2009, pp-61-66. É uma versão diversa do texto Um idealista prático, publicado em Carta na Escola, edição 37, São Paulo, Editora Confiança, Junho-Julho 2009, pp.52-55. Foi depois incorporado ao posfácio publicado no livro Jogos para atores e não atores, de Boal. São Paulo: Sesc, Cosacnaify, 2015. Relançado recentemente pela editora 34.

Avatar de Sérgio de Carvalho

Por Sérgio de Carvalho

Sérgio de Carvalho é dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, grupo teatral de São Paulo, Brasil. É professor livre-docente na Universidade de São Paulo na área de dramaturgia.

comentários