
(Posfácio ao livro Arábia: caminhos da escrita de um filme, de Affonso Uchôa e João Dumans Belo Horizonte: Editora Javali, 2024, p.243-250.)
“No trabalho da terra se prepara muito e se colhe pouco”. A observação de Cristiano, narrador de Arábia, serve ao filme do qual ele faz parte. Arábia é uma obra de longo preparo, aberta às incertezas do tempo. Como no cultivo do campo, a beleza do resultado se liga a intuições terrenas, ao trabalho com coisas vivas. Do roteiro original, aqui publicado, até o filme extraordinário de Affonso Uchôa e João Dumans, vemos uma obra atenta ao que pode ser transformado e ao que não pode. Nasce daí sua atitude política. E sua disposição ao sacrifício de uma certa eficácia dramática convencional, em favor da compreensão prática de uma vida humana em sua dimensão trágica, a de Cristiano, cuja história atravessa o filme. Lançado um ano depois do golpe parlamentar de 2016, tornou-se um dos mais importantes filmes do cinema no Brasil porque pode ser lido, também, como uma alegoria do trabalhador morto brasileiro. Uma tragédia que diz respeito a todos nós.
Alguns dos bons filmes atuais adotam a ideia de que os estragos da existência sob a pressão do capital não podem ser representados sem o recurso a alguma modalidade de tragédia. A perspectiva trágica reaparece na cena contemporânea de muitos jeitos: para um adensamento da experiência individual, como vontade de ir além dos limites personalistas do drama familiar, e sobretudo como observação de que as catástrofes atuais não acontecem com nenhum herói de “alta condição”, e sim com pessoas comuns, condenadas a uma vida banal, de trabalhos cotidianos e dores desnecessárias.
A tragédia, porém, não é uma referência artística neutra. Como qualquer padrão em arte, ela carrega consigo tendências ideológicas, de uma longa tradição literária, e que podem entrar em atrito com os interesses da atualidade. A rigor, quase nada resta da visão política e poética do modelo primeiro, o da tragédia antiga, ao qual supomos imitar através da intermediação de um Aristóteles eternamente reinventado. A forma da tragédia deixou há muito de ser a da cena pública, de estrutura coral, organizada como dilema da cidade que analisa a desmedida de um “herói” e assim participa de seu erro. O interesse clássico pelos debates jurídicos, num esforço de conciliar valores de mundos sociais diversos, já está distante de nós. Nossas referências trágicas estão mais próximas da reinvenção desse gênero ocorrida a partir do século XVII, quando a forma passa a se concentrar nas dificuldades e hesitações da pessoa do herói, e não mais numa crise decorrente do exercício de sua função pública. Com esse recorte em torno da individuação, dali por diante positiva, o que se produziu foi uma nova dialética herói-vítima (aquela em que cada passo na fuga do abismo é uma aproximação do desastre). A privatização e a sentimentalização da tragédia geraram uma ênfase no pathos trágico e na consciência da infelicidade, em substituição ao “reconhecimento” antigo, percepção de uma cadeia de erros maior. O que diferenciou tal visão trágica liberal das formas dramáticas emergentes no mesmo período foi justamente o fascínio pela inevitabilidade, pela fatalidade transcendental, aspectos que ainda são o risco ideológico de uma tragicidade atual.
No diálogo que o cinema contemporâneo tem com a tragédia existe, porém, uma intermediação histórica mais precisa. Ela se estabelece com a cena pós-naturalista do “drama falhado”. Devemos à dramaturgia social do fim do século 19 a desconfiança literária das promessas liberais, a vontade de representar a vida coisificada sob pressões sociais amplas e uma atenção histórica inédita à luta dos trabalhadores. Qualquer dramaturgia séria a partir dali teria que desmontar, de algum modo, a ideologia dramática do sujeito livre no intuito de indicar a “ausência de conexões” e mostrar os esforços coletivos dos que lutam para evitar a tragédia.
Por assumir alguma perspectiva trágica, esse drama social naturalista muitas vezes acaba por converter suas figuras falhadas em vítimas de maquinismos cegos. Quando personagens coisificadas constatam a própria desumanização e não conseguem agir, o que vemos é uma atividade da consciência individual que não resulta em ação objetiva.
A tragicidade que envolve a forma é a do sentimento de impotência e a da determinação ambiental. Não é o caso de discutir possibilidades outras da Tragédia Moderna, como fez tão bem Raymond Williams em sua obra notável, e muito menos as razões conservadoras pelas quais certa teoria elitista prefere, por outro lado, restringir a categoria ao passado aristocrático e religioso para afastá-la do mundo dos trabalhadores. Procuro aqui entender como a beleza de Arábia surgiu de um processo de movimentos livres, para além dessa herança ideológica da dor humana constitutiva ou da suposição de uma maldade transcendental e aterrorizante, tão comuns no melhor cinema social da atualidade.
Entramos em Arábia com o adolescente André, que anda de bicicleta numa estrada, a caminho da vila operária onde mora. Nas primeiras cenas acompanhamos seus cuidados com o irmão doente, tarefa imposta pela ausência da mãe que trabalha em outra cidade. Conhecemos sua tia, a enfermeira Márcia, que cuida da comunidade e trata de doenças respiratórias. Ela nos apresenta Cristiano, um operário, a quem dá uma carona. É um lugar constituído pela presença agressiva da indústria metalúrgica, com suas fornalhas que respiram fogo, como um ser vivo, e espalham poeira metálica pelas casas da vila. O primeiro quadro épico do filme é o do colapso do trabalhador Cristiano: seu corpo inerte é mostrado numa maca, na saída da fábrica, observado por olhares estáticos de seus parceiros. Essa suspensão antecipa um gesto dramático: o adolescente André encontra, em seguida, o caderno de memórias do operário em coma. E sua decisão de lê-lo põe fim à primeira parte, filmada no estilo de uma cena falhada pós-naturalista, algo que poderia gerar expectativas de superação dramática ou de uma fatalidade irreparável.
O filme que tem início a partir do letreiro com o nome Arábia é o mesmo e também outro. Provém das memórias do caderno, enunciadas pela voz de Cristiano: “Eu sou igual
a todo mundo. A minha vida é que foi um pouco diferente!”. Está num entre-tempo, não mais no presente dramático. As histórias nele relatadas são a procura consciente da diferença, dos instantes de atividade livre em meio à mesmidade do trabalho abstrato. O narrador ecoa Marx, quando este diz que a vida é tudo aquilo de que o trabalhador está excluído: a atividade humana, o desfrute físico e cultural, a moralidade, a existência real.
Num distanciamento em relação à própria história, Cristiano diz que sua escrita é movida por um “pedido de vocês”, interlocutores a princípio não nomeados. Podem ser os cineastas ou a equipe do filme, mas somos de fato nós, o público, os interpelados. O estilo realista das cenas passa a incluir a realidade do filme, que se move com o narrador para além da tragicidade.
Cristiano é um ex-presidiário em trânsito. Desloca-se porque precisa de uma função produtiva. Já conhece os mortos, não precisa visitá-los. Sua trajetória de sobrevivência inclui lugares simbólicos da exclusão brasileira: a plantação agrícola, a pedreira, o canteiro de obras da beira de estrada, o prostíbulo, onde faz uma pequena reforma, a tecelagem, onde conhece o amor de sua vida. Caminha pelas estradas das matérias mortas da exportação. Não acompanhamos sua vontade, não há futuro dramático nesse sudeste do país canteiro-de-obras-do-arruinamento. Os seus périplos aludem a uma nação impossibilitada, que não desfrutará jamais do desenvolvimento capitalista moderno, descrente da promessa da integração igualitária.
Ainda que a voz do narrador antecipe o encontro com o amor de Ana, o filme assume a estrutura de um “drama de estações”, com seus quadros estáticos e figuras estilizadas. Mas a paixão desse Cristiano, sem amor e ressurreição, não é a dos gestos de sofrimento. Arábia se importa mais com os encontros alegres, com os pequenos aprendizados, as canções, as piadas, as formas populares de resistência.
A tragicidade mediada não produz sentimento de paralisia porque pede, por parte do público, análise. A dinâmica trágica de Arábia é a da metamorfose ciclicamente miserável da forma-mercadoria brasileira, que se instala de fora para dentro do protagonista.
É verdade que algum sentimento de inevitabilidade persiste em alguns comentários de resignação e tristeza. Ao perceber que não foi capaz de dizer a Ana que a amava,
Cristiano explica seu fracasso afetivo com a frase “a vida parecia dizer que vai ser sempre assim”. É difícil romper com o engano a que estamos submetidos, impossível lutar sozinho contra uma coisificação que esconde suas causas. Mas a observação não contém autopiedade, é apresentada como “aparência”.
A deliberação do narrador em destacar pequenos momentos de importância vital corresponde a uma percepção de que a exclusão da vida é uma exclusão da política. O breve contato com Zé Barreto é uma pedra angular do tema. Ele é o homem do bar que tinha fama de agitador e que “conheceu até o Lula” no tempo das greves do ABC. É ele quem diz a Cristiano: “a terra é a mesma, mas está tudo esquisito”. A notícia de sua morte sugere que sua forma de luta política não corresponde ao tempo presente, que a mutabilidade da mercadoria está agora um passo à frente dos trabalhadores, com novas perdas de conexões de luta. A política entra no filme como inspiração fantasmagórica, como incerteza sobre o tempo melhor que já tivemos, como lembrança da revolta necessária. Cristiano chega a enfrentar o patrão das mexericas, quando este se recusa a pagar o dinheiro devido, e termina chupando caixas de frutas na estrada. Como observou Marx, a vida humana é mais importante do que a política. E mesmo uma reação limitada como a revolta produz movimento, como confiança na atividade possível: ela se projeta para além da história do narrador.
O drama social se arma e se desarma, a épica das estações contradiz o narrador e a consciência trágica mais importante de Arábia não está na vivência do protagonista. Cristiano não vê heroicidade em sua vida, nem grandes erros. Sua decisão de ocultar o cadáver de um atropelamento acidental é fria. Não precisa ser comentada. Mesmo assim, o filme lança sobre o episódio uma trilha sonora eloquente, de música oriental, que nos repõe – sob o signo de uma morte – a piada dos pedreiros que foram levados à Arábia, caíram do avião no deserto do Saara e que, diante de tanta areia, se perguntaram: quando vai chegar o cimento?
Cenas irônicas como essa constituem muito da força de Arábia e produzem uma tragicidade não restrita à esfera individual. A ironia – como na tragédia antiga – propõe momentos de reflexão pública. É ambiguamente esperançoso o canto dos operários que afirmam, com Raul Seixas, não querer “ir de encontro ao azar”. Assim como é ridícula a disputa retórica sobre a pior mercadoria no mundo a ser descarregada. O diálogo luminoso sobre a diferença de se erguer no braço telhas, lenhas e porcos descreve – a contrapelo – a metamorfose do dinheiro que a tudo equipara na relação mercantil.
A reflexão trágica torna-se parte do assunto do filme. O esforço de escapar do abismo mercantil é encarado como maldição. E o filme se recusa a qualquer “justiçamento poético” porque não se move pela esperança ilusória. O jogo entre a tragicidade e a narrativa se amplia, enfim, quando o narrador nos revela que escreveu seu caderno a pedido do grupo de teatro da fábrica. É um ponto em que isso não importa mais. Tanto faz se o relato de Cristiano foi feito para uma peça amadora operária, se é uma voz no leito de morte, a leitura formativa de um adolescente solitário ou uma narrativa documental da pesquisa fílmica. A teatralidade está no conjunto do filme. E por meio de sua exposição, ela solicita uma atividade real, fora da ficção. Não se trata mais da verdade narrativa, e sim da percepção concreta de que existem exclusões específicas, decorrentes de individualismos impostos e da onipresença da estrutura mercantil.
A tragicidade de Arábia não é a de Cristiano, o excluído, mas sim aquela observada através dele e da atuação artística de Aristides de Sousa. Num acordo com a tradição trágica, o filme promove, por fim, um reconhecimento. O adolescente André é alguém, segundo o comentário de Cristiano, que “está sempre sozinho” pois parece que “não gosta da vila”. Quem observa quem nesse momento? De que ponto de vista? É o instante de olhar mútuo do qual participamos, em que a poeira da metalurgia, a dificuldade de amar, a pedreira da estrada e o escravismo perpetuado, no areal do mundo globalizado, se conectam. Entrevemos aí um modo social de produção de cadáveres, pelos olhos de pessoas vivas, que rejeitam o ponto de vista da morte.
O coração do lindo filme de Affonso Uchôa e João Dumans está nesse reconhecimento, que é um gesto – de diálogo com o futuro, partilha da revolta incerta, desejo de uma relação humana verdadeira, de ativação política.
